LVSITANO DE SERMONE
E o vencedor é…
É, sem dúvida triste, que não possamos passar sem falar acerca daquele exercício de pseudodemocracia que está para ter lugar do outro lado do oceano. Para muitos, trata-se de pseudodemocracia porque quando o candidato que tem mais votos perde as eleições algo não está bem. Nas eleições presidenciais de 2016, Hillary Clinton, a candidata do partido democrata, teve 2.864.974 votos a mais do que Donald Trump. Não foram dois votos a mais, nem dois mil ou duzentos mil, mas quase três milhões de votos. Trump teve 62.984.828 (46,09%) votos enquanto que Hillary Clinton teve 65.853.514 (48,18%). Os restantes 5,73% dos votos foram dispersos entre os outros quatro candidatos de quem nunca ninguém ouve falar. Um deles, Gary Johnson, o governador do Novo México e candidato do Libertarian Party, teve quase quatro milhões e meio de votos. Em princípio, numa democracia todos os votos contam igualmente e vence o que tiver um voto a mais. Pelos vistos, na grande democracia americana a coisa não é bem assim.
A origem deste problema, se é que os americanos o vêem como problema, está na formação histórica dos Estados Unidos, um estado federal ao qual novos estados se foram juntando e que ocupa uma área geográfica quase equivalente à de toda a Europa. O presidente dos Estados Unidos é eleito não pelo voto popular mas por um colégio eleitoral composto por delegados eleitores (electors) dos vários estados. Este mecanismo poderia fazer sentido aos eleitores do século XIX, quando atravessar o país de um lado ao outro levava dias, mas hoje em dia é difícil de entender como é que o candidato com mais votos possa perder as eleições por causa de um sistema que foi desenhado nos finais do século XVIII. Se o sistema não se pode modificar de raiz, poderia pelo menos ajustar-se e, em vez de atribuir ao candidato que vence num determinado estado a totalidade dos delegados do colégio eleitoral desse estado, o número de delegados eleitores poderia ser calculado proporcionalmente aos resultados do voto popular, como aliás já acontece nos estados de Maine e do Nebrasca. Afinal de contas, é ao povo que a campanha eleitoral se dirige e é ao povo que os candidatos pedem o seu voto. Não faz sentido nenhum que no final a decisão do povo possa ser ignorada. Num país que se considera um modelo da democracia a ser seguido e que já andou por aí a tentar (im)plantar democracias, com os resultados desastrosos que todos conhecemos, que um candidato que tenha quase três milhões de votos a mais e perca as eleições é difícil de engolir.
Mas a coisa não acaba aí. Os Estados Unidos têm cerca de 330 milhões de habitantes, desses apenas 135.719.982 votaram nas eleições de 2016 que elegeram Donald Trump. Este número representa cerca de 41% do total da população. Trump teve então 46,09% do total do chamado voto popular. Os 62.984.828 votos que Trump teve representam apenas 19% da população dos Estados Unidos, um número relativamente irrisório se tivermos em conta o imenso poder que o presidente dos Estados Unidos tem. Isto não seria tão grave, não fosse o facto de que esse imenso poder se faz sentir muito para além das fronteiras dos Estados Unidos. As eleições americanas trazem o povo de todo o mundo em suspense, não por causa de questões políticas ou económicas internas dos Estados Unidos mas pelos resultados potencialmente catastróficos que essa eleição pode ter para o resto do planeta. A estabilidade já frágil do mundo pode estar em perigo por causa de uma eleição em que o candidato que perde pode afinal ganhar. Se em democracia o poder, a –cracia, vem do povo, o tal demo-, que democracia é essa?
E tudo o vento levou!
Mas aqui estamos mais interessados na língua e na sua relação com a política. Os primeiros parágrafos deste texto, são, na verdade, um exemplo da relação entre a língua e política, já que é através da língua que nós fazemos a crítica e o escrutínio da actividade política. Em democracia, o escrutínio da actividade política é quase tão importante como a própria política. [Só para clarificar, eu não sou apoiante de Hillary Clinton, mas muito menos de Trump! O meu ponto aqui é apenas o absurdo da coisa.]
É também através da língua que os políticos nos tentam (al)ca(n)çar. A língua é a arma dos políticos, pelo menos em democracia. Noutros regimes a pistola ou a promessa de uma bela surra são também formas “válidas” de convencer, ou melhor, guiar o povo a votar no candidato correcto. Mas naquilo que nós ainda chamamos de democracia, a retórica tem sido a forma de persuadir o povo a votar em nós. A retórica era uma das artes mais nobres da antiguidade. Entre os grandes oradores estão Péricles (495-429 a. C.), conhecido como o pai da democracia, Demóstenes (384-322 a.C.), que ousou desafiar a Filipe da Macedónia, e Tucídides (460-400 a.C.), talvez o mais célebre de entre os oradores Gregos, famoso por treinar os seus discursos peripateando com pedras na boca. Entre os oradores latinos, o mais importante é de longe Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.). Júlio César (100-44 a.C.), seu contemporâneo, foi outro dos grandes nomes da oratória política e militar de Roma durante a chamada Idade d’Ouro da literatura latina. Outro orador digno de menção é Quintiliano (35-100), autor de um tratado de retórica intitulado Institutio Oratoria, ou Instituição Oratória em português. Este tratado e os discursos de Cícero foram durante séculos os grandes manuais da arte da retórica para padres, sobretudo os jesuítas, políticos ou qualquer um com ambições de chegar alto na vida através da palavra.
O tempo da retórica como instrumento da política infelizmente parece ter acabado. Durante séculos a retórica foi a grande ferramenta dos políticos cuja intenção era influenciar ou convencer as gentes à sua volta. O século XX ainda conheceu dois grandes oradores em campos completamente opostos. Foram eles Winston Churchill e Adolf Hitler. Entre os dois, o maior, para choque de muitos, foi Hitler, considerado um dos oradores mais dotados dos últimos tempos. Os seus discursos são ainda hoje estudados e aquilo que muita gente não sabe é que, entre os mais ávidos estudiosos das técnicas retóricas de Hitler, estão as pessoas ligadas ao marketing. A grande vantagem que os discursos de Hitler têm sobre os discursos dos grandes mestres do passado é que muitos deles existem em gravações e vídeos onde a modulação da voz e a gesticulação, que também fazem parte da arte retórica, podem ser dissecadas e examinadas. Os discursos de Churchill, muitos deles estão também gravados mas não têm imagem e a modulação de Churchill não é muito significativa, mais bem monótona. Hitler pelo contrário, era capaz de levantar multidões dos seus assentos. Durante o seu discurso inaugural dos Jogos Olímpicos de Berlim de 1936, membros das delegações estrangeiras, muitos deles antifascistas ferranhos, contam que tiveram de fechar as mãos com força dentro dos bolsos porque a energia à sua volta era tal que quase involuntariamente queriam pôr os braços no ar na saudação romana.
A arte retórica tanto de Hitler como de Churchill depende da selecção da palavra correcta, da sua combinação e colocação precisa lá onde eles sabem que causará o impacto desejado. Ainda que não pareça, tudo é seleccionado, tudo é combinado, tudo isto é feito de modo calculado; nada é deixado ao azar. Há testemunhos de pessoas do entourage de Hitler que, depois de proferidos os discursos, o ouviram comentar com Dr. Joseph Goebbels, ministro da propaganda, como este ou aquele gesto, este levantamento da voz aqui ou aquele sussurrar ali tinham corrido muito bem e que tinham produzido no público o efeito esperado.
Estaline, pelo contrário era um péssimo orador. Muito a medo, as pessoas do seu entourage faziam troça das suas capacidades oratórias que nada tinham que ver com as do seu predecessor, Lenine, que, embora não fosse brilhante, era, pelo menos, hábil. Há vídeos de Estaline a discursar; parece um jovem estudante envergonhado ao ter de ler um poema em frente dos colegas de classe.
Margaret Thatcher era também uma oradora brilhante, sobretudo pela sua capacidade de resposta impromptu na Câmara dos Comuns at the dispatch box, mas os seus discursos eram escritos com a ajuda de membros da sua equipe. Churchill, que escrevia os seus próprios discursos, mas nunca discursava impromptu, lia-os num tom que se tornou inconfundível.
O primeiro discurso de Winston Churchill como primeiro ministro foi “Blood, Toil, Tears, and Sweat”, proferido a 13 de Maio de 1940, três dias depois da sua nomeação. O discurso versa sobre as dificuldades que a Guerra traria. Sem dúvida alguma, os seus discursos mais famosos são o “We Shall Fight on the Beaches” transmitido pela BBC a seguir à derrota de Dunquerque e o “This Was Their Finest Hour” de 18 Junho de 1940, um discurso em que fala de a possibilidade do império Britânico durar mil anos. Não durou, foi caindo pouco a pouco depois dessa guerra que era suposta tê-lo salvo.
Mais difícil, por razões óbvias, é a tarefa de escolher quais os discursos mais famosos de Hitler. O conteúdo de muitos dos seus discursos, se não de quase todos, torna-os cousa não grata. Ainda assim, mencionarei dois. O primeiro, proferido no Sportpalast a 10 de Fevereiro de 1934, poucos dias depois de ter sido nomeado Reichskanzler, ou seja, primeiro ministro da República de Weimar, inclui a sua famosa frase In uns selbst allein liegt die Zukunft des deutschen Volkes. Esta frase ‘em nós apenas reside o futuro do povo alemão’ e o seu resto é acompanhada da mais dramática gesticulação e modulação da voz que se possa imaginar. Este discurso altamente emotivo foi filmado e no fim desta parte, as câmaras focam o público, que de pé e de braços no ar, deixa ver nos seus rostos o entusiasmo que o texto lhes provocou. Outro discurso que também é relativamente bem conhecido, sobretudo porque fez parte do filme Triunfo da Vontade de Leni Riefenstahl, é o discurso de encerramento do sexto congresso do partido Nazi em Nuremberga a 14 de Setembro 1934. Neste discurso, mais do que as palavras, é de salientar a gesticulação à volta da frase Wir können glücklich sein zu wissen, dass diese Zukunft restlos uns gehört, em português ‘podemos considerar-nos felizes sabendo que este futuro é inteiramente nosso’. [A força retórica da frase alemã perde-se totalmente na tradução portuguesa; a versão original alemã, cheia de sibilantes e dentais, é quase musical] Ao mesmo tempo que profere estas palavras, Hitler olha para o céu e se abraça a ele próprio. O público, filmado então sob a batuta de Riefenstahl, grande maestra da propaganda fílmica, enlouquece-se em êxtase. O poder retórico desta frase, do seu conteúdo, associada a esta imagem do líder que parece querer abraçar a todo o seu auditório podem-se ainda hoje sentir quando se vêem essas imagens. Elas foram, afinal, concebidas para produzir esse efeito. O facto de que os discursos de Hitler eram filmados, e, como tal, podiam ser repetidos, dava-lhes uma força suplementar que não pode ser subestimada; estes recursos retóricos estavam sempre disponíveis. O nazismo fez da propaganda, que incluía o cinema, a sua grande arma política.
Eu bem sei que pode parecer chocante para alguns que Hitler apareça aqui mencionado como um grande orador, mas o conteúdo dos seus discursos é independente das técnicas retóricas por ele empregadas e da grande profusão que este tinha das mesmas. Se tivermos em conta que Hitler foi capaz de convencer tanta gente a participar naquilo que nós sabemos, só isso demonstra bem o poder da sua capacidade retórica. Comenta o historiador britânico Ian Kershaw, no primeiro volume da sua biografia do ditador alemão, intitulado Hitler: 1889-1936 Hubris, que Hitler, que não era ninguém, deve muito à sua extraordinária capacidade de comunicação ter chegado onde chegou. Ainda que este não seja um exemplo a seguir, demonstra bem o poder que a palavra tem.
Aquilo que distancia políticos como Hitler e Churchill dos políticos de hoje é que, para o bem ou para o mal, dependendo de de que lado do muro se está, as pessoas, era necessário convencê-las. Hoje em dia isso já não é assim. Não mais são os políticos que têm que convencer as pessoas da validez das suas posições ideológicas e morais, não!, agora é a massa que diz aos políticos o que é que eles querem ouvir. E os políticos cá estão para satisfazer o povo. A retórica foi abandonada em troca de uma política do tipo quando o telefone toca.
Muitos não se recordarão, ou serão talvez demasiado jovens, mas nos dias quando não havia internet e youtubes e coisas que tais, naqueles dias cinzentos dos anos oitenta, ainda antes da CEE, havia na radio um programa chamado Quando o Telefone Toca. As pessoas ligavam para lá e pediam uma música, a música que queriam ouvir ou dedicar a alguém. O programa era motivo de alguma troça porque havia sempre alguém que em resposta à pergunta da locutora é para ouvir ou dedicar? discorria uma lista enorme dos seres, nem sempre só pessoas, às vezes os animais de estimação estavam também incluídos, e porque não?, aos quais desejava dedicar a cançoneta. A determinada altura, os produtores decidiram limitar o número das dedicatórias. Eu sei, para alguns soa a coisa quase medieval, mas isto era nós quando ainda éramos puros e singelos!
O discurso político hoje é mais ou menos assim, o que deseja ouvir? Com a diferença de que nem é preciso perguntar, já se sabe de antemão a música que o auditório quer. Depois metem-nos aos magotes num lugar cheio de luzes coloridas e já está; retórica, p’ra quê? O povo já chega convencido.
Não é isso que temos assistido lá do outro lado do mundo? Já não se fala de estratégia económica, de política externa, de metas a médio e longo prazo. Não! Dum lado são os emigrantes e, do outro, o aborto, e não é preciso mais! Tudo isto acompanhado com a dose correcta de linguagem chã, troca de insultos, repetição de lugares comuns, slogans baratos; um menu feito à medida do freguês; fast-food da boa! Com umas mentirinhas aqui e acolá, ainda melhor; não é preciso muito trabalho ‘qu’a malta vem animada; a verdade, a gente põe na net amanhã.
Também há cá
Mas não é só daquele lado é que retórica foi a enterrar. No caso português, uma coisa que chama a atenção é o tamanho das frases dos políticos e a correspondente falta de nexo. O português escrito tem a tendência de ser uma língua formal e, em consequência disso, nós tendemos a escrever frases longas estruturalmente complexas, às vezes quase barrocas. Nota-se desde já há uns anos que os políticos tentam falar como escrevem e daí saem umas frases que mais se parecem a chouriços de corrente que a outra coisa. Depois de uma valente enchoiriçada de substantivos e adjectivos-tudo tem de ser qualificado com, pelo menos, dois adjectivos sinónimos, mas melhor, melhor é mesmo usar três!– a criatura que está em frente aos jornalistas a tentar explicar o inexplicável já não sabe onde é para o sujeito e como tal o que há-de fazer ao verbo; resultado? Asneira! [Não como o que eu fiz momentos atrás com era nós, essa foi de propósito]. A forma como se usa a língua é uma demonstração externa da (falta de) organização mental que um bom político, se quer ser eleito ou se já o foi, não deve ter. Mas para que nos preocuparmos se somos eleitos na mesma?
De gravata preta
Quando a democracia nasce em Atenas, por volta de 508-507 a.C. com as reformas de Clístenes, com ela nasce também uma nova classe profissional, os sofistas. A palavra sofista vem do grego σοφιστής sophistḗs e etimologicamente quer dizer ‘profissional do saber’. Eram os sofistas um tipo de professores particulares que se deixavam arrendar por pessoas, normalmente jovens com dinheiro, que tinham ambições políticas nas então jovens instituições atenienses. A sua arte era ensinar a criar a verdade. Para os sofistas a verdade não é ontológica mas sim retórica, pertence ao que vence a discussão com o argumento mais convincente. Por isso mesmo os sofistas estavam na mira de ataque de Platão. Não deixa de ser interessante verificar que é quando a democracia se torna a forma de governo padrão das sociedades modernas que a retórica que nasce ao seu serviço tenha de começar a pensar no tipo de madeira que quer para o seu caixão. Ou será que é a democracia que se prepara para ir a enterrar?
Roberto Ceolin
MA (Conim.) MPhil, DPhil (Oxon.)
Docente Universitário de Línguas Antigas