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      InícioOpiniãoMacau em estado de sítio (parte V)

      Macau em estado de sítio (parte V)

       

      Desde que Henrique Correia da Silva se instalara em Macau, em Agosto de 1919 (tomou posse como governador no dia 23), a contestação chinesa ao avançar das obras do porto sucedeu-se numa progressiva subida de tom, perceptível, sobretudo, nas campanhas de agitação da opinião pública através da imprensa chinesa. Mas a influência procurava-se, também, por meio dos canais diplomáticos.

      Numa China dividida, com um governo em Cantão e outro em Pequim, “para enfrentar as pressões do exterior, diplomáticas ou de qualquer ordem, entendia-se o governo de Cantão, com a habitual subtileza chinesa, com o seu congénere do norte, de cuja obediência se libertara”, observa Joaquim Paço d’Arcos em “Memórias da Minha Vida e do Meu Tempo” (1973), onde passa em revista os anos que viveu em Macau, entre 1919 e 1922, quando o pai, Henrique Correia da Silva, foi a principal figura da administração portuguesa no território. Não havia dúvidas: “o problema mais grave que ocupou e atribulou o nosso pai no seu governo de Macau foi incontestavelmente o das relações com a China”. Mesmo em convulsão, com um império a desintegrar-se, a China unia as forças mais desavindas em torno de uma causa comum: a integridade territorial e a soberania, afrontadas por interferências estrangeiras. “O governo de Pequim reforçava, por intermédio da sua Legação em Lisboa, os protestos violentos que o governo rebelde de Cantão apresentava ao Cônsul de Portugal nesta cidade. Dessa forma a diplomacia da China dividida formava uma frente única contra o estrangeiro elevado a inimigo”, resume Joaquim Paço D’Arcos.

      No centro de toda a perturbação, Correia da Silva ia recebendo ordens de Lisboa para que resistisse a suspender as obras do porto, o que só agravava ainda mais a posição chinesa, até ao ponto de terem começado “a aparecer tropas chinesas perto de Macau”, acompanhadas de “indicações de que, de facto, Macau ia ser atacado”, relata o ministro das Colónias Correia da Silva, na Câmara dos Deputados, na sessão de 4 de Junho de 1925.

      Assim, “em meados de Janeiro de 1920, Macau estava cercada por 12 mil homens de tropas chinesas. Em frente a Macau, cruzavam navios de guerra chineses e nas ilhas em redor estacionavam bandos numerosos de piratas, prontos a associar-se ao ataque que a Macau ia ser feito, e eu tinha informações de que pela população chinesa estava preparado um levantamento contra a autoridade portuguesa”.

      Foi neste cenário que Correia da Silva recebeu, no Palácio do Governo, o general chinês que comandava as forças que cercavam Macau, Lu Hin San, que saiu da Praia Grande informado de que as obras do porto só seriam suspensas se o governo chinês nomeasse uma comissão para tratar da questão da delimitação de acordo com o governo de Lisboa. Todavia, a aparente posição de força portuguesa era apenas isso: aparente. Os chineses sabiam; Correia da Silva também.

      O ataque a Macau estava anunciado: 25 de Janeiro. O governador pede auxílio britânico, mas o velho aliado, temendo que o comércio inglês saísse prejudicado, prefere não se envolver.

      “Dar-se-ia, portanto, o conflito armado, e das suas consequências, cujos limites ninguém podia prever, como ninguém pôde prever a extensão que havia de tornar o conflito surgido com a Sérvia, cabia a responsabilidade ao governo português e a mim que ali estava agindo em seu nome”, recorda Correia da Silva aos deputados.

      “Era o dia seguinte o marcado para esse ataque. Cometi então”, declara o ministro das Colónias, “um abuso de autoridade e venho confessá-lo ao parlamento do meu país. Tenho 300 soldados em Macau, tendo munições apenas para meia hora de fogo, sabendo a pavorosa calamidade que ia cair sobre a colónia, tomei a responsabilidade de mandar suspender aqueles trabalhos”. Voltava-se à estaca zero (ou à estaca primeira; afinal, as obras já decorriam).

      Seguiu-se um longo e complicado (mais um) processo de negociação de um diferendo luso-chinês, desta feita com mediação britânica. Ao fim de nove meses de intensas discussões em Cantão, foi alcançado um acordo: aceitava-se a continuação das obras, mas deixava-se, uma vez mais, a questão da delimitação adiada. Eternamente.

      Correia da Silva pensava que partia de Macau com missão cumprida, quando, em Hong Kong, à espera de ligação para Lisboa, o desassossego voltou ao estabelecimento português num Maio quente que iria elevar as temperaturas e manter o território em estado de sítio declarado até meados de Junho, e com a suspensão das garantias constitucionais até ao final desse mês.

      Depois dessa greve acompanhada por tumultos que fez temer, de novo, pelo futuro de Macau, a governação de Correia da Silva chega ao fim, mas a instabilidade daqueles tempos continuou. Luís de Magalhães Correia, encarregado do governo em 1922 e 1923, ainda teve de lidar com a explosão de uma bomba nos jardins do Palácio do Governo.

      A república chinesa era ainda uma experiência incipiente, marcada pela turbulência, pela divisão, pela falta de um chão comum.

      “Expulsara a China a dinastia manchu e proclamara a República na altura exacta – com diferença de poucos meses – em que o nosso país pusera termo ao longo reino dos Braganças e estabelecera o regime republicano”, escreve Joaquim Paço d’Arcos nas suas memórias. “O primeiro Presidente da República chinesa, Sun Yat-sen, obrigado a resignar em 1912, estabelecera em 1918 em Cantão um governo autónomo; com o auxílio da Rússia comunista reorganizou o Kuomintang –, o partido de intelectuais que fundaram em 1911, com o objectivo da eliminação da influência e presença estrangeira, da democratização da China e do seu progresso económico. Entretanto fundava-se em Xangai em 1921 o Partido Comunista Chinês”. Impunha-se a resenha histórica. O futuro estava a começar.

       

      Hugo Pinto

      Jornalista