Nunca se duvide do poder das histórias. São elas, na forma de mistificações diversas, que muitas vezes fazem a História maiúscula, lhe dão corpo e sentido. Princípio, meio e fim. Os portugueses sabem-no bem. Somos velhos conhecidos, íntimos, de muitas (das nossas) histórias, lendas, narrativas. Às vezes confundem-se. Emaranham-se de tal modo que se torna difícil, ou mesmo impossível, destrinçá-las. Sobretudo, porque não existe, verdadeiramente, um desejo dessa separação. É uma espécie de sina colectiva portuguesa, um fado comum que se difunde pelos tempos. Poetas e militares (cujas respectivas almas também parecem misturar-se na lírica névoa) partilham esse destino; políticos deste e de outros tempos, independentemente do espectro ideológico, convergem nesse imóvel ponto: a História sacrossanta.
Álvaro Manuel Machado, autor de “O Mito do Oriente na Literatura Portuguesa” (1983) – cobrindo cinco séculos sobre a mais fantasiada das geografias, dos cronistas João de Barros e Diogo do Couto (para quem a História deve dizer “verdades” e que, por isso, coleccionou inimigos, dissabores e repressões) a Fernando Pessoa e Almada Negreiros –, considera que a mitologia é o “motor da história” da expansão ultramarina. O nada que era tudo.
Como não podia deixar de ser, na história de Macau, como na história de Portugal, as incertezas sobrepõem-se inúmeras vezes às certezas, o misticismo e uma certa dimensão espiritual afirmando-se como suprema condição de ser.
Quem supõe Camões em Macau, por exemplo, talvez acredite também que foi pela poesia, e não por razões mais prosaicas, como o comércio e a conveniência de interesses, que os portugueses se impuseram e resistiram no pequeno território, de alguma maneira vingando S. Francisco Xavier, que morreu em 1552, na ilha de Sanchoão, acabado de desembarcar às portas do País do Meio, e que, nas últimas palavras, terá augurado que não seria através das armas, mas sim do verbo, que se iria conquistar a China.
“Se as tradições estão bem arraigadas e vivas, não será a demonstração de sua inexactidão histórica que as poderá destruir”, sentenciou Camilo Pessanha, o poeta do simbolismo, persuadido que “há de ser verdade intuitiva, superior a todas as investigações históricas, que o maior génio da raça lusitana sofreu, amou, meditou, em Macau, aqui tendo composto, em grande parte o seu poema imortal, e que o local predilecto aos devaneios do seu espírito solitário era essa colina, então erma, sobre o porto interior”.
Noutra latitude, ao cabo de uma década de “solitárias e longas meditações” na Índia, também Norton de Matos chegou a semelhante dedução sobre a importância das intuições do espírito. “Que me importa a mim”, escreveu o general, um dos mais importantes arquitectos do colonialismo luso, “que os áridos métodos da ciência histórica cheguem a conclusões diferentes daquelas a que eu cheguei, se esta é a minha crença. O que nos importa, a nós realizadores, é ver as coisas sob um aspecto que nos permita espiritualizar o nosso esforço e levar para nível superior ao da mesquinha animalidade os nossos combates de cada hora”.
A tese fazia escola e, a partir de Macau, outro militar haveria de professá-la: “Nós portugueses, eternos sentimentalistas, precisamos da lenda. É a lenda que nos fortifica, que nos espiritualiza, que nos impulsiona no caminho da abnegação e do sacrifício; é a lenda que, por vezes, nos transmite o fulgor duma maravilhosa tradição”, defendeu José Luiz Marques, tenente-coronel que foi o autor de “Breve Memória Acerca dos Assinalados Feitos dos Dois Maiores Heróis da Autonomia de Macau, [Ferreira do] Amaral e [Vicente de Nicolau] Mesquita” (1920), opúsculo publicado a propósito de um concurso para levantar estátuas às duas grandes figuras da afirmação colonial portuguesa em Macau no século XIX. Com sublinhada ironia, da mesma maneira que, por motivos políticos, estes monumentos foram mandados construir, também mais tarde se deliberou a sua retirada. É assim a História quando vive de fulgores, e a de Macau é pródiga nestas resplandecências, que tanto alumiam quanto cegam.
Se escassearam os documentos, não faltaram as narrativas épicas e lendas que se converteram em inquestionada tradição – o combate contra os piratas que deu a “posse” de Macau, a célebre “chapa de ouro”, Camões na sua gruta enamorado pela nereida chinesa, a solitária bandeira portuguesa hasteada em Macau durante o período filipino. E por aí fora.
Talvez não seja o mais perfeito e acabado exemplo das mitologias de Macau, mas a questão sobre se o território foi ou não uma colónia imiscuiu-se neste imaginário com a mesma persistência e como um discurso que se enquadra na narrativa mais vasta.
É verdade que Macau, ao longo da sua história, teve estatutos diversos, mas o de colónia foi um deles. A partir de determinada altura, até passou a ter forma no sentido estritamente jurídico.
“Desde 1783, ano em que foram publicadas as Providências Régias que reforçaram os poderes do Governador, a política de Macau começou a ter certa tonalidade colonial”, explica o historiador Wu Zhiliang em “Segredos da Sobrevivência”, onde considera que “o período do Direito Constitucional de Macau, que se estende de 1822 a 1976, pode chamar-se o seu período colonial”.
Mas mesmo depois de o Estatuto Orgânico, que se seguiu à Revolução de 25 de Abril de 1974, ter definido uma nova situação jurídica e constitucional, na prática, Macau continuou a ser administrada por portugueses – (quase) sempre de acordo com a vontade chinesa, é certo –, só que continuando a realizar inquestionáveis actos de soberania, como a aplicação de Justiça ou a concessão de nacionalidade. Era, de facto, como vem no dicionário, na entrada “colónia”: “território governado por um Estado, dito metrópole, fora das suas fronteiras geográficas”.
Mesmo assim, há sempre quem insista: “Macau nunca foi uma colónia”, declarou o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, quando esteve em Macau, em 2019; mais recentemente, coube ao chefe da diplomacia portuguesa, Augusto Santos Silva, insistir e até avançar com uma explicação para o estabelecimento português: “Macau não é Hong Kong, Macau é Macau, um território que foi administrado por Portugal durante vários séculos a pedido das autoridades chinesas, nunca foi uma colónia”.
Claro que foi. E não é por isso que Macau deixou de ser um caso especial, deveras distinto e sem comparação possível com outras terras, sejam elas portuguesas, sejam elas chinesas.
E também não é por causa dos mitos – em Macau, a realidade é sempre mais incrível do que a ficção.
Hugo Pinto
Jornalista