ANTÓNIO JORGE GONÇALVES: “O DESENHO É SEMPRE UMA NARRATIVA”
Autor de banda desenhada, performer visual, ilustrador, cenógrafo, cartoonista, professor, António Jorge Gonçalves publica desde 1993 e o seu trabalho é tão diverso como as abordagens que pratica perante o desenho e a criação visual. Assinou, com Nuno Artur Silva, a série As Aventuras de Filipe Seems, que revolucionou o panorama português da banda desenhada no final do século passado, e depois disso reinventou-se a cada novo trabalho, a solo ou em parceria, entre ilustração, narrativas visuais, BD e os palcos para onde cria cenografias, projecções ou desenhos ao vivo que desaparecem com o cair do pano. Esteve em Macau, para participar no Rota das Letras, e conversou com o Parágrafo sobre um percurso já longo, que tem o desenho como linha condutora.
O teu trabalho espalha-se por múltiplos suportes de publicação e, para além disso, recorre a técnicas muito distintas, materiais, formas de riscar no papel, desenho digital… O que une tudo isto? É o desenho, a vontade de contar histórias, ou ambos?
Tem muito a ver com o desenho. É sempre um bocadinho difícil e a gente habitua-se a encontrar a resposta mais rápida… A verdade é que só encontramos respostas porque nos fazem perguntas, porque se calhar nunca teríamos essa necessidade. Confesso que já não sei, estou num momento em que começo a sentir um bocadinho a lonjura do caminho, já não me lembro de quando comecei. Acho que o desenho une tudo, sim, e acho que o desenho em si é sempre uma narrativa, pelo menos da maneira como eu o vivo. Começas com o papel e um riscador e aquilo é qualquer coisa que é uma narrativa em si mesma. Essas duas possibilidades misturam-se um bocadinho. Por um lado, na infância, havia a herança da banda desenhada franco-belga, por outro, nas Belas Artes fiz design gráfico e isso deu-me uma atitude projectual, embora eu já a tivesse um pouco, mas ali consolidou. Quando fui para Londres fazer o mestrado passei a privilegiar alguma espontaneidade e uma certa vontade de sabotar o aspecto projectual das coisas, deixando que tivessem uma capacidade de se desenvolver e às vezes de se alterar abruptamente, o que depois se ampliou com o desenho digital. Acho que, nessa altura, essa coisa de uma vontade de contar uma história prévia se começou de alguma maneira a entaramelar na noção do próprio desenho, do próprio processo, enquanto narrativa. Acho que se constrói um pouco dessa maneira, vai-se construindo.
Este mês, no âmbito do Festival Literário de Macau, estiveste a desenhar ao vivo no concerto Samba de Guerrilha, com o Luca Argel e a Nádia Yracema. Como é que passaste a integrar este projecto?
Há coisas realmente felizes que acontecem: às vezes escolhemos com quem quer trabalhar e às vezes somos escolhidos. Nos últimos anos, tem sido raro aceitar coisas que me proponham, tem a ver com a minha gestão do tempo. Já no final da fase do Covid recebi um email do Luca Argel, que eu não fazia ideia quem era, e ele diz-me que conhece o meu trabalho, e tal, e diz “olha, fiz este disco e queria fazer uma versão do espectáculo; queres pensar comigo como é que faríamos isso?”. Fui ouvir o disco e mal ouvi as primeiras músicas percebi que queria mesmo, mesmo, fazer aquele espectáculo. E acho que isto é bonito e ainda vale a pena, quando as coisas extravasam o amigo ou o conhecido de não sei quem e as pessoas se aproximam pelo trabalho que fazem. Este é um processo muito semelhante à construção de um livro de banda desenhada: havia uma história para contar e, neste caso, houve um trabalho de levantamento de iconografia com uma pessoa especializada em pesquisa de iconografia visual. E depois há a própria mecânica do desenho no espectáculo, que é uma coisa já muito normal para mim, e há essa coisa fantástica de estar em palco com uma super-banda, que é um prazer imenso.
O desenho ao vivo tem esse lado efémero, os desenhos que vemos nascer não ficam guardados, não se publicam em papel, acontecem naquele momento. Lidas bem com a efemeridade?
A efemeridade é muito libertadora, ainda que no início fosse um bocadinho assustadora em vários sentidos. Comecei a fazer isto com o Paulo Curado, que é um grande improvisador, e não tinha essa prática; a prática do desenho tem tendência a ser de facto um pouco projectual, e esse é o maior desafio do desenho ao vivo: a verdadeira tela é o tempo que a gente tem, não é sequer a dimensão da nossa projecção. Essa foi a primeira dificuldade, levei tempo a perceber que era o tempo que era a minha tela. Depois, eu vinha, como quase todas as pessoas que desenham na área da ilustração e da banda desenhada, dessa prática de aperfeiçoamento até se chegar a esta ideia de uma arte final que está pronta para consumo, e, como toda a gente, continuamente atormentado pela imperfeição das coisas. No desenho ao vivo, é aquilo que sai e há um lado muito libertador em não haver tempo para julgar, porque uma boa parte da frustração de quem desenha tem a ver com o julgamento contínuo que faz.
O improviso é total? No caso do Samba de Guerrilha tinhas um banco de imagens.
Sim, mas neste espectáculo as imagens só são usadas na parte de narração, que não tem canções, apenas com uma excepção. De resto, nas canções, estou a desenhar de improviso. E nesse tipo de espectáculo é o que eu procuro fazer, ou seja, há partes que têm um timing e há outras onde posso improvisar. Mas os espectáculos que mais tenho feito nos últimos anos, com o Filipe Raposo, é improvisação total entre o piano e o desenho e não há absolutamente nada, nem se combina nada. E dentro do meu trabalho performativo, é isso que é o mais satisfatório, porque quando começo a querer construir coisas muito específicas, prefiro ficar no papel. É outra coisa, outra dinâmica, porque aí o tempo desaparece enquanto tempo performativo, é aquilo que for preciso até se conseguir atingir qualquer coisa.
Essa é uma divisão importante no teu trabalho?
Acho que sim. No papel, para mim, não há tempo, é aquilo que eu levar até chegar a um ponto em que digo que chega. No performativo, não, aí tenho um tempo e é com ele que tenho de viver.
Uma outra divisão que por vezes fazes no teu trabalho, tal como explicaste na masterclass que deste em Macau, é relativa ao antes e ao depois de teres incorporado o computador e as ferramentas digitais. A tua forma de desenhar e de pensar através do desenho alterou-se?
Foi uma fronteira em muitas coisas. Neste momento, já é muito distante, mas eu ganho o meu primeiro computador na altura em que estou a começar a fazer a Arte Suprema, com o Rui Zink, que é um corte muito radical em relação a As Aventuras de Filipe Seems. No fundo, estive toda a minha juventude a preparar-me para fazer os Filipe Seems, no sentido em que há ali o desaguar de uma determinada linguagem da banda desenhada franco-belga.
E essa era a tua referência na banda desenhada?
Sim, totalmente. E o que acontece é que com a entrada do Rui Zink na minha vida e na A Arte Suprema, tudo de repente bascula e eu dou comigo pela primeira vez a ter de me reinventar verdadeiramente. E isto passa-se ao mesmo tempo em que tinha acabado de fazer o O Que Diz Molero?, que foi a minha primeira experiência teatral e que também me fez reinventar, e quando acabo A Arte Suprema, vou para Londres. Então, é uma série de coisas, no fundo, é o final da minha juventude e é aí que chega o computador, que me abre a porta para a performatividade. Quando tenho o primeiro computador ainda não estou a pensar nisso, com a A Arte Suprema faço a edição das pranchas que desenhei à mão em computador e quando vou para Londres e começo a ver espectáculos começo a perceber que talvez possa usar o computador. Mas mesmo aí, o mestrado de Cenografia que fiz em Londres não tem grande componente digital, é quando regresso a Lisboa que isso começa a acontecer. O computador ampliou-nos imenso as possibilidades, mas sobretudo o cruzamento entre áreas, ou seja, de repente tudo passou a acabar dentro do computador. Mesmo que eu faça um trabalho completamente analógico, ele acaba no computador no momento em que é digitalizado. O computador é a grande nave-mãe das nossas vidas.
E isso alterou a tua forma de pensar enquanto desenhas, ou a tua forma de pensar visualmente?
Sim, alterou e teve diversas fases. Agora, estou numa fase muito analógica, tenho resistido a construir as imagens no computador. E este espaço [o atelier] possibilita-me ter uma escala diferente, uma prática diferente. Com os anos, comecei a aperceber-me que é bom termos constrangimentos: aquela coisa do faz o que quiseres…o computador tem um bocado isso do faz o que quiseres, mantém as coisas sempre muito em aberto. E depois há a questão do formato, que é o que me chateia mais, porque estamos limitados àquele formato e às vezes até temos uma imagem completamente falsificada. Por isso é que muito cedo no processo começo a imprimir coisas ao tamanho e a fazer maquetes dos livros.
Durante 18 anos, assinaste cartoons semanais no Público. Isto marcou uma forma diferente de trabalhar, para ti?
Marcou muitas coisas. A primeira foi o afinar muito um carácter icónico nas minhas imagens. O cartoon, quando não tem palavras, é grande exercício de síntese, porque estás a trabalhar para toda a gente e tens de usar máximos denominadores comuns e referências muito globais. Depois, os assuntos são extremamente complexos e se queres entrar neles de uma maneira inteligente tens às costas várias coisas anteriores. E depois há o momento em que percebes as agendas, e também a rapidez, porque muitas vezes fazes o desenho 48 horas antes de ser publicado e de repente estás a trabalhar um assunto que acabou de estoirar e tens de tentar perceber o que vai ser a primeira vaga de opiniões e o que vai ser o day after. Todos esses exercícios são muito interessantes, são uma ginástica. Quando estava a fazer isso apanhei muita coisa, nomeadamente a questão dos cartoons sobre Maomé e o atentado no Charlie Hebdo, e foi pesado, até porque conhecia algumas das pessoas que foram mortas. A dada altura, vi um documentário da BBC que acompanhava o período da Guerra Fria, em que o narrador, às tantas, reflecte sobre aquela geração dos anos 60 e 70, que se diz que esteve a abrir consciências, mas para ele esteve sobretudo a aliviar a pressão. E de repente comecei a pensar naquilo que fazia… Conheci um cartoonista do Irão que esteve preso três anos porque fez uma piada sobre o presidente e percebi que, aqui, os cartoonistas são um pouco como os bobos da corte na Idade Média.
Como assim?
Estamos ali junto da mesa do rei, vamos comendo umas migalhas e dizendo umas coisas de que as pessoas que estão à mesa se riem, porque têm uma certa piada. Mandamos vir com este e com aquele, no registo do humor, criamos uma coisa que alivia uma pressão, mas se não houvesse estes mecanismos de alívio o que acontecia era que a pressão ia subindo, subindo, como aconteceu em muitos sítios do Médio Oriente, e outros. O que senti foi que aquilo que estava a fazer era aliviar pressão permanentemente.
E chegaste à conclusão que era melhor deixar a panela rebentar?
Havia outras coisas… Tentava evitar ao máximo desenhar políticos, porque, mesmo sendo jocoso, o retrato do político é sempre um alimento para a sua visibilidade. Era o caso do Trump, que raramente desenhei. Às tantas comecei a sentir-me deslocado. E havia a noção de que, muitas vezes, os assuntos de que me interessaria falar estavam postos de parte por causa das agendas. Fazia-me sentir que o mundo das notícias era uma máquina em centrifugação permanente e cansei-me, fui fazer outra coisa, até porque há pessoas muito boas a fazer cartoon.
Recentemente, fizeste dois livros que são edições limitadas, o Desenhar do Escuro e o Vigia. Esse processo de seres também o teu editor é muito diferente de trabalhar com uma editora comercial?
Sim, e é um processo que está para ficar, porque acho que há um futuro aí. Desde que comecei a publicar profissionalmente, em 1993, assisti a uma alteração do paradigma. Primeiro, não havia tanta especialização, depois, as pessoas do marketing tomaram conta dos livros e aplicaram as mesmas regras do retalho, transformando tudo apenas em negócio. Eu, que tinha uma experiência de publicar para um mercado de massas, de alguma maneira, fui-me sentindo encurralado num nicho de secção. O modelo de negócio do livro mudou radicalmente para mais títulos e menos exemplares por autor. Isso manteve o negócio para as editoras, mas dificultou a vida aos autores, ou seja, é um ritmo de voracidade do próprio mercado. Por outro lado, a grande machadada que fez aparecer estas duas auto-edições, foi o Covid. Nessa fase, até as editoras pequenas e mais independentes se cortaram e, a seguir ao Covid, só queriam editar aquilo que era mais vendável, para recuperarem. Até agora estou só a queixar-me, mas a parte feliz é que posso fazer o livro exactamente como quero. E a coisa interessante é trabalhar com uma gráfica com quem tenho vindo a estreitar relações, a Guide, na pessoa do Nuno Penedo, que é um homem das artes gráficas muito apaixonado por aquilo que faz. Quando penso estes livros começo a pensá-los com ele e isso é muito interessante. São meses até conseguirmos chegar a um orçamento, porque vamos experimentando. Isso gera objectos que, em termos de preço, dificilmente conseguiria colocá-los em livraria, pelo que privilegiei um contacto directo com os compradores que tem funcionado simplesmente por email e correios.
O teu último livro, Welcome to Paradise, retrata diversas facetas de Lisboa na actualidade, sempre com o turismo a atravessar a cidade. Como é que nasceu este livro?
Foi um pouco o que me tem acontecido nos últimos anos, em relação a esse livro e aos outros dois, que são da mesma altura, os três anos antes e durante a pandemia… O Welcome to Paradise estava pronto antes, e acabei por acrescentar-lhe alguns desenhos já no pós-Covid. O Desenhar do Escuro começou a ser feito mais ao menos ao mesmo tempo que o Vigia. Foram práticas que começaram sem objectivo absolutamente nenhum de serem o que quer que seja, e hoje em dia cada vez mais as coisas me acontecem assim.
Começas a trabalhar sem saber se vai surgir um livro ou outra coisa qualquer?
Sim, cada vez mais. Agora estou a desenhar nuns A1 que hão-de transformar-se em alguma coisa, mas ainda não sei o que lhes vou fazer e agrada-me muito esse lado. É uma concretização de uma ideia que começou a nascer quando, há uns anos, por causa do Subway Life fui a São Paulo e um dia acabei no atelier de um arquitecto, amigo de uma amiga. E para minha surpresa ele vira-se para essa minha amiga e diz qualquer coisa como “sabe, essa coisa do projecto, para mim é assim: eu vou escrevendo e desenhando as ideias de coisas que quero fazer e depois espero que apareça o projecto onde eu possa usar aquilo”. Aquilo depois fez sentido, claro! Como é que uma pessoa vai ter boas ideias de repente? O que tens é de ir mantendo o fluxo criativo permanente, ir fazendo coisas, e depois vão aparecendo os lugares e a lógica. Tem sido um bocado isso.
Manter esse fluxo implica alguma disciplina, imagino.
Implica essencialmente tempo mental e tempo para experimentar. Estes três livros aconteceram no Covid por causa disso, houve esse tempo. A disciplina é precisa depois, para transformar as coisas em alguma coisa. O Welcome to Paradise nasce disso, porque eu andava a desenhar aquelas pessoas e, a dada altura, fazia sentido ser um livro, até porque vivo no centro histórico de Lisboa e aquilo passa-se à minha porta, vejo aquelas pessoas a passarem, vejo os navios de cruzeiro… Enfim, era uma forma de me relacionar com aquilo e acho que boa parte do meu trabalho tem a ver com isso, encontrar maneiras de me relacionar com o mundo, com as coisas, porque as coisas provocam-me pensamentos, sensações, qualquer coisa que não me deixa quieto. Há pessoas que se organizam em movimentos sociais, que lutam pela mudança, há pessoas que se organizam para fazer dinheiro a partir das possibilidades do que vêem, a mim dá-me para o desenho, é a minha maneira de me inscrever no mundo.