Entre panos quentes e desvios de conversa, não é fácil conversar sobre o passado colonial português, talvez porque as heranças que dele ficaram continuam a marcar as vivências quotidianas de tanta gente sem que a maioria queira olhar para essas vivências e reconhecê-las. Na escola, continuamos a aprender a glória da conquista, a falar de “descobrimentos” e a elogiar a “nossa colonização”, sempre mais branda, mais humana e muito mais apresentável que a das outras potências colonizadoras. Esse discurso esconde o óbvio: a ideia de “descobrir” lugares habitados por outras pessoas só tem cabimento quando o umbigo próprio é o centro e a medida do universo. Naquela altura, era assim, dizemos, mas aquela altura é passado e hoje podemos situar-nos no mundo com um pouco menos de egocentrismo. Por outro lado, assumir que há brandura em ocupações territoriais, massacres e escravização de pessoas é apenas delirante. Querer medir a intensidade dessa brutalidade, para criar depois uma escala em que outros foram mais ou menos brutais do que nós, já é negação. Luca Argel é uma das muitas vozes que se tem mostrado pouco disposta a alimentar essa negação. No seu último trabalho, um disco e um livro de título Sabina, parte da história de uma vendedora de laranjas no Rio de Janeiro de fins do século XIX para puxar os muitos fios de uma história que é a do Brasil, mas que também é a do colonialismo português; é do passado e também do nosso presente colectivo. Com ele conversámos sobre esses fios da história e sobre uma narrativa para ler, ver e ouvir. Lá do passado de onde vem, Sabina continua a interpelar-nos e é preciso escutá-la e devolver-lhe a palavra, para que continue a falar.
Os livros podem mudar uma vida, muitas vidas, mas lê-los não garante as boas intenções que por vezes lhes atribuímos de forma quase mágica, como se a leitura assegurasse empatia, um caminho justo, alguma bondade. A Biblioteca de Estaline, do historiador britânico Geoffrey Roberts, agora publicado em português pela Zigurate, dá conta disso mesmo. Explorando os livros lidos por Estaline, Roberts deixa-nos perante o fascínio de conhecer as leituras de um homem com uma folha de serviço repleta de mortos, perseguições e purgas políticas, lembrando que ninguém é apenas uma coisa e que o conhecimento, a curiosidade e o pensamento em acção são apenas isso mesmo. O que fazemos com tal bagagem é já outro passo.
Nesta edição, inauguramos uma nova secção, dedicada às leituras que se arrumam habitualmente na secção infantil e juvenil das livrarias. Se tal secção deveria existir com fronteiras tão rígidas é outra história e o mais certo é que a questionemos muitas vezes. Ainda assim, por aqui andarão pistas para essas leituras, independentemente da idade de quem as quiser fazer.