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      Início Parágrafo Parágrafo #81 JOGAR O JOGO DE DEUS

      JOGAR O JOGO DE DEUS

      Depois de Caderno de Memórias Coloniais, onde predominava o registo autobiográfico centrado na sua ida de Moçambique para Portugal em 1975, e de A Gorda, romance premiado onde a relação com o corpo era ponto de partida para muitas reflexões, Isabela Figueiredo regressa aos livros com Um Cão no Meio do Caminho (publicado pela Caminho, como os anteriores). Neste livro, a autora abandona a narrativa na primeira pessoa, contando a história de José Viriato, um homem que vive do que recolhe no lixo, e a Matadora, a sua vizinha esquiva, que carrega uma culpa dúbia pela morte acidental de um ex-namorado de quem sempre quis vingar-se. Ambos têm passados complicados, memórias recalcadas, a matéria que nos faz experimentar o mundo em confronto com os nossos desamparos e com a sociedade, com os outros e com os movimentos que vão dando forma à nossa vida colectiva.

      Na aldeia alentejana onde passa agora muito tempo, usufruindo do sossego e da natureza na companhia das suas duas cadelas, Isabela Figueiredo falou ao Parágrafo sobre este romance e os caminhos que procura na sua escrita.

      Paulo Castanheira/Editorial Caminho

      José Viriato e Beatriz (a Matadora) são, um pouco como acontecia nos livros anteriores, personagens que carregam um passado muito forte. O facto dessas personagens se irem construindo em diálogo com esse passado tão pesado foi algo pensado desde o início? Ou foi acontecendo?

      Pensei nisso desde o início. Queria ter uma Matadora. O nome que lhe dei, Beatriz, apareceu porque havia necessidade narrativa de a personagem ser chamada pelo nome. Lembrei-me da Beatrix do filme Kill Bill, do Tarantino, com aquela matadora, a Uma Thurman, que passa três filmes até encontrar o homem do qual se quer vingar, e achei que era o nome ideal. A Matadora é isso, uma mulher que precisa de se vingar de um homem… mas é uma personagem antagónica e eu gosto dessas personagens que crescem dentro de mim, mas que acabam por superar-me. São personagens tão contraditórias, que amam e odeiam. A Matadora ama aquele homem, odeia-o, queria fazer as pazes com ele, mas na verdade perseguia-o, e aquele acidente na falésia, ela não quis matá-lo, mas matou-o e sente culpa. Sabe que não matou, mas matou.

       

      Fica uma dúvida.

      Eu, que criei a cena, sei que ela não o matou, mas sei que o quis matar muitas vezes e que naquele momento em que quis encontrar-se com ele, para ouvir as palavras que precisava de ouvir, houve ali um acidente. O tempo estava mau,  escorregou e caiu. Ela não o matou, mas matou. É como lhe diz o José Viriato a certa altura: se ela não o tivesse perseguido, se não tivesse ido atrás dele, nada daquilo teria acontecido. Esta dinâmica, que não sei como me surgiu na cabeça, agrada-me, gosto de situações em que as coisas não são claras e as personagens ficam com muita culpa e não a conseguem resolver. E esta é uma personagem não resolvida para mim, ainda tenho de voltar a ela num próximo romance.

       

      Como uma sequela?

      Não, isso não. O que quero dizer é que hei-de construir uma personagem que resolva esta coisas que não consegui resolver. Em relação ao José Viriato, ele é aquela criança que todos nós fomos. Quis ter um cão, ou um gato, queria levar os animais para casa e os pais não deixavam. É um menino que começa a aprender a viver e a deparar-se com os primeiros obstáculos, os primeiros nãos. Quis criar esse menino, que surgiu num conto que o Jornal de Letras me pediu para a Feira do Livro de Guadalajara. O conto chamava-se “Cristo”, o nome do cão que aparecia no meio do caminho.

       

      E é aí que começa a nascer este Um Cão no Meio do Caminho?

      Sim. Fiquei a gostar muito desse menino, do cão e do núcleo familiar em conflito. A partir daí comecei a desenvolver essas personagens e quis criar esse menino, quis dar-lhe uma vida. Que futuro é que queria para ele? Quem é que queria que ele fosse? Que futuro queria para um filho meu, se o tivesse? No fundo, queria que ele fosse livre. Aquilo que mais quero para as pessoas é o que também quero para mim: liberdade. É por isso que venho aqui para o Alentejo. Depois, comecei a pensar, com as minhas angústias, que não temos hipótese de ser livres.

       

      Porquê?

      Porque estamos inseridos numa sociedade na qual temos de cumprir regras, de trabalhar para pagar a renda da casa, a água e a luz, comer e vestirmo-nos, pelo menos isto. Já nem falo de ir ao cinema ou comprar um livro… Então, nunca podemos ser livres, porque a alternativa é ser um vagabundo. Se não tiveres fortuna ou alguém que te ajude, não tens nenhuma hipótese a não ser trabalhar. E temos sorte se conseguirmos trabalhar naquilo de que gostamos, que é o que não acontece com a maioria das pessoas. O que surgiu na minha cabeça para dar liberdade a esse miúdo foi encontrar uma forma de ele não trabalhar. E de onde lhe vinha o rendimento, mesmo vivendo com pouco e não sendo consumista? Foi aí que fiz a ligação com o excesso da sociedade de consumo e cheguei ao lixo. Por exemplo, eu trago muitas vezes do caixote do lixo da minha rua, em Almada, CD’s, DVD’s e livros que as pessoas deitam fora. E observo, sempre com bastante pudor, porque as pessoas não gostam de ser olhadas, as pessoas que andam ao lixo. Normalmente a partir do final da tarde, as pessoas começam a aparecer. Como vou com as cadelas à rua nessa altura, observo essas pessoas, muitas vezes a partir de um baldio com boa visibilidade para a zona dos caixotes. Observo sem que as pessoas me vejam e isso dá-me que pensar, porque essas pessoas vivem daquilo, mesmo que tenham mais algum rendimento. E o curioso é que há pessoas de todos os géneros, todas as idades, todas as cores.

       

      Passaste muito tempo a fazer essas observações, pensando no livro?

      Sim. Sempre reparei, mas nesta fase observei com mais atenção. Fui criada por uma mãe que não deitava rigorosamente nada fora, como aliás se diz no livro sobre a avó do José Viriato. Havia um bocadinho de cordel, de arame, guardava-se, porque um dia essas coisas haveriam de servir. Sempre me escandalizou muito a quantidade de coisas que as pessoas deitam fora e não aproveitam, deixaram de aproveitar, e penso muito nisso.

       

      Pensando nas várias contradições que estas duas personagens carregam, a forma que encontraste para fazer do José Viriato um homem livre só é possível porque vivemos numa sociedade de consumo, onde o excesso está por toda a parte. Se a sociedade fosse imensamente justa, com os recursos muito bem distribuídos e sem desperdício, José Viriato não podia ter este tipo de liberdade.

      Esse, se calhar, seria um mundo perfeito, no qual eu não acredito, onde cada pessoa teria a possibilidade de desenvolver as suas capacidades. Por exemplo, na escola, o José Viriato, juntamente com a sua amiga Cátia, demonstra uma série de interesses que nunca são incentivados. Ele quer fazer uma horta na escola, e não deixam, quer levar os cães vadios para a escola, para serem protegidos, mas a escola não deixa. Então, há uma série de aptidões naturais que aquela criança tem que a escola bloqueia. E ele é um rapaz com imensas capacidades, mas quando acaba a escola, não sabe o que fazer. Por isso é que vai com a Cátia para o Bairro Alto, vai atrás dela porque não sabe o que fazer. Num outro mundo, ao longo do nosso percurso escolar seríamos levados a fazer aquilo que realmente temos tendência… não queria dizer “vocação”, mas vocação é a palavra, é um chamamento. Na escola não temos essa oportunidade e depois não somos livres. Se uma pessoa seguir o seu chamamento, será livre, mesmo que tenha de trabalhar.

       

      O facto de teres sido professora ter-te-á dado um bom posto de observação para tudo isso, suponho.

      Claro. Quantas vezes os meus alunos quiseram fazer tantas coisas que foram proibidas pela escola, quantas vezes eu quis fazer coisas com os alunos, que lhes dariam tanta vontade de estar na escola, fazer coisas, aprender, e não pude, porque as regras não permitiam. A escola é um sítio muito castrador. E depois há o ranking das escolas, que faz com que os professores estejam a trabalhar não para os alunos e o ensino, mas para os resultados dos exames, porque isso posiciona a escola no ranking e esse posicionamento determina o financiamento da escola. Enfim, é um sistema horrível.

       

      Há um contexto histórico, geográfico, social que, não sendo o tema do romance, se vai desdobrando ao longo desta narrativa. Passa pelo pós-25 de Abril, a questão dos retornados, a Margem Sul do Tejo e os bairros periféricos, o facto de as pessoas viverem para trabalhar. Porque escolheste ligar todos estes fios narrativos?

      A época imediatamente posterior ao 25 de Abril é importante para mim, porque marca uma divisão na minha vida. A minha vida foi uma coisa até 1975, altura em que venho de Moçambique para Portugal, e passou a ser outra depois disso. Não vivi o 25 de Abril em Portugal, na verdade cheguei a dois dias do 25 de Novembro de 1975, já no fim do período revolucionário.

       

      No fim da festa, portanto.

      Sim, e eu tinha muita curiosidade de saber como tinha sido a festa. Então, quis situar este romance mesmo na altura da festa, com os pais do José Viriato a viverem as consequências directas dos primeiros meses do 25 de Abril, aquela confusão, aquela festa. Estudei imenso, li jornais, discursos políticos, livros. Comprei os discursos do Vasco Gonçalves e fiquei apaixonada.

       

      Porquê?

      Tinha uma ideia dele muito negativa, porque as pessoas falam sempre do PREC de uma forma negativa. O Vasco Gonçalves era um homem extraordinário, um grande libertário, incrível! O ambiente do 25 de Abril, ler os jornais e perceber que havia de centenas de manifestações, greves, caminhadas… deve ter sido mesmo a grande loucura. Foi interessante, para mim, fazer essa investigação, mas na verdade tudo isto é um contexto, um subtexto, no livro. Não é uma banda sonora, mas uma banda espácio-temporal, que eu já tinha muito sólida na minha cabeça graças a essa investigação e as coisas foram saindo com naturalidade. Tenho interesse sobre essa época e tenho muito interesse pela questão dos retornados, que acho que não está suficientemente tratada, ainda precisa de umas boas pinceladas. Por isso fui lá, com os amigos do José Viriato pequeno a serem retornados, com aquele discurso reaccionário que muitos retornados traziam, e esse contexto político interessa-me porque define o Portugal que somos hoje. E se calhar no próximo romance vou situar-me aí, num tempo mais presente, mas precisei de ir ali, tratar essa parte da história.

       

      Porque sentes que ainda temos de voltar ao tema dos retornados?

      Por muitos motivos, mas um deles é muito interessante para mim. Se, por um lado, os retornados eram uns grandes reaccionários, na sua maioria, acho muito interessante que tenham trazido para Portugal umas ideias frescas e arejadas que penso que contribuíram para a abertura do país ao mundo. E isto é bastante contraditório, claro, como é que pessoas tão conservadoras, muitas vezes fascistas e racistas – e estou a pensar no meu pai –, tinham simultaneamente um espírito de abertura ao mundo, de intervenção, uma forma de estar activa, que quer realizar e andar para a frente. Essa presença contribuiu muito para o progresso e interessa-me como estas coisas, que podem ser incómodas e politicamente incorrectas para o mundo em que vivemos, têm de ser ditas, porque são importantes. É por isso que acho que a questão dos retornados ainda não está esgotada para mim. É impossível ignorar o efeito que os retornados tiveram na nossa história, apesar de hoje parecer que não existem, porque se fala muito pouco neles. É como se não existissem.

       

      Isso dever-se-á ao nosso habitual maniqueísmo?

      Sim, mas o que se passa é que a maior parte dos retornados que eu conheço na sociedade portuguesa com lugar de destaque ou seja, directores, programadores disto e daquilo, não se sabe que vieram de Angola ou Moçambique. Estou a falar de pessoas da minha idade. E só se sabe de onde vieram se tivermos acesso ao currículo, aí percebemos que são como eu, meninos e meninas que vieram das ex-colónias. E isso é muito interessante, sobretudo quando olhamos para as pessoas que estão no topo das principais instituições culturais, financeiras e até no jornalismo. Muitos são retornados, uma quantidade incrível, e como é que eram só meio milhão e hoje há tantos espalhados por estes lugares. O que é que estas pessoas traziam que não lhes permitia ficarem para trás? Acho que os retornados trouxeram isso, a necessidade de dar um passo em frente. Aliás,  para nós foi um choque enorme chegar a esta terra. Chegar aqui à Albânia [risos]… foi o profundo choque das nossas vidas.

       

      Falas disso no Caderno de Memórias Coloniais.

      Sim, e esse livro é a minha memória, mas aquilo que sou capaz de contar e revelar, outros viveram e não verbalizaram, porque nem toda a gente verbaliza as coisas. E serão muitas histórias por contar.

       

      Há uma série de linhas de reflexão sobre questões políticas neste livro, sendo uma delas a forma como lidamos com os animais e a questão do consumo de carne. Como foi esse processo de inserir uma preocupação política e ética que é tua na personagem do José Viriato, e como conseguiste fazê-lo sem ceder a um discurso panfletário?

      Foi muito difícil e tive de cortar muita coisa, porque sempre que as personagens começavam a falar e eu sentia que estava a ouvir propaganda, cortava. O activismo tem lugar, claro, mas na fase em que eu estou é-me mais útil oferecer aos leitores um romance no qual são confrontados com as questões sem serem manipulados para serem uma coisa ou outra. São quatro ou cinco momentos em que falo da questão animal, da ética animal e da importância do não-humano, e foi tudo muito ponderado, porque são momentos um bocadinho fortes. O leitor reflecte-se naquilo se se reflectir, mas se aquilo não for uma questão para quem lê, passa por ali como naqueles filmes em que há uma imagem quase subliminar, que vemos sem ter visto. A questão da ética animal é muito importante para mim, porque o respeito pelos direitos dos animais e a desindustrialização do consumo de carne vão mudar o futuro, tal como a Revolução Industrial mudou. Tenho 60 anos, é provável que não esteja cá daqui a 30, não sei, mas o filho da minha amiga, que tem 6 anos, vai cá estar e vai ser um adulto activo que vai viver num mundo completamente diferente do meu. Não sei que mundo será em termos de alterações climáticas… não sou muito catastrofista. Interessa-me falar sobre essas questões políticas: por exemplo, como nos alimentamos? Temos a ideia de que só podemos ir buscar a proteína à carne, o que não é verdade. Basta pensar que há hindus e budistas que nascem, crescem e morrem sem comer carne. Ou seja, a carne é uma cultura e a cultura é uma coisa fabricada, não é natural. Interessam-me estas questões políticas, interessa-me mostrar que tudo aquilo que somos é o resultado do molde em que nos meteram. Nós somos uma construção, porque vemos o mundo como somos ensinados, não quer dizer que o mundo seja assim.

       

      Há uma certa ideia de redenção que atravessa este livro, visível de modos diferentes nas várias personagens. Sem querer levar a pergunta para aquele espaço difícil em que se pergunta aos escritores como escrevem, de onde lhes vem o texto, tinhas essa intenção quando começaste o livro?

      Sim, pensei nisso desde o início. Sabia que a última fala do romance seria a da Matadora, embora não soubesse o que ela iria dizer. Não sou um bom exemplo para explicar como os escritores escrevem, porque também tenho essa curiosidade… Vou muito à procura, não tenho um destino determinado, faço como quando vou passear, ou seja, vou ver o que está ali, sem expectativa. E sigo o caminho, a ver onde vai dar. Nas viagens é igual, meto-me em caminhos, vou, e sou surpreendida, mesmo quando há decepção. Quando escrevo, é igual e vou atrás das personagens, até chegarem a um ponto em que tenho de arranjar uma solução para elas.

       

      Como?

      Por exemplo, precisava que o José Viriato dissesse uma quantidade de coisas sobre as questões de ética animal. Ora, para ele as dizer, teria de as dizer alguém. A Matadora e o José Viriato tinham de se encontrar e a Matadora vai parar àquela casa porque acontece o acidente na falésia e ela, num momento de pânico, resolve sair do lugar onde mora e vai parar ao bairro onde mora o Viriato. Começa a espiá-lo à janela e ela começa a perceber… As coisas vão evoluindo e tudo isto são soluções que me vão aparecendo, não planeio antes. Hoje escrevo isto e posso ficar a pensar três dias em como é que vou resolver uma questão, por exemplo, esta de como eles se encontram. E um dia penso que a melhor maneira é ela precisar de ajuda dele para alguma coisa, e aí aparece a gripe. É assim, é preciso ir à procura, não há uma técnica.

       

      E o papel redentor dos cães, não apenas os que o José Viriato tem no presente, mas todos os outros, do passado, estabeleceu-se desde o início?

      Sim. O romance começou por esse tal conto para o Jornal de Letras e lembro-me de estar a falar com o Zeferino [Coelho], na Leya, e a dizer-lhe que me tinham pedido esse conto e que eu queria escrever sobre cães. E quero. A minha vida com os cães levou-me a perceber uma coisa interessante: a Adília Lopes diz isto no Irmã Barata, Irmã Batata, e é verdade, os cães não são autorizados a entrar na igreja e no entanto são os únicos que não têm pecado. Há nos animais uma curiosidade e uma inocência tão puras que às vezes penso que entraram num estado de paz e encontro com uma existência qualquer transcendente, ou seja, de uma enorme completude com o universo, que nós andamos sempre a procurar. E eles não precisam de fazer meditação, nem yoga, nem chi kung para lá chegarem, já têm aquilo que nós não temos, já estão nesse estádio não-verbal e existencial que nós achamos que é inferior ao nosso, mas não é. O que sinto quando estou com as minhas cadelas é que há uma comunicação profunda entre nós as três, uma comunicação não-verbal, mas muito intensa. E quero muito escrever sobre isto, porque quero escrever sobre as coisas que me movem, como esta vida simples, próxima da natureza, dos animais, do silêncio e das coisas que observo e vou concluindo.

       

      Ao contrário de Caderno de Memórias Coloniais e de A Gorda, este romance não é narrado na primeira pessoa e também não tem essa ligação com a tua biografia ou as tuas memórias. Foi uma decisão consciente?

      Sim, foi. Podia ter escrito isto tudo na primeira pessoa, tornando-me personagem, mas não quis. Quis colocar-me o desafio de criar personagens totalmente desconhecidas, de me relacionar com elas e as ver desenvolverem-se. Já tinha feito isso n’A Gorda, com algumas personagens, e gostei, e queria agora desenvolver. Preciso de crescer como escritora, preciso de ensaiar várias coisas ao nível narrativo, não apenas o espaço ou o tempo. Por exemplo, sei que trabalho bem o tempo.

       

      Esse jogo de avançar e recuar sem quebrar a narrativa, como acontece neste livro?

      Sim. E sei que é difícil, mas precisamente por isso tenho uma grande obsessão com o tempo. Sei que trabalho bem a caracterização indirecta das personagens, sou capaz de matar uma mãe sem usar a palavra morte, de criar de um pai homossexual sem usar a palavra homossexual, mas criar uma vida a partir do nada, isso é um grande desafio para mim, criar personagens que não são aquilo que nós somos. O José Viriato até tem alguma coisa minha, porque pensa politicamente como eu, mas a Matadora não tem nada, é-me totalmente alheia. No outro dia perguntaram-me se eu gostava dela ou não.

       

      E a resposta?

      Não fui capaz de responder. Criei-a, sim, mas não sei se gosto dela, e também por isso sinto esta necessidade de a desenvolver mais, de a conhecer melhor. Tenho de saber quem é ela, se é mesmo fria e insensível, tenho curiosidade.

       

      Disseste em várias entrevistas que estavas a crescer como escritora e a procurar caminhos para o fazer, para aprender. O que aprendeste com este Um Cão no Meio do Caminho?

      Aquilo que me fascinou foi a forma como construí um destino para uma criança que queria um cão, uma criança que vinha de uma família complicada, que vivia com os pais, depois foi viver com a avó e depois deixa de viver com a avó e quer ser livre, mas fica com essa culpa… Isto é construir vida e foi isso que aprendi. Fascina-me muito solucionar nós narrativos. Por exemplo, no início tinha colocado como projecto a Matadora atirar propositadamente aquele ex-namorado da falésia, e por isso ficou a Matadora, mas quando estava a escrever a cena percebi que ela não tinha de o atirar, ele podia cair sozinho e seria muito mais interessante. Isto foi uma revelação, foi uma surpresa para mim. Estas revelações, esta coisa de perceber que as coisas podem acontecer de outras maneiras, é um jogo.

       

      E seria mais difícil esse tipo de reviravolta se estivesses a trabalhar a partir das tuas memórias?

      Claro! Aqui, pode acontecer tudo. E foi uma glória para mim quando percebi que ela podia matá-lo sem o matar. É maravilhoso descobrir como construir vidas, como resolver os nós da vida. É jogar um jogo no qual se faz o papel de Deus.