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      Início Opinião Língua, direito e espírito

      Língua, direito e espírito

      Muito antes da China, já Macau estava dividida em sistemas, com portugueses de um lado da muralha e os chineses do outro. Não havia qualquer simetria. Sendo a relação de forças desigual, não pendia necessariamente a favor dos mais numerosos e o equilíbrio foi sempre a palavra de ordem de poderes bem sabedores dos seus limites.

      A Procuratura dos Negócios Sínicos, que de diversas formas perdurou desde a constituição do Senado, na década de 1580, até ao fim do século XIX, foi a institucionalização dessa divisória numa jurisdição mista, que continuou até aos últimos dias da administração portuguesa de Macau, onde a língua de trabalho do “Estado” não era a da maioria da população e onde só muito tarde se incentivou o ensino da língua de Camilo Pessanha. Mas isso não bastava (e não bastou).

      Como se salienta no estudo “Macau, o Pequeníssimo Dragão” (1998), da autoria de Boaventura Sousa Santos e Conceição Gomes, dada a história do território, que também era feita dos fluxos migratórios de diversas comunidades chinesas com línguas e dialectospróprios, “em Macau, as questões linguísticas são das mais complexas, responsáveis por alguns bloqueamentos na acção governativa e um dos factores mais relevantes do distanciamento entre a Administração portuguesa e a maioria da população local”. Numa terra em que muitos não sabiam sequer o nome do governador, não surpreendia que a maioria não conhecesse as leis que regulavam a sociedade a que pertencia.

      Socorro-me novamente de “Macau, o Pequeníssimo Dragão”, o mais extenso e exaustivo estudo sócio-político alguma vez feito sobre o território: só a partir de 1996 é que existiu um Código Penal em língua chinesa; “naturalmente”, conclui-se, “só por esta razão, o acesso democrático ao direito e à justiça é fortemente condicionado, dependente, em regra, do pagamento de serviços de intermediação. (…) [A]ctos que em Portugal estão acessíveis aos cidadãos em geral, em Macau implicam a intervenção de advogados, solicitadores ou procuradores. Esta situação é agravada pelo facto de a maioria dos operadores do direito e sobretudo dos responsáveis máximos da Administração serem portugueses sem domínio da língua chinesa”. Hoje, a realidade é obviamente outra.

      De acordo com dados da Associação dos Advogados de Macau, citados pela agência Lusa, em 1999, cerca de 70 por cento dos advogados inscritos (87, mais 13 estagiários) eram de língua materna portuguesa. Actualmente, são mais de 430 os advogados inscritos e mais de uma centena os estagiários, e só 30 por cento serão de língua materna portuguesa, que também está a ser cada vez menos usada nos tribunais. A inversão é completa. O último reduto de um poder simbólico esfuma-se.

      Nada disto aconteceu de um dia para o outro. A gradual transformação ao longo das últimas décadas, sobretudo a partir de 2000, não era difícil de prever pelas autoridades portuguesas que tiveram de lidar com o tema nos anos finais da sua administração. Mas por mais fundamental que fosse, na verdade, esta era apenas mais uma das muitas questões legadas pela história.

      Foi só em 1987, com a Declaração Conjunta, que assentaram algumas ideias sobre o futuro, incluindo a da permanência do sistema jurídico do território para lá daquela que seria a data da transição, 1999.

      Em 1988, num relatório do Gabinete de Documentação e Direito Comparado sobre “A informação científica e técnica de natureza jurídica no Território de Macau”, um dos objectivos era o estudo dos “problemas subjacentes à preparação da versão chinesa de diplomas legislativos de Macau”.

      Não se notava, todavia, que fosse uma prioridade particularmente palpitante. A “utilização da língua chinesa” merece apenas quatro curtos e algo vagos parágrafos no documento de pouco mais de 40 páginas. Em suma, recomendava-se que “a utilização da língua chinesa no sistema de administração de justiça deve passar por uma adequada preparação de textos jurídicos de apoio (legislativos, jurisprudenciais ou de doutrina) que garanta aos elementos do Território que não dominam o português a possibilidade de aceder e utilizar este tipo de informação”. Ou seja, devia-se apostar na produção de conteúdos explicativos, talvez esperando que fosse mais fácil a população chinesa de Macau aprender português do que traduzir as leis todas.

      Contudo, a administração portuguesa de Macau também acordou tarde para o bilinguismo. Foi só em 1985 que essa ideia entrou com laivos de política no discurso oficial, após a criação da Comissão de Implementação da Língua Chinesa para elaborar os “estudos necessários e apresentar propostas que possam conduzir ao incremento da utilização daquela língua pelos órgãos e agentes da Administração e ao reconhecimento de um mesmo estatuto para as línguas portuguesa e chinesa”. A “médio-longo prazo”, preconizava-se, ambas as línguas estariam “igualmente incrementadas em todos os níveis do funcionalismo público”.

      Nada ilustra melhor o quanto havia por fazer como a achega deixada pelo presidente da comissão, Morais Alves, já no final da apresentação pública do relatório ao encarregado do governo, o coronel Amaral de Freitas, sugerindo a tradução para chinês do próprio relatório, bem como a sua divulgação. Era uma boa ideia, sem dúvida.

      O relatório da Comissão para a Implementação da Língua Chinesa reconhecia que o bilinguismo, enquanto “problemática integral”, exigia ser “objecto de uma política do governo”, com incidência em todas as áreas da vida social e administrativa. Não se dizia assim, mas tratava-se claramente de um trabalho mastodôntico que tinha de fazer-se em contra-relógio.

      Como a realidade dos anos vindouros se encarregaria de esclarecer, no entanto, o mais difícil não seria traduzir a letra da lei, mas sim respeitar o seu espírito. E esperar que não se desvanecesse uma máxima lembrada numa proposta de um programa de divulgação do Direito, entregue ao governo de Macau, em 1991: “não é o Homem que é feito para o Direito, como fatalidade a cuja carga não pode escapar, mas é o Direito que existe para o Homem”. A sociedade teria agradecido.

       

      Hugo Pinto

      Jornalista