Joana Merlini é uma criadora instigante que sintetiza a sua identidade multicultural em intervenções urbanas. Conhecida como Jojo Stickers, nasceu em Macau e utiliza as ruas como telas para espalhar mensagens de “amor e conexão” por meio de murais e autocolantes. Acredita no poder da iniciativa como essência da arte, levando as suas experiências e visões a comunidades ao redor do mundo através de colectivas de arte, como o projecto solidário “You Are Not Alone”. Este ano participa no HKWalls, renomado festival de “Street Art” na grande metrópole vizinha. Em entrevista ao PONTO FINAL, Joana Merlini deixa um vislumbre de uma vida de aprendizagem pelo mundo.
“Arte é amor e eu quero é espalhar amor”. Foi assim que a conversa com Joana Merlini começou. Uma história de vida rodeada pela criatividade e a procura por novos lugares que acolhessem um coração curioso e cheio de vontade de partilhar uma incessante vontade de criar, para sempre acompanhada de um orgulho em dizer: “Sou de Macau”.
“Se algo não existe, sinto que tenho a necessidade de o criar”. Assim funciona uma artista multifacetada, que se destaca pelo seu envolvimento em projectos que cruzam fronteiras e culturas. Nascida em Macau em 1986, formou-se em multimédia pela Universidade Lusíadas de Lisboa, regressando a Macau para dar início à sua jornada artística em 2016. Foi nesse ano que se uniu ao seu mentor PibG2038, do grupo de arte urbana GANTZ5 de Macau, para explorar as possibilidades criativas da pintura de murais, também conhecido como “graffiti”. Desde então, tem se tornado uma presença marcante nas ruas e muros de diversas cidades, incluindo Hong Kong, República Checa, Inglaterra, Portugal e EUA.
Conhecida artisticamente no mundo da “street art” como Jojo Stickers, descobriu uma paixão pela criação e distribuição de autocolantes em pequeno formato, outra forma de manifestar essa vontade de intervir na cidade e expor as suas ideias aos habitantes do espaço urbano. Prática essa que a levou a conhecer outros artistas, anonimamente, através de ‘stickers’ que iam surgindo ao redor dos seus.
Um dos seus projectos consiste em três peças de arte em ‘paste-up’, um estilo de arte urbana que consiste em colar papel ou imagens impressas em superfícies públicas utilizando diferentes tipos de adesivo. As obras foram inspiradas na correspondência entre Virginia Woolf e Vita Sackville-West, para a Royal Academy of Arts em Bristol. Essa imersão na literatura reflecte o seu entendimento de que a arte pode captar emoções e histórias profundas, mas foi a prática do ‘paste-up’ que a trouxe agora ao festival de arte urbana HKWalls.
A iniciativa que já acontece há 10 anos vai decorrer entre os dias 22 e 30 de Março e coincide com o Mês da Arte de Hong Kong. A HKWalls é uma organização artística sem fins lucrativos que visa promover a arte de rua e a cultura urbana em Hong Kong. Concentra-se em conectar artistas, tanto locais quanto internacionais. O evento serve como plataforma para a exposição de talentos diversos, ao mesmo tempo que procura aumentar a conscientização sobre a importância da arte urbana na comunidade. Além disso, a HKWalls oferece programas voltados ao desenvolvimento profissional e workshops de artistas, um dos quais será apresentado por Merlini, no tema da arte de ‘paste-up’, com apoio da ColleXtives de Macau.
A sua contagiante energia conversadora e ávida dedicação faz de Joana Merlini uma criadora que acredita no poder transformador da arte, usando a sua plataforma para promover mensagens de esperança, conexão e resiliência nas comunidades.
Como é que o seu percurso artístico culminou na participação num festival como o HK Walls?
O meu percurso artístico começou em Macau, com influência da minha mãe que é arquitecta e o meu pai, engenheiro, responsável por várias construções em Macau. Comecei desde pequenina a desenhar e a pintar. Aliás, o maior orgulho da minha mãe ainda é quando ganhei uma competição de desenho ainda criança e mantive essa chama acesa do desenho e continuei sempre a pintar. Aos 20 anos conheci o Pat Lam, também conhecido como PibG2038, o maior do graffiti aqui de Macau. Foi o meu mentor e ajudou-me a enriquecer essa curiosidade pela arte em murais. Mas queria criar mais impacto na vida das pessoas, porque eu sou muito de espalhar amor. Depois de passar um tempo em Lisboa, onde a cena de arte urbana não era tão desenvolvida, percebi que precisava de expandir os meus horizontes. Mudei-me para a República Checa, onde tive a oportunidade de ensinar na Universidade de Praga e mergulhar na cena artística da cidade, através de “art jam sessions” (sessões de arte em conjunto) e workshops com a comunidade local em parceria com a Molotow Prague. Foi uma experiência muito autêntica, onde a arte estava inserida em cada esquina e tive tempo, por causa do COVID, de observar mais esse lado artístico. Depois, fui para Londres, onde participei pela primeira vez no Festival Paste Up, que me ajudou a conectar-me com artistas de todo o mundo e começar a minha aventura pelas várias coletivas. Faço agora parte activamente de cinco, o Art House Project em Londres, o próprio London Paste Up Festival, o Bristol Mural Collective, o projecto de prevenção do suicídio “You Are Not Alone Murals” e a Lisbon Walls Collective. Envolvi-me também com causas sociais como o “Yes You Can Spray” em Lisboa e “Urban Pictus” em Praga. Agora, de volta a Hong Kong vou outra vez estar a organizar um ‘art jam’ de ‘paste-up’ no HKWalls e sinto que estou aqui para dar uma voz aos artistas de Macau e representar a cultura que temos. Porque alguns dizem que portugueses nascidos em Macau não são macaenses. Mas sinto-me macaense sempre.
Qual é o principal objectivo do HKWalls Festival 2025 e como esta edição comemora o seu 10.º aniversário de forma especial?
O HKWALLS Festival é uma celebração da arte urbana, mas fundamentalmente é sobre comunidade e inclusão. Para o 10.º aniversário, destacam a importância da arte como uma linguagem universal que conecta as pessoas. Portanto, penso que o objectivo principal seja dar uma plataforma para que artistas locais e internacionais se unam, compartilhem as suas narrativas e criem. Como disse Jason Dembski, cofundador do festival: “A diversidade de artistas seleccionados ajuda a destacar as possibilidades da variedade de projectos apresentados ao público, e esperamos inspirar jovens artistas. Estamos também a organizar workshops, como o que será feito com o Pat Lam e a equipa do Outloud de Macau, além de lançarmos um novo programa chamado H.K. Walls Rooms para exposições. A edição deste ano será especial com eventos interactivos e exposições que enfatizam a diversidade das vozes artísticas, criando um espaço onde todos têm a oportunidade de se expressar e ser ouvido. A cena de graffiti está a crescer, mas ainda é pequena em comparação com cidades europeias. O público de Hong Kong tem-se tornado mais acolhedor em relação à arte de rua, e estamos a ajudar com iniciativas como um programa de mentoria para jovens artistas.” A intenção do meu projecto de ‘paste-up’ no HKWalls enquadra-se bem nesta tentativa de interagir com o público de Hong Kong e quem quiser vir de Macau participar.
O que seria o ‘Paste Up’? Como se integra dentro do HKWALLS?
O ‘Paste Up’ é uma técnica de ‘street art’ que transforma o ambiente urbano através da colagem de obras impressas em papel. É leve, acessível e, acima de tudo, criativo. Dentro do HKWALLS, o ‘Paste Up’ assume um papel central, não apenas como uma forma de arte, mas como um meio de interacção social. Planeamos criar um espaço onde as paredes sirvam como telas para artistas de diversos estilos, permitindo uma mistura de ideias. A ideia é criar um mural evolutivo, onde os artistas possam interagir, e cada pedacinho de arte contará uma história nova.
Como é que a sua experiência e background artístico em Macau e Portugal contribuem para a visão criativa que traz agora ao festival?
A minha vivência em Macau trouxe uma compreensão profunda das suas tradições e da fusão cultural que acontece aqui. Ao mesmo tempo na Europa, especialmente Lisboa e depois Bristol, proporcionou-me uma visão sobre a arte urbana contemporânea e como ela pode ser um motor de mudança social. Essa combinação de influências moldou a minha visão criativa para o HKWALLS. Quero que este festival não seja apenas um evento artístico, mas uma plataforma que crie diálogos significativos e que demonstre a evolução da arte urbana. Estou aqui para fazer a ponte entre os artistas locais e internacionais, trazendo experiências únicas de várias culturas, incluindo Macau, com base na minha experiência em organização de eventos também. Às vezes sinto que tenho muita sorte de conhecer estas pessoas e lugares, mas como a minha família sempre disse: “A sorte procura-se!”
Quais são os maiores desafios que enfrentou ao equilibrar o seu próprio trabalho artístico com a organização de eventos e colectivos de arte?
Um dos desafios mais significativos tem sido motivar e engajar outros artistas, especialmente quando o meu trabalho é voluntário. Às vezes sinto que é um esforço solitário, onde eu sou a única a puxar pelo grupo. É desgastante quando tantas pessoas talentosas estão ao meu redor, mas nem sempre há a mesma disposição para se envolver. Não é essencial ter talento na Arte, mas sim iniciativa. Isso me faz reflectir sobre a importância da comunidade e de como nos podemos apoiar uns aos outros. Apesar dos desafios, estou aqui por paixão. Falo com os artistas, mando mensagens, confirmo se eles enviaram, procurar mais artistas e tento dar mais espaço para cada um. A arte é minha vida e o meu propósito, e mesmo que os obstáculos surjam, nunca deixarei de acreditar que podemos criar algo incrível juntos.
Na sua opinião, como está Macau a desenvolver-se na arte urbana?
Confesso que como estou fora de Macau há algum tempo não sei com que entidades específicas falar, mas procuro conhecer. Mas gostaria que houvesse alguma conexão, por exemplo, com o festival em Hong Kong. Mas criar estas colectivas culturais eu acho super importante, principalmente numa conexão Macau-Portugal. Acredito que Macau tem um grande potencial para desenvolver a arte urbana através de colectivas culturais e colaborações. É crucial estabelecer conexões entre artistas de Macau e do exterior, tais como o grupo do Outload Festival, especialmente num mundo tão interconectado. Há artistas de destaque internacionais, que até podem ser convidados para os eventos, mas e nós, os locais? Devíamos ter um apoio maior, um suporte mais apelativo nas paredes legais de Macau. Gostava de criar mais laços e deixar este “bichinho” do ‘paste-up’ para as pessoas começarem a fazer mais. Agora mesmo estar a falar para o jornal e deixar aqui esta mensagem, de que é possível fazer, e se calhar enquanto eu não estiver em Macau posso tentar propor à distância e criar um festival de ‘paste-up’ até ao final do ano. Quem sabe?
Algum artista ou grupo de Arte Urbana que gostaria de destacar como uma influência ou pelo seu trabalho?
Um artista que sempre me inspirou é o PibG2038, tem sido uma espécie de mentor para mim. Outro destaque seria a dupla AAFK, um casal que admiro muito. A minha colaboração com o colectivo Bristol Mural, um grupo que se dedica a causas sociais através da arte também pode ser outro exemplo. Não sou muito de escolher uma influência ou falar dos outros. Mas recentemente, conheci uma jovem artista chamada NeSpoon, de Hong Kong, que tem um estilo único, misturando elementos de bordado, como aquelas rendas que as avós têm, nas suas obras, o que é uma abordagem criativa e muito convidativa. No cenário da arte urbana, cada um traz sua própria narrativa, e isso é o que torna a comunidade única.