A vitória de Trump nas recentes eleições presidenciais nos Estados Unidos lançou já ondas de choque na política mundial e na imprensa “mainstream”.
Nunca se percebeu o que a candidatura significava e como os Estados Unidos tinham chegado a um beco sem saída, com um presidente debilitado sem capacidade de liderança com saúde periclitante e incompetente para solucionar os problemas dos norte-americanos.
Por detrás da linguagem ríspida e por vezes inconveniente de Donald Trump, ninguém percebeu que a sua candidatura correspondia a necessidades profundas do povo norte-americano, em termos de manutenção dos postos de trabalho, reforço do tecido empresarial, contenção do agravamento de preços dos bens essenciais e recentragem do projecto nacional.
A história da América, desde 1776, está marcada por ciclos de abertura ao exterior e compromisso internacional e contraciclos de fechamento, em redor do interesse nacional e da resolução dos problemas internos. Lembro os presidentes Monroe e Harding no princípio do século XX.
Com Biden fecha-se o ciclo da América grande potência, bastião da democracia e dos direitos humanos e da conversão de todo o outro mundo ao paradigma norte-americano. Como se ele fosse um fato em que coubessem todas as especificidades, identidades nacionais e modelos de desenvolvimento.
Entramos agora num período de uma América que se fecha sobre si mesmo e intenta – se o conseguir – sarar as suas feridas internas. A vitória de Trump, com a maioria esmagadora do colégio eleitoral, a passagem do controlo do Senado para os republicanos e a derrota dos democratas no Congresso, coloca nas mãos de Trump a condução de toda a política doméstica, sem bloqueios políticos. Isso não significa, em minha opinião, o fim do sistema de pesos e contrapesos internos. Como Harris disse jura-se fidelidade não a um homem ou partido mas a uma Constituição. Mas existe uma transformação significativa na orientação da política externa em cinco planos: o sistema comercial mundial, a defesa atlântica e a NATO, a guerra na Ucrânia e a relação com a Rússia, a guerra no Médio Oriente, a complexa relação com a China.
Há no plano interno a adopção de uma política nacionalista, em defesa dos interesses americanos, em detrimento de compromissos que Trump considera terem vindo a prejudicar o país. Aliás o nacionalismo não é um exclusivo norte-americano, é uma tendência do nosso tempo um pouco por todo o lado, inclusive na Europa.
Na política comercial, Trump irá proteger as indústrias americanas e realinhar as relações comerciais mesmo em detrimento das regras de liberalização do comércio mundial que têm sido a regra, desde metade dos anos 1990. Isso afectará as relações com os seus parceiros europeus e sobretudo com a República Popular da China. Não há nenhum outro país que tenha cavalgado as regras do comércio mundial com a sabedoria e a eficiência da China. Subsidiando largamente as suas empresas nacionais e conglomerados, a China tem aproveitado as regras do comércio livre para colocar os seus produtos de exportação em condições particularmente favoráveis nos mercados de destino. Uma das primeiras medidas de Trump será reforçar as taxas à importação de bens e serviços da China e da Europa. O déficit comercial com a China atingiu os 31,8 mil milhões de dólares. No primeiro trimestre de 2024, o déficit comercial entre os EUA e a UE foi estimado em aproximadamente 38,5 mil milhões de dólares.
Aliás, para sermos verdadeiros, Joe Biden nunca desfez o sistema de tarifas aplicadas às importações da China que Trump criou no seu mandato, tarifas em cerca de 25% do valor das mercadorias. O que irá acontecer é o seu agravamento, o que poderá acontecer de uma só vez ou de forma faseada. Iremos sabê-lo, quando conhecermos a equipa de secretários de estado que Trump irá constituir. Processo que decorrerá a partir de agora até à sua posse.
No que respeita à defesa atlântica, Trump tem afirmado inúmeras vezes que discorda do esforço desproporcionado do país no financiamento da NATO e na modernização do seu equipamento estratégico-militar. Em 2023, aproximadamente 11 dos 31 países membros da organização cumpriram a meta de 2% do PIB, o que deixa uma larga lista de incumpridores que beneficiam de todas as componentes de defesa da NATO, sem encargos significativos. Não antevejo que Trump faça o país sair da NATO. Irá recentrar as necessidades de defesa no plano interno, estimulando as indústrias nacionais e modernizando o arsenal nuclear que o país dispõe. Os EUA possuem cerca de 5.550 ogivas nucleares, com uma parte delas (cerca de 1.644) estrategicamente implantadas. Com a capacidade nuclear da Coreia do Norte e do Irão a afirmarem-se, a balança da dissuasão nuclear modificou-se de forma significativa e a ameaça externa já não se resume à Rússia e à China mas tem novos protagonistas.
O suporte norte-americano à Ucrânia não faz, do ponto de vista de Trump, sentido. Os meios financeiros e armamento que têm sido canalizados para Zelensky são para Trump desproporcionados, comparativamente à contrapartida de países europeus que pouco ou nada têm feito em termos de ajuda financeira e militar a Kiev. Com uma guerra cujo fim não está à vista e sem uma vitória clara de um dos protagonistas, Trump aproveitará a sua relação pessoal com Putin, para forçar o início de negociações de paz entre Moscovo e Kiev, com mediação dos Estados Unidos e de outros actores. Existem várias soluções de armistício, que desenvolverei noutra ocasião, mas não é crível que os Estados Unidos continuam a linha de envolvimento na guerra da Ucrânia. Trump quer encontrar uma nova plataforma de relacionamento com Moscovo e Putin. Diferente do anedótico que se lê na imprensa internacional Trump não é uma marionete de Putin mas aproveitou-se do narcisismo e megalomania do líder russo para seu próprio benefício. Intuo que seremos surpreendidos por uma relação cautelosa entre Trump e Putin. A política externa nos EUA depende de três pessoas não uma: o presidente, o conselheiro de segurança nacional e o secretário da defesa.
Já quanto ao Médio Oriente, Trump sabe que a continuação da actual situação de guerra aberta entre Israel e os palestinianos é desfavorável aos Estados Unidos. Introduz um factor de perturbação, na relação com os países do Golfo Pérsico, problematizando a estabilização do preço do crude com impacto inflaccionista internacional, mas sobretudo na economia norte-americana. Apoiando claramente Netanyahu no esforço de eliminação do Hamas, Trump tentar-se-á, até por pressão internacional e dos seus aliados no Médio Oriente, a franquear uma solução de governabilidade duradoura de Gaza, sem o Hamas, com participação da Autoridade Palestiniana mas também dos países árabes. Ou seja, a recuperação do plano de Biden, sem o chamar por esse nome. Até porque mais que Netanyhau, Trump está interessado em diminuir a ameaça do Irão cuja projecção de força tem criado um alvoroço em outras capitais árabes. A linha de clivagem xiistas-sunitas nunca foi tão evidente como o é, neste momento.
Finalmente, Biden manteve uma relação crispada com Xi Jinping, que prejudicou os interesses dos Estados Unidos na defesa da sua posição estratégica no Pacífico. Trump tem a percepção que essa posição é essencial para os Estados Unidos, mas será mais calculista no relacionamento com o líder chinês. No seu primeiro mandato, Trump reforçou o relacionamento dos EUA com Taiwan de várias maneiras, mesmo sem reconhecer formalmente a ilha como um país independente. Fé-lo através da venda de armas a Taiwan, incluindo equipamentos avançados como caças F-16 e mísseis, fortalecendo a capacidade de defesa da ilha. Prevejo que Trump não se afastará agora dessa linha de orientação. Há um factor novo que joga em seu benefício. O envolvimento norte-coreano na guerra da Ucrânia, ao lado das tropas russas, apanhou os chineses de surpresa. Ao que se percebe, a contrapartida da colocação de tropas norte-coreanas nos territórios do Dombass, envolve o fornecimento pela Rússia de combustível, alimentos e cooperação em tecnologia militar avançada, incluindo tecnologia de mísseis e satélites. Essa é uma enorme dor de cabeça para Xi Jinping, dada a tradicional dependência de Pyongyang da assistência de Pequim. A balança de poderes regional fica assim desestabilizada e Seoul tentar-se-á a reforçar o seu arsenal militar e estratégico.
O mundo vai entrar num novo ciclo que trará profundas mudanças ao sistema internacional por ora imperscrutáveis. Lembro o que disse George Washington no seu “Farewell Adress”: “a história e a experiência provam que a influência estrangeira é um dos inimigos mais nefastos do governo republicano”.
Arnaldo Gonçalves
Jurista e antigo professor de Ciência Política e Relações Internacionais