Figura incontornável da moda e do design têxtil em Macau e regiões vizinhas, Clara Brito confessa-se rendida ao charme e singularidade de certos materiais tradicionais da região do Delta do Rio das Pérolas, como a seda da lama de Cantão, a cerâmica, ou a madre pérola. A designer da Lines Lab e responsável pela Munhub, partilhou com o PONTO FINAL os detalhes do seu último projecto, na sequência da sua residência artística na Fundação Oriente. “Tomorrow’s Heritage” faz um mapeamento de tecidos e materiais antigos, numa tentativa de arquivo de uma herança única do sul da China que está em vias de desaparecer. A artista falou-nos ainda da sua nova exposição, que será inaugurada na Casa Garden no dia 23 de Setembro. “She Left Her Body” pega nestes materiais tradicionais e na linguagem da moda como tela artística, explorando temáticas como a literacia emocional, e o conceito psicológico de dissociação: quando a única forma de sobrevivermos a situações difíceis, é de nos tornarmos distantes, e “deixarmos” o nosso corpo.
Foi num pequeno café no centro da cidade que encontrámos a designer e artista Clara Brito. A poucos passos dali, na Livraria Portuguesa, estão à venda algumas das suas célebres malas ‘CUT’ da Lines Lab, e a marca também já teve uma loja própria ali ao pé, na Rua das Ervanárias. Mas esses foram outros tempos. Entretanto, a designer já viveu em Zhuhai, e já colaborou com colegas do mundo da moda de todas as margens do Delta do Rio das Pérolas. Depois, com a epidemia, e o regresso a Macau, esta dinâmica de trabalho ficou suspensa, dando espaço a processos internos. Mas Clara Brito é daquele tipo de pessoas que confessa que até foi bom parar. Agora, pronta para novos projectos, a designer está a aproveitar a abertura das fronteiras para revisitar fornecedores, lojistas e artesãos, recolhendo, filmando e arquivando estes materiais do sul da China, que considera tão especiais. O plano é fazer um arquivo digital e mapeamento destes tecidos e materiais tradicionais para que não caiam no esquecimento, e nos lembremos deles, porque são a “herança do futuro”. A artista considera ainda que, ao mesmo tempo que se preserva o passado, também é crucial e urgente actualizar o presente, porque a indústria da moda é a segunda mais poluidora do mundo, e já é tempo de parar de produzir roupa a este ritmo, e preferir produtos mais sustentáveis, e duráveis.
A Clara tem uma marca de design de moda, a Lines Lab. Como está esse projecto?
A Lines Lab neste momento está numa fase de restruturação, sem planos muitos delineados e específicos. Eu pessoalmente, que sempre estive muito ligada à área da moda, estou numa fase em que não é uma área que me interesse muito. Eu sempre fui muito crítica em relação ao universo da moda, portanto, também foi isso que, por exemplo, não me fez estudar moda, porque eu poderia ter ido para o curso de moda da Faculdade de Arquitectura, e optei por ir para a Faculdade de Belas Artes e estudar design de equipamento. Eu sempre tive assim uma relação de amor-aversão à área da moda, só que é uma área muito próxima de mim, que chegou a mim através da minha avó. Ela era, e ainda é, uma costureira ‘top’, e eu aprendi e convivi muito com ela. Já na altura da Faculdade de Belas Artes havia pessoas que queriam que eu desenhasse coisas, e eu trabalhava com a minha avó. Depois acabei por fazer muito ali uma fusão entre a moda e o design de equipamento. Havia esse lado mais forte de design. Desagrada-me o lado da moda, de seguir tendências, e duas vezes por ano, ter de lançar a colecção, uma estratégia que, no fundo, é feita apenas para alimentar o mercado. Ainda por cima, hoje em dia com esta questão da ‘fast fashion’, é uma coisa que me custa, porque já nem se quer é duas vezes por ano, é com um ritmo que o mundo não aguenta, basicamente. A moda é a segunda indústria mais poluente do momento. Com esta reformulação toda, estou a pensar um pouco o que fazer com a Lines Lab. Eu nunca vou deixar de desenhar, e estar próxima do universo da moda, mas gosto mais de uma coisa mais de nicho, mais pequena, de qualidade.
E a reciclagem de materiais usados, isso agora também é uma tendência agora na moda, o que acha dela?
Gosto, e também da pesquisa de materiais inteligentes, materiais anti-mosquito, materiais anti-nódoa, numa relação mais de tecnologia, do ‘upcycling’ também, mais ecológico, pensares no ciclo todo do produto. Mas ainda estou nos primeiros passos, ou seja, ando a identificar parceiros, cá e em Portugal, estou a identificar essa vertente da tecnologia, mas sem ainda nada muito definido do que vai acontecer.
E sei que também tem outra empresa, a Munhub, pode-nos falar um pouco sobre ela?
Sim, é uma empresa que foi criada um pouco com o conhecimento que a Lines Lab tinha a nível de produção nesta zona do mundo. A ideia era aproveitar alguns contactos de distribuição aqui em mercados mais próximos, em cidades que têm um mercado diferente do de Macau, e poder catapultar isso para outras marcas portuguesas que possam estar interessadas. Na altura, quando fizemos o Macau Fashion Link, que era com marcas de língua portuguesa, do Brasil, de Portugal, etc, depois a Munhub acabou por fazer um bocadinho esse percurso. Recentemente, a Munhub esteve numa feira organizada pelo IPIM, que é uma feira mais ligada à sustentabilidade e à economia verde, com 16 marcas portuguesas representadas.
Estas marcas portuguesas são representadas por si?
Sim, estando eu numa posição estratégica aqui em Macau, e essas marcas quererem chegar a esta zona do mundo. Eu já estava a fazer a uma escala um bocadinho maior, com desfiles que eu organizava para estas marcas, inclusive nestas feiras. Entretanto, com o contexto da epidemia, a coisa mudou um bocadinho, e agora é uma versão mais pequena, sem os desfiles, mas é uma continuidade do que eu estava a fazer.
E a Design Trust?
Sou consultora Design Trust. Eu já conhecia a directora, a Marisa Yiu, desde 2009, quando ela organizou a primeira bienal de arquitectura e urbanismo que juntava Hong Kong e Shenzhen e, na altura, a Lines Lab ganhou um prémio em Hong Kong na área da moda, e foi aí que a conheci. Desde aí, continuámos a colaborar, e ela, em 2014, montou a Design Trust, que é uma série de iniciativas não só em Hong Kong mas em cidades próximas. Uma das estratégias da parte operativa deles, digamos assim, é de eles terem um conjunto de consultores que fazem parte dos membros do júri que fazem a avaliação dos projectos que se candidatam. Para mim, pessoalmente, agrada-me, porque aprendo, conheço outras pessoas que estão a fazer coisas.
E como é que se processa, a Clara vai a Hong Kong reunir-se com eles?
Não, fazemos tudo online. Ou seja, temos acesso às informações todas dos projectos que se estão a candidatar, que ainda são bastantes, e metade do júri fica com uns, e outra com outros, e depois discutimos porque é que fizemos aquela avaliação.
E depois os seleccionados são subsidiados?
Sim, tens dois tipos de subsídios, um que é o “seed grant”, que é mais pequeno e vai até aos 50 mil dólares de Hong Kong, e depois tens um que é até mais ligado à parte da investigação, que normalmente são projectos mais complexos e faseados, que vai até 300 mil dólares. E eles têm esses dois tipos de fundos e apoiam projectos criativos ou de entidades que estão sediadas aqui na zona da Grande Baía, apesar de também estarem vinculados a instituições como, por exemplo, o Victoria & Albert Museum, ou o Royal College of Arts.
E gosta de fazer parte desta iniciativa?
Sim agrada-me, porque é bom ver o que outras pessoas estão a fazer. Em Macau às vezes sentia muito isso, a necessidade de viajar e ver o que está a acontecer noutras cidades. Fazia-o por limitações de mercado, mas não só. Era aquela sensação de algum isolamento, de não teres uma comunidade criativa muito forte, e agora, de repente, com isto, entendes, identificas, sabes quem são, aprendes. Aproveito para recordar que as inscrições para as candidaturas são três vezes por ano.
Também sei que a Clara esteve envolvida num projecto de cinema, como foi a experiência?
Foi uma casualidade. Eu estava bastante disponível, não estava a trabalhar muito, e uma amiga sugeriu e eu pensei ‘é giro, vou experimentar’. E gostei muito. Para já a equipa é muito gira, e é uma área que não tem muito a ver comigo. Acho que devo ter feito guarda-roupa algumas vezes para cinema ou para teatro, mas de repente, representar, foi algo completamente diferente que me soube bem, ainda por cima porque criei uma empatia imensa com a personagem. A Pauline. Empatizei imenso com a dor dela, uma mulher de negócios, forte. Uma mulher que tem força e tem garra e quer lutar pelas suas coisas, e que acima de tudo não se deixa ser liderada por homens, é uma mulher que manda. E nós, que vivemos em sociedades tão machistas, é bom ver estas figuras. Por isso identifiquei-me, mas acima de tudo deu-me imenso prazer.
E vão haver mais projectos de cinema? Pergunto isto porque o realizador António Faria disse que andava a trabalhar num projecto consigo.
Eu já trabalho com o António há muito tempo, era ele que fazia a parte vídeo para os meus desfiles. E ele tem um projecto que eu adoro, e que tem afinidade com este que estou a desenvolver, que é “Os Resistentes”, que eu adoro. Acho que é um trabalho muito pertinente, porque é um património que está a desaparecer. Portanto foi nesse sentido que continuei a parceria no audiovisual que já tínhamos, mas com um perfil de autor. O projecto que estou a desenvolver chama-se “Tomorrow’s Heritage”.
Pode-nos então contar mais sobre este “Tomorrow’s Heritage”?
Foi um projecto que comecei a escrever durante a epidemia. Tenho esta vertente do design e de pesquisa de materiais. Os materiais sempre foram o mote, por exemplo, para eu desenhar. Eu nunca começava com o desenho, começava com o material. Por isso é que tenho esta relação com o design de equipamento, com o design industrial, com o design têxtil. Fazia materiais, tinha muita inspiração do Issey Miyake, de têxtil cortado a lazer, e sempre gostei muito de desenhar materiais ou experimentar. Para mim sempre foram o mote, como o que acontece com o designer de referência Issey Miyake. Com esta coisa de viver aqui nesta zona, criam-se certas oportunidades: por exemplo, trabalhei muito tempo com um tipo de seda muito bonita chinesa que neste momento apenas uma vila produz, em Cantão, que se chama “seda da lama”. É um tipo de seda que inicialmente era usada por pessoas com menos dinheiro, porque elas próprias produziam a sua seda, ela é tingida com uma raiz, e depois estendem os rolos todos de seda num campo, varrem a seda com uma esfregonas e a lama, aquilo apanha sol e fica a secar, e depois é lavado no rio, que também tem esta lama. E a seda é linda de morrer. Neste momento é património na China. E eu já uso aquela seda há anos. E também as cerâmicas e outros materiais que têm a ver com esta zona do mundo. Estou portanto a fazer o mapeamento desses materiais, dos com que me interessa trabalhar, para este projecto.
Também está a incluir materiais contemporâneos, ou apenas tradicionais?
Neste momento apenas tradicionais, porque acho que há imensos saberes e técnicas que têm de ser registados. Um pouco como o trabalho que o António fez, com os documentários “Os Resistentes”, em que filmou as lojas tradicionais do centro da cidade. Muitas destas lojas provavelmente já desapareceram, e é um arquivo que eu acho que é importante e urgente de se fazer.
E então vai expor este mapeamento que está a fazer deste materiais tradicionais?
Sim, vou ter uma exposição no final de Setembro na Fundação Oriente, em que convidei outros criativos para colaborar, e vamos expor na Casa Garden, na galeria de cima. É uma exposição que tem a ver com, em primeiro lugar, o “Tomorrow’s Heritage”, porque é a primeira iniciativa onde estou a aproveitar para documentar e trabalhar estes materiais, mas acima de tudo é uma exposição que olha para uma fase da minha vida, em que eu sinto que estava profundamente infeliz e não me apercebi. Por isso faço aqui uma fusão entre a questão de um trabalho mais artístico, e de mapeamento destas indústrias, e ao mesmo tempo de um trabalho quase de literacia emocional. Foi a sensação que tive, e que é consciente, que por vezes temos situações em que não temos percepção das emoções que temos. Sou uma pessoa analítica e gosto de ir ao fundo para perceber o que é que aconteceu, o que também tem as suas vantagens (risos). Percebi que, pelos vistos, o corpo tem mecanismos de nos proteger. Nós não sentimos, e não nos apercebemos que não estamos felizes, não é porque não queremos, é porque o corpo nos está a proteger. É porque aquele não é o momento certo para perceberes que estás na situação em que estás. Esse momento, é mote para a minha exploração para esta exposição que se chama “She Left Her Body”. Na altura, vim a perceber que existe em psicologia uma coisa que se chama precisamente dissociação, e eu pensei “perfeito”! Portanto, plasticamente, e em termos gráficos e visuais, a exposição tem esta conotação da moda, em que vai haver uma figura feminina, que é representada por silhuetas, que tem a ver mais com este lado contemporâneo que eu vou buscar, por exemplo, aos shootings de moda e isso, mas ela é redesenhada e depois é como se fosse uma fábrica de emoções: ela está partida, ela está despedaçada, ela descolou-se dela própria, tem a ver com isso.
E o António Faria, como entra nisso?
O António está a trabalhar o vídeo. É um vídeo que documenta todo este processo de trabalho, toda esta história e depois o produto final das obras.
Mas como é que ele consegue trabalhar se de momento não está em Macau?
É verdade, é um desafio, mas é um desafio bom, porque como já trabalhamos há muito tempo e temos empatia, o que estamos a fazer neste momento é que vamos trocando ideias, em mensagens, eu acordo e tenho mensagens dele, e ele provavelmente acorda e tem mensagens minhas, e também muito do vídeo sou eu que documento. Não é uma exposição em que eu tenha um orçamento incrível, mas isto é algo que também não me importa, acho até que agora faz mais sentido que seja eu a documentar e a experimentar para depois poder criar uma linguagem. Por isso vamos trocando aqui um ping pong, eu vou filmando, vou-lhe perguntando o que ele acha, e estamos a tentar arranjar uma linguagem.
Vai haver uma projecção deste vídeo na exposição?
Não, provavelmente não, mas o vídeo que documenta a exposição e documenta o processo está a ser feito com ele. Eu com esta pesquisa dos materiais tenho aproveitado para passear bastante nestas cidades à volta. Estou a recolher materiais de Zhuhai, de Macau, de Hong Kong.
Está a trabalhar principalmente apenas com tecidos?
Sim, mas também estou a trabalhar com cerâmica, e com a madre pérola. Estou a aproveitar para ir aos mercados e fazer um início daquilo que possa vir a ser no futuro um arquivo digital deste comércio tradicional, que também se está a perder um bocado.