A Abelha da China é uma tentativa de conquista de uma esfera pública pela ala liberal então chegada ao poder em Macau, diz Cátia Miriam Costa, investigadora do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE e autora do ensaio “A Abelha da China: a apropriação macaense do discurso político”, parte integrante do livro “A Abelha da China nos seus 200 anos: Casos, Personagens e Confrontos na Experiência Liberal de Macau”, agora editado pelo Centro Científico e Cultural de Macau. Em entrevista ao PONTO FINAL, a académica nota que “essa necessidade de diálogo com a esfera pública, e de justificação perante a esfera pública de determinados actos de administração e de poder colonial, nunca mais se perdeu”.
– Refere que para estudar um periódico como A Abelha da China é importante conhecer o ambiente político e social da época. Que Macau é a que vê nascer este jornal?
Cátia Miriam Costa (C.M.C.) – É uma Macau em turbulência, estamos a falar de um território que está a viver um processo de transição conflituoso, há forças que representam a administração colonial, embora algumas não designadas directamente pela administração, como no caso clero, que estão num processo conturbado de transição. O liberalismo ainda não tinha chegado a Macau, há descontentamento por parte dos comerciantes, pela aplicação de taxas, pela dependência da decisão política da então Índia portuguesa. A Abelha da China nasce num momento conturbado do próprio império colonial português, como sabemos, mas também num momento em que essa instabilidade é transmitida ao próprio território. Não deixa de ser curioso esta iniciativa resultar também ela de uma rede colonial. Sabemos que um dos seus principais impulsionadores era um militar brasileiro, uma pessoa que vem do Exército Real mas que cresceu no Brasil, conviveu com a Coroa no Brasil, e depois traz as suas próprias ideias maçónicas para este território. Esta é uma sociedade bastante fechada mas que está numa fase de transformação rápida – e A Abelha é esse testemunho. Este major Paulino da Silva Barbosa, que acaba por apoiar a criação da tipografia do governo também com a ajuda dos frades dominicanos, consegue iniciar este processo com a colaboração de outras personalidades locais, e não deixa de ser um testemunho dessa ligação a um mundo mais lato. É um território a olhar para si mas também a olhar para onde se localiza politicamente.
– A tipografia do governo contou, como acaba de dizer, com o apoio do clero local, numa rara associação entre sociedade civil e poder eclesiástico. Porque é que isto se deu?
C.M.C. – O clero em Macau beneficiava de alguma autonomia, atendendo à distância das forças de controlo. São pessoas ligadas ao movimento liberal, que defendem a liberdade de imprensa, que defendem a criação de uma esfera pública. Isso não é inaudito, no sentido em que se encontra noutras situações, mas de facto nesta época, com a força e a importância que teve, é muito particular de Macau. É interessante olharmos para o facto de o próprio clero local ter criado o seu meio de comunicação social que perdurou no tempo. Isso quer dizer que houve sempre este compromisso com a esféria pública, que começa realmente com A Abelha da China.
– A criação dessa esfera pública é uma ideia que atravessa todo o seu artigo e que creio estar ligada a algo que diz logo no começo de texto: que o aparecimento de A Abelha da China “refresca todo o panorama mediático e político” de Macau. De que modo é que o jornal contribui para isso?
C.M.C. – Contribuiu de várias formas. Uma das formas foi por ter sido um jornal de debate. Apesar de ter uma orientação clara – liberal, defensora da liberdade de imprensa, de muitos aspectos humanistas, e isso vai sendo reforçado ao longo de todos os números –, abre-se ao debate, inclusivamente inserindo textos que criticam e dos que criticam o movimento que lidera a edição d’A Abelha da China. Isto quer dizer que há uma construção de debate para a esfera pública. Assim como também a transcrição das actas do Leal Senado e a sua publicação são uma forma de democratização do acesso à administração colonial, que muitas vezes era completamente distante da comunidade local. É evidente que estamos aqui a falar de uma esfera pública ainda de âmbito colonial, em português. Percebemos que ao longo de todas as edições d’A Abelha da China a comunidade chinesa aparece mas quase como pano de fundo. Apenas durante o cerco [a Macau] que é estabelecido pela fragata Salamandra há de facto um olhar para esta comunidade, mas ela nunca aparece muito reflectida. Na verdade, essa esfera pública era criada para diálogo com o poder – e esse poder estava na mão dos portugueses. Sabemos que havia um poder económico que estava nas mãos da comunidade chinesa, mas ela criará os seus próprios meios de comunicação na sua língua, e essa é outra particularidade do território. Agora, o que demonstra a esfera pública criada pel’A Abelha da China é o facto de, mesmo quando o poder muda de mãos, A Abelha não deixa de ser publicada de imediato e depois a Gazeta de Macau vem substituí-la. Essa necessidade de diálogo com a esfera pública, e de justificação perante a esfera pública de determinados actos de administração e de poder colonial, nunca mais se perdeu e acaba por chegar aos dias de hoje. Nesse sentido, o seu contributo é enorme e único na história da imprensa de Macau.
– Por um lado, o seu artigo refere que o aparecimento da imprensa contribuiu para a construção de uma identidade local, pelo menos ao nível político, mas, paradoxalmente, também concorreu para fixar uma ideia de império e de nacionalidade. Diz mesmo que os jornais constituíram uma primeira inversão naquilo que foi o papel de relação de poder dentro do sistema colonial. Como se explica isto?
C.M.C. – Sim, isso é muito comum e típico da imprensa colonial. Muitas vezes toma-se a imprensa colonial como imprensa colonialista. Há imprensa colonialista também, claro, mas nem todos os títulos são colonialistas. A Abelha da China não é imprensa colonialista mas ela, até para não se demarcar demasiado da esfera colonial, não pondo em causa a relação com Portugal, faz uma tentativa de passar valores que hoje diríamos de lusofonia mas que são valores nacionais, temas ligados a Portugal e ao Brasil, porque nessa altura há esta bicefalia e os dados sobre o Brasil e a independência do Brasil são trazidos para dentro d’A Abelha da China. Este é outro aspecto muito interessante. Estamos a comemorar dois bicentenários no mesmo mês e não é por acaso, há aqui uma relação muito estreita. Há uma estratégia interessante que muitas elites coloniais vão ter, que é a de não demarcação excessiva relativamente à metrópole. No caso de Macau, é uma demarcação interessante porque a dependência era feita a partir de outra colónia [Goa]. Esse movimento é, por um lado, a transposição das ideias imperiais e nacionais da metrópole para o espaço colonial, feito em troca de haver uma afirmação identitária local, de mostrar as especificidades, algo que depois acaba por ser reconhecido com o perdão da dívida que é feito aos comerciantes e ao trazer para o debate a questão do endividamento do tecido económico local, sobretudo português. Essa é uma tendência que A Abelha da China mostra de forma muito óbvia mas que nós encontramos noutra imprensa colonial que não é colonialista, porque essa só quer transpor mesmo os valores e as ideias imperiais e nacionais para a colónia.
– Outro aspecto curioso é o facto de o jornal ter sido quase desde o seu começo aberto à participação da sociedade, com a publicação de avisos, memórias ou outros textos.
C.M.C. – Esse aspecto é surpreendente apenas por uma razão: muita imprensa periódica tenta fazer isso logo desde o início, até porque era uma forma de ter assinantes, mas aqui ganha particular interesse porque A Abelha faz isto num contexto de conflito social e político – e fá-lo num contexto que abre as portas também aos que a querem criticar, e isto já não é tão comum, apesar de existir, sobretudo na imprensa de inspiração maçónica. Esta imprensa é a primeira defensora das autonomias, tem muitas alianças com os ‘filhos da terra’ – neste caso seria a comunidade de origem portuguesa e a comunidade macaense. Além dessa aliança e da defesa desses princípios, a maçonaria gostava de promover o debate, porque era uma forma de reforçar a presença dos seus argumentos na sociedade e de demonstrar que estes tinham alguma superioridade ética. Nesse sentido, A Abelha está próxima de alguns periódicos que também estudei e que também têm por trás personalidades ligadas à maçonaria. Em Macau, acho isto interessante por se tratar de um período de conflito e de tentativa de afirmação política da ala liberal, mas esta ala liberal, para ter a certeza que vence toda a oposição conservadora do antigo regime existente na colónia, fá-lo através do debate. Há uma tentativa de conquista de uma esfera pública que poderá à partida não estar a aderir aos valores que os promotores do periódico defendem e isso leva a que façam essa promoção do debate.
– A Abelha da China durou apenas 15 meses. Continua a haver material por estudar nas edições deste semanário?
C.M.C. – Há sempre material por estudar, até porque poderíamos por exemplo extrapolar sobre qual foi o papel da comunidade chinesa durante este processo. Essa comunidade está como observadora, mas nós sabemos que havia ali gestão de interesses e isso percebe-se muito no final deste período liberal, antes de haver o retorno das antigas forças políticas ao poder. Ou, por exemplo, também a esta relação não só com Portugal mas com o Brasil. Um aspecto muito interessante seria fazer as biografias intelectuais dos fundadores d’A Abelha, porque eles têm pensamento político mas tinham também já alguma experiência cultural para se abalançarem para um projecto destes. Eu não sou historiadora, venho da área de Relações Internacionais, faço análise de discurso, e estes periódicos interessam-me sobretudo pelas relações de poder e pelas redes, dentro e fora do império, que estabelecem – e A Abelha da China tem todas essas características. Mas tenho a certeza que há muitos aspectos que não estão vistos, não temos acesso a muitos dos arquivos maçónicos onde estará parte da história não só dessas personalidades mas dos próprios jornais, porque por vezes havia injecção de capitais vindos através da maçonaria. Acho que, tanto relativamente aos periódicos em si como à sua relação com a esfera pública imperial e com o poder, não se esgota, porque podemos sempre cruzar várias perspectivas.
– Olhando agora para o presente, parece-lhe que a imprensa em língua portuguesa continua a fazer sentido na Macau de hoje?
C.M.C. – Se falarmos em termos de sobrevivência económica, é evidente que não posso responder afirmativamente, porque a sua sustentabilidade é muito difícil. Por outro lado, penso que a imprensa periódica em língua portuguesa ainda tem vários papéis em Macau. Ainda estamos em período de transição, ainda há uma comunidade portuguesa residente em Macau e ainda há uma perspectiva que vem desta tradição jornalística, ou seja, muitos dos jornalistas em Macau são pessoas que vivem lá há muitos anos, que conhecem o mundo chinês, o mundo português, conhecem a génese e evolução da imprensa em Macau e a forma como esta imprensa mantém o seu relacionamento com o poder. É evidente que do ponto de vista comercial ela é débil mas penso que ainda faz sentido, sobretudo enquanto o português ainda for língua oficial do território.