Conversámos com o chef José Avillez sobre o panorama local da restauração. O português não se esquivou às perguntas, mesmo admitindo que precisará de mais tempo para ter uma opinião mais bem formada. Multipremiado e agraciado com diversas estrelas Michelin, o português não esconde que ficaria feliz se, um dia, o Mesa também recebesse tal distinção. Contudo, admite, não vive obcecado com isso, até porque isso acarreta mais responsabilidades e a ideia que tem para Macau é mais “descontraída” e “menos formal”. O cozinheiro lembrou ainda os seus gurus Maria de Lourdes Modesto, Bento dos Santos ou Ferran Adrià, mas também não esqueceu que outras pessoas também foram muito importantes na sua vida. Considera que a pandemia de Covid-19 foi um osso duro de roer, mas vê tempos de bonança daqui para a frente.
Como surgiu esta oportunidade de dar o nome ao restaurante “Mesa”, e porque é que só agora, um ano depois da abertura do restaurante, surgiu o seu nome no logótipo? E porquê Macau, território onde já tinha estado, pelo menos, duas vezes, em 2014 e 2015, em colaboração com o restaurante Vida Rica, situado no hotel Mandarin Oriental?
Foi um convite que tive do Grand Lisboa Palace. Na verdade, é um projecto de 2019 e, por isso, o problema foi a Covid-19. Abrimos com uma parte do meu menu, mas sem o meu nome porque não podia cá vir e, por isso, não me sentia à vontade para estar a assinar sem conseguir ver o que se estava a passar. Fizemos formação online com o nosso chef que cá estava, apesar de não ser a mesma coisa. Depois, mal as fronteiras abriram, ele passou uns tempos connosco lá em Portugal. Só agora tudo se efectivou e, por isso, aqui estou. O ser em Macau tem a ver com essa ligação óbvia a Portugal. Recordo que quando estive no Mandarin Oriental era para ter feito um projecto com eles que não avançou aqui, mas avançou com eles no Dubai.
Nestes anos que o restaurante esteve aberto e não pôde estar presente, faz um balanço positivo apesar dos apesares?
Sim. Penso que é um balanço positivo com alguma frustração de não ter vindo cá antes e agora é que vamos poder consolidar o projecto. Seja como for, tem corrido bem. Temos tido um bom feedback. Ganhámos alguns prémios, mesmo com as condicionantes de Macau quase fechado. Foi um restaurante que esteve muitas vezes cheio ao jantar, por exemplo.
O Chef Henrique Sá Pessoa chegou a Macau antes da pandemia para abrir “O Chiado”, que acabou por o prejudicar, uma vez que o restaurante ainda não reabriu devido a questões relacionadas com falta de mão-de-obra. Preocupa-o esta falta de mão-de-obra que surgiu depois da pandemia? Sente-se o mesmo em Portugal?
É uma preocupação mundial. Penso que Macau já sofre com isso há algum tempo. Lembro-me que, em 2014 e 2015, quando cá estive a cozinhar, depois voltei em 2019, já se falava na incapacidade de arranjar mão-de-obra, nos prémios que se dava para fazer com que as pessoas ficassem, pelo menos, três anos nos projectos, nas mesmas empresas. E preocupa-me aqui, mas também em Portugal. Temos muitos projectos e a mão-de-obra é sempre um tema. A seguir ao Covid-19, penso que o panorama até piorou, sinceramente. As pessoas saíram deste sector, optando por outros caminhos profissionais. Contudo, acho que se consegue sempre. É um desafio. Para arrancar um projecto é complicado, mas depois, com maior ou menor dificuldade, consegue-se sempre.
Pensa que a aposta em Macau por parte de dois dos melhores executantes portugueses terá continuidade para outros chefs?
Acho que sim. Esta ligação entre Macau e Portugal que, mesmo que esteja aos poucos a diluir-se, faz com que investidores chineses olhem sempre para Portugal como um ‘player’ que faz sentido. Por isso, vemos nomes como o Luís Américo, com o Fado, o Henrique [Sá Pessoa], com o Chiado, o Fausto [Airoldi], entre outros, a apostar. Penso que mais virão. Hoje em dia o público de Macau já não são só os chineses que vêm jogar a Macau. Temos muitas pessoas de Hong Kong, por exemplo, que vêm de propósito cá jantar. Casais, grupos de amigos, grupos de mulheres, novos e velhos, com mesas de quatro e cinco pessoas, etc.
O que é que conhece da realidade de Macau? Tanto ao nível de restaurantes quanto de chefs? É amigo de algum profissional da cozinha que esteja radicado no território há alguns anos?
Conheço bem o Fausto [Airoldi] que esteve cá muitos anos. O próprio André Lai, que é o nosso chef está cá há oito anos, e vai continuar, já o conhecia de Lisboa. Quando estive cá em 2014 e 2015, dei a volta a tudo o que era restaurante português. Fui ao do Henrique [Sá Pessoa], fui ao do Luís Américo. Fui também aos tradicionais como o António, o Fernando, o Santos e uma série deles. Nestes dias que por aqui estou, não tenho saído muito do hotel, aproveitando para provar os restaurantes do hotel para perceber a oferta que existe. Tenho uma particular curiosidade profissional pelos restaurantes chineses, até porque tenho em mente desenvolver alguma coisa relacionada. A realidade de Macau, confesso, não conheço profundamente. Acho que existe este compromisso, por um lado parece quase um bairro em que toda a gente se conhece e por outro, com a proximidade de Hong Kong e a ligação à China continental, Macau é uma aldeia e ao mesmo tempo um parque de diversões. É um território que se estranha, mas depois entranha-se porque tem um passado histórico muito interessante.
Tem sido feito um bom trabalho na promoção da gastronomia portuguesa em Macau, principalmente depois da transferência de administração de soberania em 1999? O que é que está bem e o que é que pode ser, decididamente melhorado?
Em termos estatais portugueses, há sempre coisas que podem ser melhoradas, penso. Há um trabalho muito grande e bem feito pelo Clube Militar que há anos convida chefs portugueses. Com o Mandarin Oriental tive a oportunidade de fazer duas promoções grandes no território. Cada vez mais se encontram em Macau produtos portugueses fáceis de importar. Custa-me, no entanto, que alguns tipos de produtos só possamos conseguir trazer de Espanha, quando faria muito mais sentido mandá-los vir de Portugal, mas acho que é preciso que os chefs aqui digam que não querem de Espanha, mas sim de Portugal. É preciso que haja também esse compromisso. Eu, em Macau, tudo farei para ter sempre produtos portugueses na cozinha e procurarei junto de importadores que o façam. É isso que estamos a tentar fazer.
Procura, em Macau, mais uma estrela Michelin para o seu currículo?
[Risos] Não procuro estrelas em geral. Temos a gala Michelin amanhã [hoje] e sou um dos chefs que vai apresentar um dos pratos. As estrelas têm acontecido fruto do trabalho e da nossa dedicação, bem como da nossa visão. O Belcanto, quando abriu, era decididamente a continuação do trabalho do Tavares Rico, e era para se ganhar uma estrela Michelin, acabámos por chegar às duas. O Encanto é um restaurante vegetariano e ganhou logo no primeiro ano. No Dubai, temos um restaurante descontraído e nunca pensei que pudéssemos vir a ganhar uma estrela. Não sei se um dia ganharemos aqui ou não, mas ficaria feliz, naturalmente, não escondo isso, até pela importância do guia. Contudo, também isso acarreta mais responsabilidade e muda um bocadinho o cliente. Queremos que o “Mesa” seja um restaurante descontraído e é isso que tenho estado a transmitir ao pessoal, porque acho que o serviço é bastante formal.
Como é estar aqui e poder ombrear com marcas conceituadas como Joël Robuchon, já falecido, Alain Ducasse, Joseph Tse, entre outros? Gordon Ramsay está prestes a chegar, outros nomes virão com toda a certeza. Macau tem 15 restaurantes com estrelas Michelin e diversas distinções “Bib Gourmand”.
É um mercado onde há clientes que frequentam esses restaurantes. É um mercado onde há possibilidade para se fazerem esses grandes investimentos. E, claro, por isso é que eles cá estão. Diria que é por essa razão que cá estou também. Obviamente, que é um prazer ser par deles neste mercado como sou de outros no Dubai. É pena que não apostem em Lisboa, mas é um mercado que tem muito menos dinheiro. Claro que estarmos no mapa no Dubai, Portugal ou Macau abre o espectro e a possibilidade de ficarmos mais conhecidos. É muito gratificante ter pessoas que conhecem o teu trabalho, porque já o provaram noutros locais e alguns, como um casal recentemente aqui, que esteve em Wolfsburgo, na Alemanha, e quando soube que estava aqui em Macau, vieram de propósito de Hong Kong para jantar. É muito bom.
Que lufada de ar fresco o chef José Avillez pode trazer a Macau? O que podemos contar para os próximos anos de novidades e investimentos da sua parte em Macau?
Não sei. Entrámos em Macau. O foco está 100% no Mesa. Ainda estamos a tentar encontrar o caminho certo. Não tinha tido a possibilidade de cá ter estado com o restaurante pronto e a funcionar. Nos primeiros dias, logo ao chegar, praticamente estive sentado, a observar, a sentir o pulso e o espírito de como as coisas estavam a ser feitas.
O chef Fausto Airoldi, que viveu em Macau por mais de 10 anos, revelou recentemente, em entrevista, que “a gastronomia de Macau é uma das primeiras cozinhas de fusão do mundo” e que “a modernização vai chegar às cozinhas macaenses muito em breve, respeitando a tradição” para combater uma certa estagnação que ele considera haver na gastronomia macaense. Ele fala em boa cozinha macaense, mas “mal apresentada, menos profissional”. Do que conhece da realidade local, concorda?
Não conheço o suficiente para discordar e, por isso, tendo a concordar porque sei que Fausto fala do que sabe. Do que conheço, é engraçado que exista uma cozinha macaense com influências portuguesas e alguns pratos que são chamados à portuguesa, mas que não reconhecemos como portugueses. Penso que daí venha a tal fusão. O que o Fausto referiu nessa entrevista parece-me que é aquilo que acontecia em Portugal há alguns anos, ou seja, a nossa cozinha é uma cozinha espectacular, mas em muitos poucos sítios era bem-apresentada. Há 20, 15, 10 anos para cá mudou muito. Penso que era por aí que o Fausto queria ir, nessa analogia ao que também aconteceu em Portugal.
Pondera ter no seu cardápio algum tipo de adaptação, fusão ou prato especial dedicado à gastronomia macaense ou relacionado com a gastronomia chinesa, principalmente a do sul do país, ou teremos cozinha 100% portuguesa no “Mesa”?
Nem em Portugal fazemos tudo 100% cozinha portuguesa e aqui também não será. Com tempo, sem dúvida, que quero ter alguma coisa mais adaptada. Pelo menos, jogando com produtos mais locais. Tenho de entrar mais. Não quero desvirtuar a nossa cozinha. Quero vir várias vezes a Macau e tentar perceber mais o que me rodeia.
É apreciador da cozinha asiática?
Sim, sou muito. Na Ásia, as diversas cozinhas são muito diferentes. A cozinha chinesa é um mundo. É talvez das cozinhas mais importantes do mundo, não tenho dúvidas. É um país que tem diversas cozinhas regionais e muitas técnicas ancestrais. Há, por aqui, uma especialização de cada chef em cada área da cozinha, que é uma coisa muito diferente daquilo que acontece na Europa. Aqui há um chef que só faz massas, outro que faz não sei o quê e por aí fora. Acabei de vir do Japão, onde fui com os chefs do Belcanto para conhecer um bocadinho da gastronomia japonesa. Aliás, trouxemos uma influência de como grelhar o peixe para o nosso novo restaurante em Cascais, que se situa na Estrada do Guincho. Adoro a cozinha japonesa. Gosto também muito do sudeste asiático com a cozinha tailandesa e vietnamita. A indiana também é muito rica, apesar de a conhecer pior. Estamos a falar de cozinhas fortíssimas em sabores, em técnicas e que, de alguma maneira, nós, portugueses, fomos influenciados no passado.
Disse por diversas vezes, em entrevistas à comunicação social, que a pandemia de Covid-19, prejudicou a restauração nos últimos dois/três anos e, no seu caso particular, trouxe-lhe prejuízos de milhões de euros. Considera haver uma restauração antes e depois da pandemia? Quanto tempo teremos para voltar à realidade que tínhamos em 2019?
Acho que assumindo as perdas que as pessoas tiveram, hoje em Portugal, na maior parte dos lugares, já se voltou ao que era em 2019, pelo menos em termos de trabalho do dia-a-dia. Algumas pessoas, claro, e nós, com um passivo provocado pela pandemia. Há, de facto, uma restauração antes e depois da Covid-19, não querendo dizer que este depois seja pior, até porque aproveitámos para reorganizar a empresa e perceber que estamos sujeitos a este tipo de situações. Quer dizer, onde é que alguém acharia que iria aparecer um vírus que iria parar o mundo? Isto foi uma coisa completamente inesperada. Nós tínhamos seguros para tudo e mais alguma coisa e para isto não tínhamos. O que nos foi proposto foi que tínhamos de fechar restaurantes, que não iriamos vender nada e, por isso, não conseguíamos sobreviver. E, ao mesmo tempo, tínhamos de pagar, primeiro, 100% dos ordenados, depois, já era só 20% dos ordenados. Nunca tivemos qualquer tipo de apoio nas rendas. Surgiram uma série de custos para os quais não tínhamos facturação para fazer face. Tivemos que recorrer a empréstimos bancários e a capitais próprios. Contudo, penso que hoje, em Portugal, com o aumento progressivo de turistas, as coisas estão a entrar nos eixos. No entanto, há, claramente, uma redução clara da margem de lucro, até porque a inflação está muito alta, provocada, essencialmente, pela guerra. Os negócios, mesmos os melhores organizados, podem estar menos rentáveis do que antes da pandemia. A restauração é um negócio de margens pequenas, de muito trabalho, mas com muito amor. Estamos a proporcionar divertimento e entretenimento a outros. É preciso muita paixão.
Vai continuar a abrir novos espaços e a dar o seu nome a diversas cozinhas, tanto em Portugal como ao redor do mundo?
Temos uma abertura agora programada para meio de Maio, o tal na Estrada do Guincho, em Cascais, que é o restaurante Maré, que estava praticamente pronto antes da pandemia. Temos tido algumas propostas internacionais e a minha leitura dessas propostas é a de que quero avançar mais uma ou duas, mas não consigo aceitar mais, senão não paro em casa nem estou nos restaurantes em Portugal, onde tenho muita coisa. Qualquer projecto futuro tem de ser muito bem pensado, com as pessoas certas, nos lugares certos. Tivemos a gerir uma proposta, com diversas viagens ao local, há muito pouco tempo, mas que não se vai concretizar em Los Angeles, na Califórnia. O mercado americano, o mercado brasileiro, o mercado inglês podem ser hipóteses. Honestamente, tenho tido mais propostas para países como o Egipto, Índia ou Arábia Saudita.
Falou do Brasil. Interessava-lhe ir para esse mercado lusófono?
Tenho fugido sempre, confesso. Gosto muito do Brasil, país onde tenho família. Gravei lá o meu programa de televisão. Sou muito conhecido e é o meu principal cliente em Portugal, mas tenho medo porque é um país que tem uma organização um pouco diferente daquela que estou habituado. E tenho medo de me chatear no Brasil e não poder ir para lá como costumo ir, que é de ir mais para relaxar ou fazer coisas pontuais. Contudo, com o parceiro certo, se calhar iria.
Ainda recorda Maria de Lourdes Modesto, Bento dos Santos ou Ferran Adrià como os seus gurus? Eternamente grato? Porquê?
Claro, claro. Sempre grato. Ainda estava a embarcar para vir para Macau e o Bento dos Santos ligou-me e estivemos à conversa até entrar no avião. A Maria de Lourdes que nos deixou há uns meses. Continuo amigo da filha e estou a tentar, inclusive, ter uma rua com o nome dela em Cascais, algo que ela me confessou em vida que gostaria muito. O Ferran estou menos em contacto com ele, na verdade estou mais em contacto com o irmão Albert, mas sempre que ele vai a Portugal vem ter comigo e sempre que vou a Barcelona vou ter com ele. Essas e mais outras pessoas, com um nível de importância diferente, porque me apanharam numa altura diferente da minha vida, estou eternamente agradecido a muita gente.
Quem é que esteve mais presente na sua vida durante a pandemia?
Os meus sócios, a minha mulher, a minha família. Apesar de tudo, foram meses espectaculares que vivi com a minha família em casa. E, mesmo indo ao escritório, cozinhei para eles todos os dias, algo que nunca tinha acontecido desde que os meus filhos nasceram. O poder voltar a horas para a casa foi fantástico.