Na opinião de Mário Évora, os médicos portugueses continuam a ser bem vistos pela população de Macau, inclusivamente pela comunidade chinesa. “O médico português é muito bem visto pela população. Ficou uma marca positiva”, frisou o recém-empossado presidente da direcção da Associação dos Médicos de Língua Portuguesa de Macau. Em entrevista ao PONTO FINAL, o cardiologista indicou que quer “manter viva a chama” da associação, dando continuidade ao que foi feito pela anterior direcção e tentando ultrapassar as dificuldades provocadas pela pandemia. Mário Évora disse que a aposta do Governo no sector da saúde “faz sentido”. Sobre o novo Hospital das Ilhas, que deverá ser inaugurado no próximo ano, Mário Évora indicou que o projecto peca pela demora e assinalou que é necessário suprir as lacunas de quadros qualificados. Acerca das restrições pandémicas, o médico não se alongou e notou apenas que se trata de uma questão que não tem apenas a ver com saúde: “É uma mistura de base científica com opções políticas”.
Foi agora empossado como presidente da direcção da Associação dos Médicos de Língua Portuguesa de Macau. Já tem algum plano concreto para o futuro?
O nosso plano vem em continuidade com o que as direcções anteriores têm vindo a fazer. Se repararmos, grande parte dos nomes já vem de direcções anteriores, como eu próprio. Há uma continuidade. Vamos tentar aumentar de intensidade, porque, com a Covid, ficou quase tudo parado e muito limitado. Vamos tentar arranjar meios de contornar essas dificuldades. Através de sessões pelos meios digitais vamos contactar com médicos especialistas de Portugal – ou do Brasil ou de qualquer outro país de língua portuguesa – e manter viva a chama.
Há algum projecto concreto planeado?
Tenho algumas ideias, mas ainda não foram aprovadas pelos colegas da direcção. Depois de reunirmos vamos ver por onde é que vamos começar.
De modo geral, qual a situação actual dos médicos de língua portuguesa em Macau? Quais são suas preocupações e as suas queixas maioritariamente?
A situação geral acompanha o quadro comum à comunidade portuguesa em Macau. A maior preocupação é o constrangimento de mobilidade para sairmos e o constrangimento de mobilidade para recebermos. Eu fui de férias este Verão depois de quase quatro anos à espera. Algumas pessoas não têm conseguido fazer isso e noto, através das pessoas que atendo na consulta, que existe uma ansiedade grande por as pessoas não poderem sair. Macau perdeu um dos atractivos para quem vinha para cá trabalhar que era, a par do interesse profissional, a possibilidade de conhecer a Ásia circundante e, na menor das hipóteses, ir um fim-de-semana a Hong Kong. Quando é que íamos imaginar que não íamos ver ‘jetfoils’ a viajar entre Macau e Hong Kong? Isso afecta a psique das pessoas.
Nos últimos anos têm saído de Macau muitos portugueses. Isso também se verifica com os médicos? Também houve muitos a sair de Macau nos últimos anos?
Especificamente por causa das restrições penso que não. Temos alguns médicos que de facto se foram embora por motivos pessoais e profissionais. Isso também pode ter sido a gota de água, pode ter acabado por acelerar a decisão. Mas não se registou uma debandada.
Fazem falta mais médicos de língua portuguesa em Macau? Tendo em conta que houve muitos portugueses a sair de Macau nos últimos anos, continua a haver essa necessidade?
Era expectável que o número de médicos portugueses a trabalhar em Macau fosse diminuindo após a transição. Isso naturalmente verificou-se. Neste momento, a vinda de médicos portugueses é limitada. Não é tão fácil haver a disponibilidade de médicos. Uma vez que Macau é China e já não é administrada por Portugal, a motivação para vir também já é mais limitada. Além disso, com o desenvolvimento e formação de médicos locais, já há serviços que praticamente são autónomos. É o caso do meu serviço, de cardiologia. Nós formámos há dias a oitava especialista em Macau. Pode-se dizer que o serviço não tem carência que obrigue a ir buscar médicos ao exterior, nomeadamente a Portugal. As características da contratação de médicos ao exterior serão mais para, nos serviços em que não há carência, programas específicos. Se quisermos desenvolver especialidades ou perícia em campos em que ainda não temos estudo electrofisiológicoou na cardiologia de intervenção, faz sentido ir buscar alguém que possa vir apoiar, desenvolver o programa e formar as pessoas daqui de forma a que se tornem autónomas nesse campo. Essa necessidade – que dantes era suprida por médicos portugueses – tem vindo a ser suprida por médicos vindos da China, que também são uma fonte de especialistas muito sofisticados e de muita qualidade. Isto em alguns serviços. Há outros serviços em que a situação será completamente diferente. Há pouco relacionou a saída de portugueses com a necessidade de haver médicos portugueses, mas eu penso que a realidade é mais profunda. A população de Macau, inclusive a comunidade chinesa, tem um grande apreço pela medicina portuguesa. Por vezes, quando tenho de pedir apoio a outra especialidade, não é raro que um doente chinês que não fala português me pergunte se nesse outro serviço há um médico português. Vê-se que há uma confiança. O médico português é muito bem visto pela população. Ficou uma marca positiva.
O Governo tem apontado o sector da saúde para diversificar a economia de Macau. Essa é uma boa aposta?
Já se falou nisso e já houve projectos que tentaram cobrir essa área. Eu penso que, teoricamente, faria sentido num território como Macau, que vive muito do turismo, tentar atrair pessoas por outros motivos e para que pudessem ter acesso a outros aspectos de tratamento médico, à semelhança daquilo que a Tailândia faz. Isso tem de ser é bem feito. Há espaço para isso, faz sentido.
Seria preciso quadros qualificados. Macau tem quadros qualificados suficientes?
Isso resolve-se importando. Quem quiser montar isso tem de fazer um programa em que uma das componentes é exactamente os recursos humanos.
O plano para o desenvolvimento da indústria da saúde está ligado à Zona de Cooperação Aprofundada de Hengqin. Haverá interesse dos médicos de língua portuguesa de Macau ou dos médicos dos países lusófonos em trabalhar na Ilha da Montanha?
Para desenvolver essa actividade há duas componentes: quem fornece, ou seja, se os médicos querem vir ou não; e outra que é o mercado. Tem de haver um mercado interessado nesse tipo de serviço. A integração de Macau numa zona mais vasta – Hengqin e Grande Baía – é abrir acesso a muitos milhões de potenciais utilizadores desse sistema. Isso faz todo o sentido. Quanto ao interesse dos médicos, terá a ver com as condições de trabalho e com a remuneração. Se tivermos clínicas muito bem equipadas, modernas e que possam fazer um trabalho de qualidade, hoje em dia com a globalização isso não constitui um problema.
Há também a questão do Hospital das Ilhas, que deverá ser inaugurado no próximo ano e serão necessários recursos humanos. Pode ser também uma oportunidade para os médicos?
Começo por lamentar que esse hospital não tenha começado a funcionar pelo menos há dez anos. Nós temos vivido em Macau com um hospital do Governo e com o KiangWu, que servem uma população que já foi de 300 mil e que neste momento é de mais de 600 mil. Quem vai ao hospital nota que aquilo está a rebentar pelas costuras. É premente que esse hospital comece a funcionar. Quem passa de carro no Cotai e olha para aquele aspecto gigantesco pensa exactamente nisso. Como é que se vai preencher isto com recursos humanos? Equipamento compra-se ou manda-se construir. Mas recursos humanos – médicos, enfermeiros, técnicos – parece ser uma monstruosidade de pessoas. Eu não tenho informação privilegiada, mas quero acreditar que isso está a ser programado. Como cidadão que não está propriamente por dentro do que se está a passar, fico um bocado apreensivo, acreditando que alguém que trabalha nesse campo já tenha perspectivado isso.
Ter-se-á de recrutar profissionais. Haverá interesse dos médicos?
Tudo vai depender de informações que eu não tenho. O que sei é que esse hospital vai ser dirigido por um hospital de Pequim [Peking Union Medical College Hospital]. Eles têm recursos para fazer funcionar um hospital destes. Mas eu não faço ideia de qual é o modelo, até porque a participação desse hospital aqui em Macau abre uma nova realidade que são as parcerias público-privadas. Como é que isto vai funcionar? Também não sei responder e estou curioso para ver. Vai ser necessário conjugar a participação de médicos que vêm de Pequim com o recrutamento local que tem de ser feito.
Voltando às restrições provocadas pela pandemia, como é que vê que, ao fim de quase três anos, subsistam estas restrições impostas pelo Governo?
A estratégia que Macau adopta, de Covid-zero, para fazer face à pandemia é uma das várias opções que há. Diferentes países ou territórios têm optado por soluções diferentes. Macau depende da China do ponto de vista económico e tem essa necessidade de fazer bolha com a China e, por isso, tem de ter uma política que seja feita em consonância da política da China, que é uma política muito exigente. Dessa perspectiva, tem funcionado bem. Os casos são detectados à entrada, a intenção é não permitir que a infecção se espalhe na comunidade e isso tem sido conseguido com eficácia. Se essa é a melhor solução ou não, eu não sou a pessoa mais indicada para dizer. Não sou especialista na matéria.
Mas vê alguma base científica para que as medidas se mantenham?
Eu penso que a opção nunca é – nem cá nem nos outros sítios – meramente científica. É uma mistura de base científica com opções políticas. É uma faca de dois gumes, porque tem repercussão na economia. Depois já depende da opção política de flexibilizar a economia ou privilegiar o aspecto sanitário.
As autoridades têm dito que as restrições são necessárias para que os turistas do interior da China continuem a poder entrar e, assim, permitir a recuperação da economia. Isto não significa que as medidas têm mais cariz político do que sanitário?
Não sou a pessoa ideal para dar opinião. Não é um dossiê que domine.