Na opinião de José Luís Sales Marques, “o futuro da economia de Macau está na integração na Grande Baía”. Isto porque, explica em entrevista ao PONTO FINAL, “a Grande Baía, e Macau incluída, tem um papel importante na circulação externa da economia chinesa”. O economista sugere também a aposta no turismo cultural, que “é a chave para elevar a capacidade competitiva de Macau”. Por outro lado, Sales Marques reitera que “Macau não tem outra solução senão abrir radicalmente” as fronteiras. Isto porque, diz, é necessário compensar a quebra nas receitas do jogo VIP com um maior foco no segmento de massas. Além disso, essa abertura mais radical poderia servir para importar quadros qualificados, “uma das maiores carências de Macau”, aponta. Sales Marques, que também é presidente do conselho permanente do Conselho das Comunidades Macaenses, diz que “a identidade da comunidade macaense tem-se adaptado às circunstâncias da vida de Macau” e mostra-se satisfeito por a cultura macaense “ser preservada e considerada importante pelo Governo de Macau”.
Macau tem mantido as fronteiras relativamente fechadas nos últimos quase três anos. Que efeitos a longo-prazo é que isso poderá ter na economia?
Essas medidas estão de acordo com as medidas seguidas a nível nacional. Tendo em consideração que a maior parte do mercado turístico de Macau é proveniente da China e atendendo ao facto de que se Macau tomasse medidas diferentes isso poderia causar ainda maiores prejuízos e maiores problemas para quem nos visita, parece-me que não há outra solução. Estamos numa situação típica de uma economia que, ao longo de décadas, tem sido muito exposta aos choques externos porque a sua estrutura e a sua evolução depende de uma procura externa e, neste caso, não é a procura de um produto, são pessoas, visitantes. Para sustentar este modelo, Macau paga o seu preço. “There’s no free lunch”. Há sempre coisas boas e coisas menos boas. Durante muitos e muitos anos gozámos desta vantagem competitiva de sermos o maior destino de jogo do mundo, mas isso criou na cabeça de algumas pessoas a ideia de que este é um modelo estanque a qualquer problema. Pela evolução das receitas de jogo nos últimos 20 anos vemos que houve altos e baixos e alguns baixos foram significativos. Temos uma situação que não é conjuntural e que resulta de factores económicos, mas é uma situação em que o factor principal é não económico, para além de ser exógeno.
É o preço a pagar?
É o preço a pagar e é o modelo económico que foi construído ao longo de décadas com base nas receitas de jogo. Os esforços de diversificação da economia de Macau são mais do que evidentes, o Governo tem incluído esse objectivo nas linhas de acção governativa e nos planos quinquenais desde há muito tempo. Qualquer pessoa minimamente honesta intelectualmente reconhece a dificuldade. Obviamente que não é de um momento para o outro que se muda um regime destes. É um processo que requer um grande esforço e capacidade de invenção. Agora também foram apresentadas novas medidas que, em princípio, vão ajudar em alguns aspectos, como o acesso à Ilha da Montanha para o desenvolvimento de certas indústrias, embora do ponto de vista estatístico está para se saber como é que esses investimentos e esse valor acrescentado produzido em Hengqin vão poder entrar no PIB de Macau e na diversificação da economia de Macau.
Há interesse real das empresas de Macau para investirem em Hengqin?
Eu penso que as empresas de Macau têm obviamente interesse em investir em novas oportunidades. Eu acredito plenamente que o futuro da economia de Macau está na integração da Grande Baía. Chegámos a um ponto que temos mesmo de mudar. O modelo de jogo que foi construído com uma grande dependência do mercado VIP é um modelo que não vai ter continuidade. A questão é saber como é que este novo ciclo do jogo vai ajudar a resolver a questão da perda efectiva de receitas no mercado VIP e como é que isto é compensado. Isso tem uma repercussão óbvia na questão das receitas fiscais do Governo de Macau. A questão é como é que as novas indústrias, desde o desenvolvimento do sector financeiro a algumas áreas que têm a ver com a relação com a lusofonia, se vão desenvolver e quais vão ser os investidores. Quem vai ter de ser o agente activo da mudança é o sector privado. As coisas estão ainda um pouco por clarificar. Vemos algumas indicações, mas depois temos de saber a dimensão desses investimentos. Nós sabemos que o sector empresarial de Macau tem as suas limitações.
Disse há pouco que o futuro da economia de Macau está na Grande Baía. Em que medida e como?
Eu penso que a questão que hoje se coloca na economia chinesa de dupla circulação deve-nos chamar a atenção. É um paradigma novo que o Governo chinês apresentou há pouco tempo. A China pretende sair do paradigma em que o motor do crescimento são as exportações para um paradigma em que desenvolve o seu mercado interno. O facto é que esse paradigma tem factores de ordem interna, porque precisa de resolver a integração do seu mercado interno e a sua eficiência para corresponder a uma população crescente e a uma classe média crescente, mas por outro lado há factores conjunturais e estruturais que têm a ver com a política internacional. O facto de hoje em dia haver pressões no sentido daquilo que se chama o “decoupling” em relação à China. A China tem de se proteger dessas tendências que aparecem na economia e política internacional, portanto, essa questão de passar a cabeça do dragão para o mercado interno é uma opção estratégica que hoje prevalece naquilo que são as prioridades da política chinesa. Mas isso não pode significar um corte com o mercado internacional, pelo contrário. A China cresceu com a globalização. A economia chinesa é talvez dos maiores “winners” da globalização e não é do interesse da China isolar-se, até porque o mundo é grande e não se limita aos EUA e à Europa, existe um vasto mercado constituído por países em desenvolvimento. A China continua a dar importância à circulação externa e a Grande Baía compreende cidades que têm uma importância fundamental na economia de exportação chinesa. A Grande Baía, e Macau incluída, tem um papel importante na circulação externa da economia chinesa. E como é que isso pode acontecer? Com o turismo, por exemplo. Macau precisa de diversificar as suas fontes de turistas. Há outros, como o comércio internacional, as finanças internacionais, etc.
Recentemente, num debate promovido pela Fundação Rui Cunha e pela Macau Business, afirmou que a chave da recuperação económica estava na “abertura radical” da região. Haverá alguma hipótese de isso acontecer num futuro a curto-prazo?
Se me perguntar se a minha expectativa é de que a política vai mudar nos próximos três meses, diria que a probabilidade de isso acontecer é muito pequena. Mas ao longo do próximo ano espero que sim. A questão não é ter abertura passiva, é uma abertura activa. Ou seja, ir procurar e estimular a circulação de pessoas. Procurar não é só trazer turistas, isso é apenas um elemento. Fundamentalmente, trazer pessoas, profissionais que possam ajudar ao desenvolvimento de Macau.
A falta de recursos humanos impede o desenvolvimento?
Essa é uma das maiores carências de Macau. Sem recursos humanos, não conseguimos desenvolver os factores endógenos do crescimento. O crescimento depende do investimento e fundamentalmente do factor humano. Macau precisa desse factor para poder almejar aquilo que quer. Para isso, precisamos de gente capaz e de alto nível. A sociedade de Macau vai ter de ter uma perspectiva diferente daquilo que é a mais-valia do conhecimento das pessoas que vêm de fora. Às vezes há uma ideia errada.
Essa “abertura radical” poderá não ter os frutos desejados devido a essa falta de quadros qualificados?
Para receber turistas nós já temos um bom número de infraestruturas, mas falta uma coisa fundamental: voos para Macau. Vamos ter de ter um maior número de voos. Por exemplo, a cidade de Las Vegas tem quatro mil voos semanais, uma brutalidade. Isso funciona também para atracção dos congressos e conferências. Nós, sem acesso directo ao exterior, não vamos conseguir competir com outras cidades vizinhas, incluindo Hong Kong. Quem não tiver interesse em jogar, qual o motivo para visitar Macau? Esse motivo pode assentar no turismo cultural. O turismo cultural é a chave para elevar a capacidade competitiva de Macau, além do jogo. Não se fala muito do turismo cultural, o turismo cultural tem a ver com a história e diversidade cultural.
E isso, na sua opinião, devia ser mais desenvolvido?
Obviamente. Eu acho que é muito pouco desenvolvido. Tenho defendido que há uma necessidade de haver narrativas sobre a cultura de Macau. Começa a haver alguma atenção à gastronomia, mas ainda há muito trabalho para fazer. Fala-se de gastronomia macaense, mas acho que o que se faz ainda é muito insuficiente. Macau tem uma riquíssima gastronomia com base na cultura cantonense. Há uma questão fundamental, que é a necessidade de promover o turismo cultural. Aquilo que se faz já é importante, mas é preciso dar um salto.
Como é que antevê o futuro da indústria do jogo? Há um novo “player” a tentar entrar. Há hipótese de alguma das actuais concessionárias perder o lugar?
No que diz respeito ao programa do concurso, o Governo já colocou uma tónica muito forte na atracção de outros mercados. E porque não pensar nos mercados da “Faixa e Rota” ou Ásia Central? Não podemos pensar apenas em mercados de longo curso. No que diz respeito à questão do jogo, penso que o sector vai ter uma dimensão menor do que aquilo que existia até 2018. Em 2019 já começámos a sentir uma quebra. O mercado VIP vai sofrer um corte muito forte naquilo que diz respeito à sua importância. Nós temos aqui uma perda de receitas do mercado VIP que vai ter de ser compensada. Isso tem a ver com uma questão estrutural, com uma política de controlo de movimentos de capitais e também com uma política repressiva relativamente àquilo que é chamado o jogo ilegal. Essas são situações estruturais, isso já não vai mudar. Há factores que vão fazer com que, em termos gerais, as receitas brutas de jogo estejam abaixo do nível de 2018 ou 2019. O Governo tem uma expectativa de 140 mil milhões de patacas e recentemente baixou para 120 mil milhões. Provavelmente este é um valor que já dará algum conforto do ponto de vista fiscal, mas é um valor muito inferior ao que existia em 2019.
Nos últimos anos nem se tem chegado aos 120 mil milhões.
Pois. Isso implicaria uma média de oito a dez mil milhões por mês, mas vemos que mesmo nos melhores meses do período da pandemia chegámos a pouco mais de cinco mil milhões de máximo. Para que haja um regresso à nova normalidade, Macau não tem outra solução senão abrir radicalmente. Para se conseguir obter uma receita minimamente correspondente a esses valores, a aposta média vai ter de subir muito ou o número de jogadores terá de aumentar e, por isso, temos de receber mais visitantes.
Falando agora sobre a comunidade macaense, uma vez que é presidente do Conselho das Comunidades Macaenses, concorda com algumas vozes que dizem que a comunidade está a passar por uma crise de identidade?
A questão de identidade não se pode medir a curto-prazo. É uma coisa que acontece ao longo do tempo. A identidade da comunidade macaense tem-se adaptado às circunstâncias da vida de Macau. A perspectiva de identidade da minha avó como macaense é muito diferente da minha ou da dos meus filhos. Sem dúvida que as mudanças que se notam fazem parte da vida. Cultura é vida. As pessoas vão-se adaptando às circunstâncias da vida e o facto de Macau hoje em dia ser uma região administrativa especial por um lado faz com que a cultura chinesa dominante tenha algum efeito na construção da identidade, mas por outro lado há factores positivos. A cultura macaense mais tradicional tem vindo a ser preservada e considerada importante pelo Governo de Macau. A gastronomia macaense e o patuá estão inscritos como património intangível da China, algo que nunca esteve no património intangível de Portugal. A China considerou importante inscrever a gastronomia macaense e o patuá como parte do seu património intangível.
Surgiu há uns tempos uma proposta para que a identidade macaense fizesse parte da família de etnias da China. Concorda com essa sugestão?
Esse é um debate muito interessante, mas eu não me vou meter nisso [risos]. É uma questão política e eu não domino os dados dessa questão. Mas eu apreciei a iniciativa do Lok Po [director do jornal Ou Mun e o proponente da sugestão na Assembleia Popular Nacional]. O objectivo era que a cultura macaense fosse mais conhecida na China e eu apoio inteiramente isso.
Acha então que Portugal se tem esquecido da comunidade macaense?
Não, não digo nada disso. Estou só a dizer que há posicionamentos diferentes.
Este ano não se realizou o encontro das comunidades macaenses. Quando é que poderá realizar-se novamente?
Para realizar é preciso reunir duas condições. A primeira é o financiamento adequado, que penso que o Governo da RAEM através da Fundação Macau poderá proporcionar, como tem proporcionado ao longo dos últimos 20 anos. E por outro lado são as condições de acessibilidade. É difícil esperar que alguém venha a Macau para um encontro e queira ficar em quarentena uma semana.