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      Início Entrevista “Desenho todos os dias, faz parte da minha vida. Quando não o...
      Catarina Cottinelli da Costa

      “Desenho todos os dias, faz parte da minha vida. Quando não o faço, começo a perguntar o que se passa comigo”  

      Segunda irmã mais velha de cinco, Catarina Cottinelli da Costa nasceu e cresceu em berço artístico. Chegou a Macau em 2018, território que outrora acabou por não visitar apesar das duas oportunidades que teve. Hoje arrepende-se de não o ter feito. Até ao próximo dia 21 de Outubro, na Casa Garden, revela “Desenhar Macau – Desenho, Pintura, Gravura e Monotipias”, a sua primeira exposição individual. Ao PONTO FINAL, a arquitecta de formação falou de tudo um pouco, da sua vida pessoal, da sua doença, da sua vida profissional e, claro, da paixão que sente em Macau, lugar onde ainda pretende ficar a viver por mais três anos, mas de onde nunca mais se quer desligar. A artista aplaude ainda o povo chinês pela sua “consistência”, “capacidade” e “espírito de observação” fora do comum, tudo “uma mestria enorme”.

      Fotografia de Gonçalo Lobo Pinheiro

      Catarina nasceu na capital de Portugal e é licenciada em Arquitectura pela Universidade Técnica de Lisboa. Estudou desenho à mão livre na Berkeley University of California (UCLA), em 1985. Desde que chegou a Macau é professora visitante na Universidade de São José (USJ). É filha de Daciano da Costa, considerado o “pai do design português”, e neta de Cottinelli Telmo, arquitecto e cineasta, responsável pela Exposição do Mundo Português e por ter idealizado o Padrão dos Descobrimentos, bem como por ter realizado o filme “A Canção de Lisboa”, com Vasco Santana, Beatriz Costa e António Silva. É caso para dizer que filha de peixe sabe nadar. Do trabalho deles, é quase certo, bebeu a influência do meio artístico.

       

      Quem é Catarina Cottinelli da Costa?

      Quem é que eu sou? Sou a irmã de mais quatro irmãs. Somos um núcleo duro de pessoas que têm uma afinidade tão grande que fomos educadas todas muito próximas. Próximas de idade, mas não só. Estando aqui no Oriente, elas são a minha retaguarda. E com elas partilho uma série de coisas diariamente. Toda esta minha experiência aqui no Oriente tem sido partilhada diariamente com esse meu núcleo duro, que são as minhas irmãs. A maioria delas, arquitectas de profissão, com variedades. Uma é paisagista, outra faz mais interiores. Temos uma cultura e uma educação muito próxima. Mas afinal, quem é que eu sou? Sou o fruto dessa educação, também, e sou uma pessoa que teve algumas dificuldades de saúde que me impediram de fazer outras coisas, ou que eu achava que me poderiam impedir. Mas, pela situação que tenho hoje em dia, esses impedimentos quase que se tornaram oportunidades, em vez de adversidades. Todos nós temos as nossas limitações. Eu tive algumas dificuldades na vida, com um percurso muito acidentado em termos profissionais. Comecei por ter muita vontade de fazer tudo ao mesmo tempo. Trabalhei em vários ateliers. Dava aulas na universidade. Tinha uma vida muito intensa aos 25 anos, mas depois tive a infelicidade de ficar doente e o meu percurso foi diferente. Ao princípio foi muito duro, mas depois fui-me adaptando e construí a minha própria família. Tenho dois filhos maravilhosos que são um prolongamento desta felicidade de estar aqui, pois são duas pessoas que não me preocupam do ponto de vista intelectual e da sua própria vida. Vim para Macau, como assim dizer, nesta experiência de quase uma terceira idade, com o meu marido, já um pouco entradotes. Viemos para cá numa aventura aos 60 anos.

       

      Filha de Daciano da Costa, considerado por muitos como o “pai do design português”, neta de Cottinelli Telmo e sobrinha de Leitão de Barros e de Pardal Monteiro. Como é que foi crescer numa família onde a arte, principalmente a arquitectura e o cinema, estiveram sempre presentes? Isso influenciou no seu trabalho artístico?

      Influenciou-me bastante, até porque nunca houve qualquer pressão nesse sentido. O meu pai, na verdade, não nos obrigava a fazermos desenhos ou cultivar esse lado mais artístico. Não nos colocou em cursos artísticos para podermos desenvolver essas qualidades, mas, de facto, nós coabitávamos com esse ambiente porque os objectos que povoavam o nosso espaço eram desenhamos por ele. Cada vez que ele remodelava a casa, nós tínhamos um quarto novo desenhado por ele, decorado por ele. Tudo isso influenciou a nossa maneira de ver os ambientes de outras pessoas com quem nos dávamos. Do nosso lado estávamos habituados a uma situação muito avant-garde, muito moderna, muito mais depurado no estilo. O design do meu pai era muito avançado para a época. Era uma pessoa muito aberta, não só pelas suas ideias, mas intelectualmente era uma pessoa muito progressista e na época vivíamos, no antigamente, antes do 25 de Abril. Embora não estivesse ligado a nada, mas havia esse influência do quotidiano. Penso que nós tínhamos muito respeito por todas as pessoas, desde quem passava por nossa casa ou por quem trabalhava em nossa casa, ou pelos nossos colegas de escola e de trabalho. Por outro lado, ele adorava que nós tivesses interesses artísticos. A certa altura tive interesse pela música. Aliás, sempre tive a sorte de conhecer pessoas excepcionais na minha vida, e conheci duas pessoas, para além do meu pai, mãe e família, que me influenciaram imenso. Uma foi aos 11 anos. Tive uma professora de piano, que até foi a primeira professora de piano da Maria João Pires, a Francine Benoît, que era também uma compositora, crítica de música extraordinária, uma solteirona muito engraçada que viveu em Portugal muitos anos. Ela foi minha professora a pedido do meu pai. Penso que até era simpatizante do Partido Comunista na altura e o meu pai conheceu-a através de vários conhecimentos que tinha e pediu-lhe se ela se importava de me dar umas aulas. Comecei a estudar música com essa pessoa que era uma personalidade incrível. Parecia que o tempo parava quando estava com ela. Ela tinha todo o tempo do mundo para me ensinar. E ela não era uma pessoa à antiga, era super moderna na cabeça dela e super aberta. Depois, aos 14 anos, fui para a Academia dos Amadores de Música onde tive experiência com outros professores. Acabei por ter o Nuno Vieira de Almeida, que até é meu amigo, como professor. A música influenciou bastante a minha vida. Os meus bisavós, os pais do meu avô Cottinelli Telmo, eram músicos. A origem da vinda deles para Portugal, ainda no tempo dos meus trisavós, teve a ver com o facto de que eles terem vindo para tocar na corte da rainha Maria Pia. Eram músicos oriundos de Itália. Não sei muito bem qual a origem, mas até estou a pensar em investigar um pouco mais sobre isso. Todas estas coisas nos influenciam. Há aqui qualquer coisa no nosso ADN, uma tendência que nós temos para olhar para o mundo e transpor isso de outra maneira.

       

      É licenciada em arquitectura. Chegou a exercer ou acabou por se dedicar mais ao desenho e à pintura?

      Não. Acabei mais por me dedicar ao ensino do desenho em arquitectura. Fiquei 29 anos na Faculdade de Arquitectura a ensinar, na licenciatura em Design e Arquitectura. Ensinava desenho para os alunos do primeiro e segundo anos. Tinha um horário mais leve. Tinha mais tempo para mim e para fazer as minhas fisioterapias. Tive uma fase da minha vida que fui cobaia nos Estados Unidos da América, sempre naquela minha perspectiva de ir mais além do que aquilo que me davam como solução para o meu problema. Sempre acreditei que haviam soluções. Descobri em Boston um super-médico que fazia investigação em artrite reumatoide e lá fui eu. Volto a dizer que sempre tive a sorte de conhecer pessoas extraordinárias. Até o médico que me assistiu em Portugal era considerado o “bruxo”. Era um tipo genial, que era médico no Hospital Curry Cabral. As pessoas todas vinham perguntar-lhe o que é que achava. Era uma pessoa que os outros médicos usavam para esclarecer coisas. Lembro-me perfeitamente do Eduardo Barroso lhe perguntar coisas. Bom, ele disse logo que eu tinha de ir para os Estados Unidos da América e acabei por ir integrar um grupo de estudo em Boston em que, infelizmente, acabei por ficar no grupo dos que tocam só água, mas depois acabei por voltar para um segundo estudo, onde aí já comecei um tratamento.

       

      Chegou a Macau em 2018. O que acha do território? Já cá tinha estado antes?

      Nunca tinha estado cá. Cheguei a ter um convite do Manuel Vicente, porque era amiga da Joana Vicente. Ele sugeriu que viesse para cá, mas acabei por não vir. Tinha acabado de fazer o meu curso. Tinha outros interesses em Portugal e não vim a Macau. Entretanto, há 20 anos estive em Hong Kong e também acabei por não vir a Macau. As pessoas diziam-me: “Não vás ali, aquilo é uma espécie de aldeia de pescadores transformada em casinos, não tem interesse algum”. E, vistas as coisas, tenho pena, muita pena, de não ter conhecido uma outra Macau.

       

      O que é que mais aprecia e o que é que não gosta de todo em Macau?

      Macau é uma cidade pequena, com um ambiente bastante humano, onde há muita proximidade. Penso que há muita facilidade em comunicar com as pessoas. As pessoas estão muito nas ruas, muito nos jardins. Há uma série de coisas que são muito intimas e é uma cidade de grandes contrastes, mas cheia de intimidades. Há o Cotai, mas ainda existe uma escala muito humana da cidade, principalmente na zona antiga da cidade. Talvez gostasse de ver Macau mais bem tratado. Há tanto dinheiro que acho que se podiam preocupar mais com aquilo que é a história de Macau e deixar isso mais recuperado. Há pouca recuperação de edifícios antigos. Sei que têm havido esforços, mas não se vê muito. Pelo contrário, o que gosto mais em Macau é este efeito de contraste da cidade e do clima. Gosto muito do calor. E gosto de contactar com a comunidade chinesa. Repare, tenho muito mais facilidade, embora não fale a língua, em fazer amigos na comunidade chinesa. Tenho grandes amigos chineses, pessoas que considero muito. Quando cheguei, as primeiras pessoas que conheci não foram portugueses. Tinha por cá um grande amigo, o José Sérgio Spencer, mas quando cheguei as primeiras pessoas que conheci eram chineses. Chineses com investimentos em Portugal, uma grande família. Para mim não existe qualquer fosso entre a comunidade chinesa e portuguesa, pelo contrário.

       

      Como é que ocupa o seu tempo em Macau? Apenas dedicado às artes ou ainda continua a dar aulas?

      Tenho feito variadas coisas. No primeiro ano e meio foi muito acompanhar o meu marido. Tivemos a sorte de ainda fazermos algumas viagens por aqui pelo Oriente antes de se instalar a pandemia de Covid-19. Conheci lugares muito bonitos como a Tailândia, Camboja, Índia, algumas vezes a China continental, etc. Fiz algumas viagens muito interessantes, não só do ponto de vista da minha cultura arquitectónica, mas também do lado humano, de perceber como as pessoas vivem e tiram partido dos seus próprios espaços. Macau é muito vivo nesse aspecto.

       

      Considera que Macau já a influenciou na sua forma de estar na arte? No seu trabalho?

      Completamente. Macau é uma descoberta incrível. Muitas vezes pergunto-me como vai ser quando um dia for embora de Macau. O ambiente é de tal maneira bom que me vejo a viver por aqui vários anos. Claro que teria de voltar a casa, mas vejo-me a viver cá e lá. E poder trazer a família até cá. Espero continuar a ter uma relação estreita com Macau. Tenho aqui muitos amigos, portugueses e chineses, e quero continuar com essas ligações. Há uma grande intergeracionalidade em Macau, ou seja, eu sou amigo de várias pessoas, desde o novo ao velho. Somos amigos de pessoas com 20 e tal anos e de pessoas com mais de oitenta anos. Há uma grande flexibilidade no contacto com as pessoas. Nunca me arrependi de ter vindo para Macau, mesmo com as restrições que a pandemia nos trouxe. Aproveitei o tempo de outra a forma. Fiquei com outra perspectiva de Macau.

      O que podemos ver nesta mostra “Desenhar Macau – Desenho, Pintura, Gravura e Monotipias” que está patente até dia 21 de Outubro na Casa Garden da Fundação Oriente?

      Podemos ver algumas cenas do quotidiano de Macau. Comecei pelo desenho. Tenho alguns desenhos das vistas feitos a lápis. São os tais esboços que gosto de fazer e fiz com os meus alunos da Universidade de São José. E depois é um percurso, no fundo, pelas várias técnicas e aprendizagens que fui tendo. O motivo acaba por ser, quase sempre, Macau. O objetivo é desenhar Macau e tentar trazer para dentro dessas telas e desenhos alguns fragmentos dessas vidas e desses momentos que me suscitaram interesse particular. Há zonas em Macau que são fabulosas. Por outra lado, tentei retratar a própria vivência na cidade. As pessoas não precisam de estar lá desenhadas para que possamos ver a apropriação.

       

      Como surgiu esta oportunidade?

      Foi a Ana Paula Cleto, uma pessoa incrível, que sugeriu que integrasse uma residência artística, embora seja residente em Macau. Não precisava vir à Casa Garden fazer a residência. O tema seria, obviamente, aquilo que eu quisesse. Por essa altura, estava a fazer outras experiência nas oficinas da Casa de Portugal com a Madalena Fonseca.

       

      Foi a sua primeira exposição individual desta dimensão? Vai apostar neste formato daqui para a frente?

      Sim, foi. Eu não pintava antes, sempre fiz desenho. Fui fazendo coisas para os meus alunos, nada em particular. Depois de terem visto esta exposição, as pessoas começaram a dizer que agora tinha de expor em Portugal, mas não sei. Na verdade, não sei muito bem o que me espera amanhã. Tenho outros projectos e não sei se me vou desviar.

       

      Como classifica a sua obra artística? É multifacetada e polivalente, uma vez que nos apresenta trabalhos que vão desde obras de pintura a óleo, passando pelo desenho e pela gravura? Onde se sente mais à vontade?

      Considero-me, neste momento, uma investigadora que parte do desenho para a pintura, ou seja, venho de uma cultura mais racional e objectiva, sendo complicado sair dessa racionalidade. Todo o meu trabalho reflecte toda a minha racionalidade na abordagem dos temas, mais realista, mas com sentimento. Claro que olho sempre numa perspectiva crítica para as coisas que me rodeiam, para os lugares que me rodeiam. Isso terá sempre transposição nos meus desenhos, nas minhas pinturas. Porque tudo isto é apenas uma interpretação, a minha interpretação, mas não inventamos nada. Eu não invento nada quando desenho, mas vejo à minha maneira, transponho da maneira que eu quero para o papel e é isso que é, no fundo, uma interpretação. Sou uma intérprete e não uma criativa que faz transformações da realidade. Tenho, agora muito interesse em estudar a pintura chinesa. Os chineses dominam isso na perfeição. A caligrafia chinesa são ícones desenhados à mão. É isso que pretendo fazer numa segunda fase de investigação.

       

      O seu pai dizia que “a arquitectura é para as pessoas viverem”. Concorda?

      Claro que sim. Só se pode fazer arquitectura para as pessoas e não para se ver em revistas. Há algumas fases da arquitectura menos felizes, precisamente, porque as pessoas não foram consideradas. É sempre mau deixar de fora o Homem como intérprete e protagonista dessa história. No passado, em alguns casos, perdeu-se a escala humana. Macau tem uma coisa interessante, pois não se perdeu a escala humana, apesar da existência de alguns espaços mais inóspitos.

       

      Qual a obra que mais destaca das criações do seu pai? A Cadeira Alvor? O que é que ele lhe ensinou?

      A Cadeira Alvor… acho que o meu pai tem obras incríveis. Os interiores da Fundação Calouste Gulbenkian. Na verdade, ele era uma pessoa que não gostava de se destacar em obra alguma sozinho. Era uma pessoa que integrava equipas de trabalho e produzia esses objectos com essa intenção de integrar todas as pessoas num ciclo de produção, até mesmo em relação aos móveis que ele criou no tempo da Longra, em que o objectivo era colocar todas as pessoas a trabalhar na cadeia de montagem e não deixar ninguém de fora. Todos os projectos que ele criou foi com essa intenção. Todos trabalhavam. Tudo o que ele fazia trazia agarrada aquela ideia de sustentabilidade, que ninguém falava naquele tempo.

       

      Vejo que o seu pai era uma pessoa muito “pra frentex”, como se costuma dizer.

      Muito para a frente, muito. No entanto, era, igualmente, muito tradicionalista, muito ritualista. Ele fazia questão de manter presentes todos os rituais familiares. O Natal, a Páscoa, os aniversários, sentarmo-nos à mesa todos juntos. O meu pai fazia questão de cozinhar. Fazia “o anho da Páscoa” como ele dizia. Assava o peru no Natal. Enfim, era uma pessoa que adorava cozinhar, estudava as receitas de noite e fazia uma panóplia de coisas. Era uma pessoa muito curiosa e muito investigadora, que tinha um lado muito humano. Ele fez-se muito sozinho, mas apreciava o lado mais espiritual da vida, apesar do seu pragmatismo.

       

      Continua com algum tipo de ligação ao Atelier Daciano da Costa?

      Estou ligada de alguma maneira. A minha irmã Ana é que está mais ligada, apesar de hoje em dia ter seguido como sendo o atelier dela, pessoal. O atelier Daciano da Costa, como figura, está à responsabilidade da minha irmã Inês, que está a fazer um projecto muito interessante de reconstituir toda a matéria que ficou guardada. Fez uma galeria com as coisas do nosso pai, mostrando a colecção em forma de site, bem como algumas reedições de objectos feitos por ele. O trabalho dele integra agora a colecção do Centro Pompidou e do MoMa.

       

      Quais são as suas grandes influências artísticas?

      Não posso dizer que tenha assim muitas influências artísticas, para além da minha família, naturalmente. Adoro a corrente impressionista. Sou muito mais próxima desse período da história da pintura, mas também gosto muito dos grandes clássicos. Estive recentemente em Itália e fiquei fascinada com o facto de estarmos a tropeçar a toda a hora em arte. Vamos a uma aldeia, lá na Itália profunda, e há obras de arte dos grandes artistas clássicos italianos. É fascinante. Itália é um exemplo de um museu ao ar livre, onde tropeçamos em arte em todo o lado que vamos. Tudo o que me influencia são as coisas bonitas, não só na história da pintura, e das artes em geral, mas, ao fim ao cabo, a história da própria humanidade, desde as cavernas até aos nossos dias. Tudo me fascina, todo esse lado mais humano. Em Macau, há exposições excelentes. Muitas delas repito. Por exemplo, via exposição do Chagall várias vezes. Aqui só se aparece nas inaugurações, depois as exposições estão quase sempre vazias. Não há massa crítica. Há, por exemplo, alguma massa crítica na música. Os espectáculos estão sempre esgotados. Para a pintura, por exemplo, não há esse pendor. Bom, o meu trabalho é influenciar as pessoas com quem contacto a partir do meu lado mais positivo, de transformar as coisas más em coisas boas, desde o meu marido, que eu adoro, até aos meus filhos, passando pelos meus amigos. O que quero é tocar as pessoas no nosso quotidiano, deixando uma marca invisível. Não fico na história de coisa nenhuma, de certeza absoluta. Na história da pintura, não fico mesmo, mas quero deixar um rasto nas pessoas que fazem parte do nosso dia-a-dia.

       

      Desde o início da pandemia foi a Portugal várias vezes. No regresso, as quarentenas foram profícuas em criação artística?

      Esta última não e até foi bastante mais curta. Mas quando fiquei fechada, em Coloane, num sítio bonito por 21 dias decidi não perder um segundo do meu dia a estimular a minha massa intelectual. Pouco tempo gastei a ver filmes, não me interessava. Consegui estar muitas horas, em conversas comigo própria, a desenhar, perdida. Foi todo o dia a desenhar, a desenhar, a desenhar. Desenho todos os dias, faz parte da minha vida. Quando não o faço, começo a perguntar o que se passa comigo.

       

      Quase que podemos dizer, em tom irónico que esteve em residência artística?

      Foi uma residência mais do que artística. Fiquei fechada numa conversa comigo própria. Eu conseguia desenhar, já de memória, aquela vista. A imagem ficou gravada para sempre na minha memória. Esteja onde estiver, vou conseguir fazer um desenho de memória daquela vista em Hac-Sá. É muito importante recolhermos essas imagens ao longo da nossa vida. Esse é o nosso arquivo mental.

       

      E o futuro? Qual ou quais os planos para o seu futuro artístico?

      O futuro é incerto. A Madalena [Fonseca], que é uma espécie de mentora para mim, sempre me diz: “Não deixe de fazer arte”. Seja qual for o motivo, devemos sempre transpor para o papel, seja por desenho ou pintura, e nunca deixar de fazer isso. Acredito que temos de deixar isso, pelo menos, visível para nós. Vou tentar fazer outras experiências em Macau. Fui solicitada para fazer outras experiências e vou continuar a dar as minhas aulas na USJ. Gostaria que os meus alunos estivessem mais cientes e humanizados  para os temas do património, por exemplo. Gostaria que eles olhassem para o território com olhar crítico e sejam mais imbuídos do espírito de serem metidos nos problemas. A Casa de Portugal também continua a ser uma segunda casa para mim e quero continuar a participar nas actividades e usar as oficinas.

       

      Uma última pergunta. Como está o estado das artes em Portugal e em Macau?

      Desconheço bastante em Portugal, mas acho que está bastante movimentado. Há galerias e exposições a abrirem. Muitas exposições contemporâneas com oportunidades de negócio. Não há só mostras de coisas e autores conhecidos. Portugal está com um grande desenvolvimento. Noto isso. Aqui, infelizmente, estivemos fechados este tempo todo. Penso que há algum espirito e interesse das pessoas. A Casa Garden fez sempre exposições, mesmo durante a pandemia. As pessoas mantêm viva essa vontade de potenciar a arte, apesar de ser complicado trazer pessoas de fora. Há uma grande relação com a China continental. As galerias locais mostram os grandes nomes chineses, principalmente o Museu de Arte de Macau (MAM). E há muitas mostras que ninguém conhece, pelo menos os portugueses, porque há muita coisa que não chega até nós. Recentemente, vi uma exposição fabulosa de aguarelas com artistas locais no jardim do Lou Lim Ioc. Foi fantástico e encontrei aquilo por mero acaso. Os chineses têm a arte no seu ADN. Eles conseguem manusear pincéis com grande precisão, devido à caligrafia. Trata-se de movimentos muito curtos de dedos e de pulso, que não é para toda a gente. Eles têm essa capacidade e um espírito de observação incrível. Tudo com uma mestria enorme. Os chineses são um povo muito consistente e isso nota-se em tudo o que eles fazem.