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      À PROCURA DE PESSOA

      Han Shaogong | 韓少功

       

      Macau é um pedaço silencioso de jade, as suas colinas e os seus lagos ocultos na sombra da China e, aparentemente, também ocultos for a do tempo. As suas muitas janelas jazem em silêncio, as pessoas caminham pelas ruas em passadas vagarosas, e a brisa do mar e o sol parecem ser de há cem anos, ou mesmo de há mil anos. Guerra, revolução e industrialização são alheias e estão longe deste lugar.

      Vim cá pela primeira vez a convite da Rota das Letras. Como dispunha de meio dia livre antes de partir, fui dar um passeio. Meio dia pareceu-me demasiado tempo – passar diante de casinos atrás de casinos não me interessava nada, nem tão pouco artérias e mais artérias de ourivesarias. Depois de atravessar diversas ruas assim, ainda me sobrava bastante tempo. Para onde ir então?

      Observemos as estranhas palavras em português nas placas das ruas.

      Esta é a língua de Fernando Pessoa. No Livro do Desassossego, diz: «A minha pátria é a língua portuguesa. Se Portugal fosse invadido ou tomado, mesmo que contra mim nada fizessem, eu ficaria triste. Sinto-me tomado pelo ódio – não contra aqueles que escrevem mal o português, não contra aqueles que não conhecem a língua, não contra os que insistem em escrevê-la à nova maneira simplificada. Não – eu odeio o próprio texto mal escrito em português, como esse texto fosse uma pessoa viva; odeio as palavras torturadas e a gramática torturada, como se merecessem levar uma sova, como se fossem um escarro cuspido para cima de mim…»

      Esta é a minha tradução. Em 1997, quando me encontrava na Europa, li três dos livros de Pessoa em tradução inglesa, e adorei. Incapaz de resistir ao desejo de me envolver, traduzi excertos do Livro do Desassossego – todas as partes importantes do livro – e a Shanghai Art and Literature Press publicou uma edição em chinês simplificado, em 1998, ao passo que a China Times, de Taiwan, deu à estampa em 2001 a versão em chinês tradicional.

      A edição revista saiu este ano, como parte da colecção das obras por mim traduzidas. Certa vez, conheci em Haikou o Professor Zhao Deming – especialista, na Universidade de Pequim, em línguas ocidentais e em português – e perguntei-lhe por que razão nunca tinha traduzido este livro directamente do português. O Professor Zhao respondeu: «Sim, todos temos noção da excelência deste escritor, e traduzimos vários dos seus poemas, mas por qualquer razão este livro escapou-nos.» A seguir, mostrou-se grato por eu ter preenchido a lacuna.

      Portugal teve diversos escritores notáveis ao longo da sua história. Vieira (século XVII) e Saramago (século XX) constituiriam já uma lista respeitável. Quando ganhou o Prémio Nobel, em 1998, Saramago afirmou: «Caso Pessoa não tivesse chamado de novo a atenção do mundo para a literatura portuguesa, seria impossível eu receber este prémio.» O mais interessante é que, do mesmo modo que o mundo negligenciou a literatura portuguesa até que, meio século após a morte de Pessoa, deflagraram o interesse e a investigação, também os leitores chineses sabiam pouquíssimo acerca do pensamento e dos sentimentos deste país longínquo. Apenas quando foram despertados pela absoluta beleza das palavras do Livro do Desassossego e de outras obras da mesma qualidade é que os chineses perceberam que o português não é a língua dos casinos e das ourivesarias, do Colonialismo e da História – é também a língua que vislumbra serenamente a alma humana.

      As nações que produzem grande literatura nem sempre são prósperas ou poderosas ou grandes; tal como Lu Xun veio de Shaoxing para Zhejiang, Shen Congwen de Fenghuang para Hunan, Zhao Shuli de Qinshui para Shaanxi… Todos são distritos pobres, longe dos centros do poder, isolados, rurais. Porque é que Macau não poderia ser um desses lugares?

      Evitando os casinos prósperos e as ourivesarias que enchem de lixo as ruas principais, fugindo às hordas de turistas estrangeiros que destilavam ouro e prata, enveredei por um beco estreito e caminhei ao longo das suas janelas silenciosas. Será que eu esperava encontrar um rosto macilento e um par de olhos melancólicos? Não sei.

      Ouvi passadas atrás de mim – mas quando me virei não havia ninguém no beco. Somente posso suspeitar de que o senhor Pessoa por ali passara há escassos instantes.

       

      Texto inserido no livro de contos e outros escritos Dois Dará (PraiaGrande Edições, 2014). Traduzido do inglês por Madalena Alfaia.

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      Redacção do Ponto Final Macau