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Quinta-feira, 23 de Março, 2023
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      A VEZ DO NATAL

       

      Miguel de Senna Fernandes

       

      Era mais uma vez.

      Como tantas vezes sem conta, ele se sentava diante dela, contando-lhe histórias sobre o seu dia, o trabalho, o chefe, o cão Sebastião, a mercearia Kong Kei, que preferia a qualquer supermercado de Macau, entre outras coisas.

      “Sabes, o Gonçalo já sabe ler as anedotas dos jornais! Aquele mesmo pequerrucho, já sabe ler! Juro, não acreditas, né? A Alzira escreveu e…”

      Prosseguia por aí fora, especialmente quando se tratava deste,o seu neto mais novo de três anos.

      “Exactamente! Ainda me recordo da Alzira no primeiro Natal que passámos na casa da Barra, a dizer que gostaria de ter uma prenda, e que essa prenda fosse um filho. E ele se chamaria Gonçalo! Tinha ela 6 anos”, ria-se.

      “Nem pensar, filha, mulher de agora não se casa cedo!” dizias tu!, ai eu não me continha com essa!”, gargalhava tentando caricaturá-la.

      E aí ficava Afonso a conversar com a mulher, durante a tarde de todas as tardes, numa viva cavaqueira em que ele encarnava ambos os interlocutores, ora fazendo-lhe perguntas e respondendo por ela, ora retorquindo ao que imaginava ser as suas interrogações. Empolgava–se e dramatizava as histórias que relatava, discutia e contra-argumentava, ante olhares de curiosos e de outros que já se habituaram ao “teatro do ngau sok”.

      “… fogão que compraste e fiz o meu primeiro frango aí. Oh! Lá estás tu, não está queimado não! Mais que saboroso! Vais gostar!”

      Todos os dias, conduzia-a ao seu canto ao lado da enfermaria e dava-lhe de comer. Não que isso fosse preciso, até porque o asilo tratava a sua mulher com todo o esmero. Mas Afonso fazia questão de levar a canja de galinha à sua boca, soprando meticulosamente quando estava quente, com o seu lenço pronto para qualquer descuido. Pó de talco sempre ao pé, não vá uma gota manchar o vestido de algodão de imaculado branco que ela sempre punha.

      “Já mandei lavar aquele casaco de cabedal que adoras. Vou-to trazer na próxima vez. Nem sei porque gostas tanto dele!”, meneava a cabeça, com ternura.

      De Sao Ieng apenas recebia o olhar atento e intenso, de um corpo inerte prostrado numa cadeira de rodas. Não falava, não sorria. A boca, semiaberta, era a de uma espectadora atordoada, ante uma exibição artística que não compreendia. Afonso ignorava e dava-se por satisfeito. Tinha, no entanto, notado nos últimos meses que os mesmos olhos que o miravam, tinham-se tornado cada vez mais intensos, os músculos faciais já contraíam e se distendiam com maior frequência, até os dedos davam mais sinais de vida. Tudo isto era motivo de alegria, qual ovação de uma plateia cheia. Sentir a sua reacção era dádiva de Deus.

      Havia vezes em que a jovialidade da conversa era mais amena.

      “Estás tão linda. Mesmo depois de tantos anos”, sorria suavemente.

      Afagava o rosto fino da mulher, deslizando a ponta dos dedos nas suas sobrancelhas, nas maçãs e lábios. Com eles desenhava os contornos de uma face por que se apaixonou, onde traços de idade ainda mal se viam.

      Recordava-se do dia em que a vira pela primeira vez na mercearia do Kong Kei, onde pararia todos os dias para uma cerveja com os seus colegas de trabalho. Num ápice sentiu que tinha de a conhecer, essa moça pequena, de movimentos suaves, de cabelos sedosos e negros como breu, a contrastar com uma pele alva, pouco usual entre chinesas que todos os dias via. Sao Ieng não se importunou, sabia que era apreciada. Mas também não se fez de fácil. Retorquiu com um sorriso confiante e arguto. Ali vira Afonso como aqueles olhos o faziam vergar.

      “O que me dirias se me pudesses falar?”, perguntava-lhe naquelas vezes em que a melancolia o assaltava impiedosamente. Aí a conversa era menos efusiva e com mais pausas. As tardes mais longas também. Não era a tristeza que o dominava nessas vezes, mas tão só momentos de saudade. Memórias da sua candura, nas noites de Inverno em que ela pousava a sua cabeça minúscula sobre o seu joelho. A sua voz murmurando uma canção naná que aprendera de sua mãe, quando embalava Alzira no seu berço de baloiço. Imagens dos mesmos olhos que o miravam enquanto ele lia as notícias que ela não entendia, ao cintilar dos reclames de néon que vinham da rua. Registos da fragrância do seu cabelo preto, da sua fina nudez de marfim. Dos seus suspiros que diziam tudo, nas noites em que ela se lhe rendia completamente.

      Amava-a, sem saber como se exprimir em chinês, amava-a sem poder saber o que ela realmente lhe diria, se falasse português.

      Amava-a ainda mais, porque sabia que ela jamais seria a mesma.

      “Quando é o fim disso tudo?”

      Era a vez do Natal que chegava, a mais dolorosa que todos os anos Afonso experimentava. Completar-se-ia mais um ciclo, que se renovaria depois no ano seguinte, como acontecia durante quinze anos. Seria o seu equinócio da amargura, quando a solidão que o assola nas noites frias de Macau atingia o seu vértice, fazendo-lhe reviver a noite em que a viu deitada no chão inanimada.

      Tinha chegado à casa depois de mais uma festa de Natal com os colegas. Não era a primeira vez que voltava tocado. Nessa noite, a discussão tornou-se mais violenta, ela chamara-lhe todos os nomes que sabia em chinês e em português e ameaçara deixá-lo se a situação se mantivesse. A riposta foi um estalo. Pegou de seguida no seu casaco e fez-se à rua. “Farto”, foi a palavra que se lembrou ter dito antes de bater com a porta.

      Disseram-lhe no hospital que Sao Ieng teria sofrido choque, seguido de um derrame cerebral que lhe provocara uma queda e, com isso, uma fractura na sua coluna vertebral. Nunca chegara ao seu alcance a verdadeira gravidade em que se encontrava a mulher.

      Foi sempre assim durante estes anos todos. Mas desta vez a dor foi invulgarmente intensa. Talvez porque a idade começava finalmente a reclamar e a paciência, já ténue, fraquejava. Ou então, porque nada mais segurava a culpa que se forçava à tona.

      “Não ligues para aquilo que vou dizer”, suspirou.

      “Se calhar nem sei se estou a dizer coisa com coisa.

      “Fui sempre um egoísta. Durante esse tempo todo, fiz de conta que estavas aí, pois a esperança de te ver sã, faz-me doer menos e ajuda a vencer a minha saudade.

      “Sempre acreditei que me pudesses ouvir, mas mesmo que não, ao menos me convenci de que estava a fazer algo para me sentir melhor.

      “Não devia ter saído naquela noite, mas eu acreditava que precisava de respirar. Estava sufocado pelo nosso silêncio e perdido no fosso cada vez mais fundo entre nós. Não sabia como falar contigo.

      “Todos os natais que chegam, sei qual o meu presente. O teu silêncio e esse teu olhar que eu julgava saber ler. Sei que já faz tempo que andas à deriva. Queria fugir para não vir mais, pois nem disso darias conta”, pausou.

      “Ao menos me pudesses dizer que não me perdoarias nunca mais. Sofreria muito menos!”, bradou.

      Mas voltou em si.

      “Mas eu te amo e que mais poderei fazer?”

      Ajoelhou-se, cerrou os olhos e escondeu a sua face no regaço da impávida Sao Ieng. Devia ter ficado assim por cerca de meia hora. Nunca o silêncio da tarde lhe fora tão sereno. O calor era estranhamente enternecedor, o coração dela palpitava com mais fulgor. Afonso não deu conta de que as mãos de Sao Ieng estavam mais trémulas, de que seus os débeis músculos retesavam-se, como antecipação de um movimento. Ele não tinha notado que a sua mão cerrada empunhava um objecto. Não entendia que ela queria livrar-se do mesmo.

      Afonso levantou-se. Sao Ieng tinha os olhos bem fixos nele, as suas bochechas tremiam com trejeitos, o corpo agitava-se e os lábios estavam tensos. Não eram convulsões, porque as pupilas estavam maiores, e uma lágrima principiava a deslizar. Percebeu então que ensaiava um sorriso, como durante meses vinha notando.

      Com esforço, Sao Ieng levantava o braço. Não era mero reflexo, era ostensivo. Afonso foi afagando o dorso da mão cerrada, suavizando a pressão dos dedos. Ela por fim relaxou e pôde mostrar-lhe o objecto.

      Afonso viu. Sentou-se.

      Pôs as mãos à cara e chorou que nem um menino.

      Havia muito tempo que o Natal lhe tinha sido a farsa que se resumia a uma troca vã de prendas e “boas festas”. Nunca imaginaria, porém, que desta vez ele fizesse a diferença e lhe trouxesse como presente, um velho e gasto boneco decorativo que pertencera a Alzira. Na mão de Sao Ieng estava um tosco pai natal em posição de descida, levando às costas um saco repleto de corações.

      E vinha com os dizeres em chinês:

      “Voltei!”

       

       

      Conto incluído no livro Crónicas à Sexta, de Miguel de Senna Fernandes (praiaGrande Edições, 2020)

      Ponto Finalhttps://pontofinal-macau.com
      Redacção do Ponto Final Macau