Sara Figueiredo Costa
Sandro William Junqueira
A Sangrada Família
Caminho
Arriscando um balanço da vaga de “novos escritores” que há cerca de uma década, década e meia, ocuparam as páginas literárias dos jornais portugueses, dir-se-ia que Sandro William Junqueira parece não ter beneficiado do impacto que outros autores colheram nesse interesse colectivo da imprensa e do público. Não é que não tenham sido publicados artigos e entrevistas com o autor, mas a sua presença foi sempre discreta quando comparada com a de outros colegas de ofício, aparições regulares (e, às vezes, demasiado repetitivas, criando a ilusão de que mais ninguém estaria a publicar em Portugal nessa faixa etária dos 30-40 anos). É muito provável que seja o marketing, com a sua curiosa mistura de investimento profundo com golpe de sorte, a explicar esta presença discreta de um autor que já conta com ooo romances na biografia, todos eles capazes de se sustentarem literariamente sem necessidade de promoções vãs, para além de outros trabalhos literários e de um intenso labor na área da dramaturgia. Com o seu novo romance, A Sangrada Família, seria de elementar injustiça se o autor permanecesse nesta espécie de sombra mediática – ainda que seja óbvio que o reconhecimento público nada tem a dizer sobre a qualidade da escrita de quem dele beneficia.
Este é o primeiro romance do autor cuja narrativa decorre num território identificável. Seria um pormenor, se a geografia não fosse tão capaz de condicionar as acções das personagens que por aqui desfilam. Na serra algarvia, não se sabe muito bem quem reina, mas sabe-se que o medronho é a raiz de muitos poderes e de outras tantas ilusões. E que os medronheiros, ainda que resistam a muito até produzirem os tão desejados frutos, dificilmente resistem ao fogo que regularmente assola as paisagens serranas. Seria esse o princípio, se esta história tivesse de ter um.
Duas famílias destilam a artesanal aguardente e, com ela, o ódio que as envolve. O medronho dos Capote guarda um segredo medicinal, enquanto o dos Monteiro se aproxima de uma experiência mística. Ambos queimam as entranhas na mesma medida em que despertam fulgores no sangue e na mente de quem os consome. À volta da bebida, e à boa maneira de Romeu e Julieta, um elemento de cada clã deixa-se cair em tentação apaixonada, tentando que seja secreta. Sem sucesso, claro. Filomena Capote e Teodoro Monteiro são essas personagens que começam por aparecer no centro da narrativa, para logo depois se constatar o desvio do enredo para o tema de Caim e Abel, com Ezequiel Monteiro a disputar as conquistas do seu irmão Teodoro. E quando tudo parecia indicar que a narrativa caminharia sossegada por temas de tamanha tradição literária, começa a perceber-se que A Sangrada Família é tão desestruturada como a unidade social que lhe dá título, que poucas coisas são o que começam por parecer nesta complexa teia familiar e que este não é um romance que queira apenas contar uma história. Seria missão suficientemente nobre, mas o que aqui se perfila são as múltiplas histórias, tantas vezes mal contadas (como tende a acontecer com as histórias verdadeiras), que compõem a vida de uma família, mas também as declinações mentais que se acumulam em cada personagem e lhe definem os passos, nem sempre muito claros: ódios, desejos de vingança, indiferenças, hipocrisias e rancores, tudo aquilo que desfila em segredo pelo cérebro (ou será pelo corpo?) de quem partilha mesa, tecto e memórias que só aparentemente coincidem.
A prática dramatúrgica do autor nota-se neste romance, como já se notara em livros anteriores. À semelhança de um palco onde cada personagem se sente protagonista, ignorando alegremente o pouco controlo que pode ter sobre o desenrolar dos acontecimentos, a trama vai mudando de comando capítulo após capítulo. A mudança é tão eficaz que a leitura acaba por ceder à cilada, assumindo, em cada fala, que a personagem que faz uso da voz é a que vai, verdadeiramente, definir o rumo dos acontecimentos. E mesmo quando a personagem que se segue volta a baralhar tudo e a chamar a si o dom da omnipotência, prosseguimos na ilusão, cientes da armadilha, mas incapazes de reagir. Que esta incapacidade replique reacções comuns, e nem sempre conscientes, perante certas interacções familiares reais, não será uma coincidência, e nem é preciso citar Tolstoi e a sua definição retumbante da dissimulada infelicidade de tantas famílias.
O trabalho em torno da polifonia de vozes narrativas, ora lembrando a tragédia grega, ora assinalando as contradições no modo como cada personagem vê de modo tão distinto a história que todas as personagens partilham, conferem profunda verosimilhança a uma narrativa que assumimos como efabulação, mas onde reconhecemos os vícios, os silêncios e os segredos que são, também, o suporte de uma família: «Se fossem ditas todas as palavras sem filtros e organizadas num livro de contabilidade todas as acções e vontades, a maioria das famílias não ficaria de pé.» Ao contrário das velhas fábulas, aqui não há moral nem lições, mas há uma família a mostrar as suas entranhas (a certa altura, literalmente, quando uma faca entra em cena para cumprir o mito bíblico dos dois irmãos). E há, no coro desafinado que estas personagens compõem, um retrato doloroso das relações familiares onde, mesmo sem serra, fogo e medronho, não é difícil reconhecer os contornos de tantos quotidianos e do modo como se estendem por décadas, alcançando as gerações seguintes. É bem possível que não tenhamos inventado nada de novo desde que Caim e Abel lançaram a dúvida sobre o sangue e os seus laços supostamente inquebráveis, mas é reconfortante descobrir que a literatura continua a ser o melhor lugar para enfrentar essa dúvida sem necessidade de derramar sangue verdadeiro. Ainda assim, é possível que os tapetes não saiam incólumes.