Benjamin Moser
Sontag – Vida e Obra
Objectiva
Tradução de José Geraldo Couto
Tal como já havia feito com Clarice Lispector, Benjamin Moser escreveu a biografia de Susan Sontag com o rigor de um documentalista que não deixa escapar qualquer pedaço de papel anotado e a devoção de quem é capaz de se entregar a um objecto/sujeito de estudo durante muito tempo, de certo modo como muitos romancistas fazem com as suas personagens ficcionais. Sontag – Vida e Obra (que foi distinguido com um Prémio Pulitzer em 2020)) é um monumental trabalho sobre Susan Sontag, autora fundamental da segunda metade do século XX, que tinha a disciplina e a criatividade de pensamento de uma renascentista associada ao olhar desarmado perante a fragmentação e a desordem por decifrar que configuraram aquilo a que chamamos pós-modernismo. O texto lê-se não exactamente como um romance, mas com a satisfação proporcionada por uma narrativa biográfica bem escrita, com os avanços e recuos cronológicos feitos de modo certeiro e sem contemplações perante as fraquezas de carácter da biografada, as dúvidas, as histórias mal contadas.
Integrando todas estas características, este é também um trabalho problemático no que à abordagem ao seu objecto diz respeito. O livro de Benjamin Moser apresenta-se como uma biografia, mas rapidamente se afirma como a defesa de uma tese, e uma não necessariamente passível de provas, pelo menos não do mesmo modo que é possível provar, pela documentação, que Sontag esteve aqui ou ali, com esta ou aquela pessoa. Com acesso total ao espólio, onde milhares de páginas de diários, notas, correspondência e outros documentos permitem traçar a narrativa de uma vida e de um pensamento, Moser não se limita à fixação dessa narrativa. O seu ensejo é explicar Sontag e a explicação obedece a uma leitura psicanalítica que transforma o objecto do seu trabalho num caso patológico. As dificuldades de Sontag perante a expressão das emoções em geral e a relação com o amor em particular, bem como a sua recusa em assumir – publicamente, mas também para si própria – a homossexualidade são minuciosamente explicadas por Moser à luz de uma patologia emocional provocada pela infância (que o autor sustenta a partir de teses de psiquiatras e psicanalistas), sobretudo pela relação com a mãe, Mildred, uma mulher carente, insegura e manipuladora a braços com um problema de alcoolismo. Ora, nem Moser é psicanalista, nem a psicanálise prestaria um bom serviço à humanidade se o seu objectivo fosse o de resumir como patologia a complexidade das emoções humanas e o seu cruzamento com as memórias, próprias e alheias, os impactos, as fobias. Quando Moser diz que a autora de Olhando o Sofrimento dos Outros se criou numa «dinâmica sadomasoquista que se repetiria ao longo da vida» (pg.39), não está a referir-se às suas práticas sexuais, está a proclamar um diagnóstico – nada isento de julgamentos morais – e a tentar sustentar com ele a tese de que tudo o que Sontag fez, pensou, escreveu e viveu é o resultado de um trauma, como se trauma e pessoa fossem uma só coisa, como se nada existisse na pessoa para além do trauma.
Paralelamente, explana-se uma outra tese, a de que Sontag seria a verdadeira autora do livro Freud: The Mind of the Moralist, publicado pelo seu marido, o professor Philip Rieff, em 1959. Casada com Rieff, de quem tinha sido aluna, há pouco tempo, Sontag dedica parte do seu tempo a ajudar o marido nos seus trabalhos académicos e refere mais do que uma vez a reescrita de partes dessa obra. Cruzando os testemunhos de vários amigos e conhecidos do casal, bem como a dedicatória escrita pelo próprio Rieff num exemplar que oferece a Sontag muitos anos mais tarde, Moser conclui que pelo menos parte considerável do livro mais importante da carreira de Philip Rieff foi, na verdade, obra de Susan Sontag. E aqui expõe-se uma das interessantes contradições desta obra-tese: Moser, que parece acreditar que a fama de Sontag era pouco merecida, atribuindo-a mais aos comportamentos e imposições da autora do que à importância da sua obra, luta com todas as forças documentais para provar que a única obra pela qual Sontag não ficou famosa era, afinal, sua. Subscrevêssemos o seu à vontade em psicanalisar autores e teríamos aqui pano para muitas mangas…
Ao longo de quase 700 páginas, Moser equilibra o rigor da escrita no que à cronologia e à documentação diz respeito, bem como a iluminação detalhada dos percursos e desvios que Sontag foi fazendo, com uma sanha indisfarçável perante aquilo que parece considerar as suas fraquezas morais e emocionais, da ida para a Europa (deixando o marido e o filho pequeno nos Estados Unidos) à participação nos movimentos políticos que exigiam apoios para o tratamento dos doentes com SIDA (que, para Moser, não foi suficientemente comprometida pelo facto de Sontag nunca ter referido a sua própria homossexualidade, numa altura em que a comunidade homossexual era o bode expiatório da pandemia). Já perto do fim do livro, Moser escreve: «Era essencial a ideia da mulher que ia a todas as estreias, via todas as óperas, lia todos os livros e resistia ao cerco de Sarajevo unicamente mediante a dramaturgia. Para a pessoa de Susan, significava uma pressão que começava a enlouquecê-la. Em Israel, alegou que a importância de uma escritora consistia no que ela era. No entanto, a verdadeira importância de Sontag estava cada vez mais naquilo que ela representava. A metáfora de “Susan Sontag” era uma grande criação original. Elevava-se muito acima da sua vida individual e sobreviver-lhe-ia (…).» (pg.536) À luz das centenas de páginas anteriores, estas frases lêem-se como uma desvalorização de Sontag, colocando a sua personna pública como algo totalmente separado da própria, uma espécie de monstro fictício, intelectualizado e incontrolável. Impõe-se a dúvida: será assim tão lógico separar taxativamente as muitas camadas que fazem uma pessoa? A ideia menoriza a autora, transformando-a numa espécie de fantoche que, manipulado pela infância traumática e alimentado pela vontade de fama, pouco contribuiu para a sua vida e para a sua obra – duas dimensões que claramente é difícil apartar quando se trata de Susan Sontag.
O livro de Benjamin Moser não deixa de ser um documento essencial para conhecer Susan Sontag, os detalhes da sua vida – da ida para Berkeley logo depois da conclusão precoce do ensino secundário às escolhas políticas que foi fazendo ao longo da vida, por vezes titubeando nas suas próprias convicções, mas sempre assumindo o que pensava em cada momento, mesmo quando as regras que tinha estabelecido para si própria mudavam, passando pelos amores tempestuosos, pela escrita torrencial, pelo desafio constante de olhar o mundo e tentar percebê-lo em diálogo – e os momentos relevantes da sua obra. Os vieses que nele se revelam merecem, também por isso, leitura e discussão atentas. E talvez o facto de ser um livro essencial e rigoroso na sua vertente documental e, ao mesmo tempo, conter uma série de abordagens problemáticas no que diz respeito à leitura biográfica seja a verdadeira razão da sua importância. Afastando a tendência hagiográfica que por vezes mina as biografias, Moser acabou por cair no extremo oposto, e ainda assim nunca perdeu a mão a uma linha narrativa que se esperava sólida, reveladora de documentação até aqui desconhecida e capaz de convocar leituras sobre a obra da autora à medida que ela ia sendo criada. Cumprida, e bem, essa vertente, o julgamento moral, a vocação patologizante e o exercício inconsistente de psicanálise não desaparecem, mas tornam-se motivo de debate e reacção, o que pode ser lido como um bom serviço prestado à obra de alguém que via na discussão exaustiva de ideias e pontos de vista um modo de evoluir intelectualmente.