Com os números de depressão e ansiedade a aumentar no território, há motivo para alarme? Na opinião de quem trabalha no sector, a pandemia pode ter trazido à superfície alguns problemas, mas também resultou numa maior consciência de que é necessário tratar da saúde mental.
Um em quatro residentes tem tendência a sofrer depressão e um em cinco pode sofrer de transtornos de ansiedade, concluiu o estudo da Associação de Saúde Mental de Hong Kong e Macau e da Faculdade de Medicina da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (MUST), citado pelo jornal Ou Mun no mês passado. Mas será que isso significa que os residentes do território têm agora maiores problemas de saúde mental? Os profissionais da área contactados pelo PONTO FINAL acreditam que a Covid-19 despertou alguns problemas de saúde mental, mas também trouxe uma maior consciência da sua existência.
Olhando para os principais problemas de saúde mental dos residentes do território neste momento, o professor-associado da Universidade de São José de Macau, Vitor Teixeira, declara que “podem ser um efeito perverso do desenvolvimento económico de Macau”, já que, explica, “as pessoas habituadas a uma boa vida não desenvolvem mecanismos de resiliência”. Na verdade, “a felicidade e o bem-estar não estão directamente relacionados com o bem-estar económico”, conforme estudos realizados em florestas na Amazónia em comunidades pobres demonstram. “Não são os países ricos que têm as pessoas mais felizes”, reforça.
Na verdade, talvez haja outro tipo de correlação. “À medida que há uma maior oferta de serviços, meios e produtos, também aumenta a nossa vontade de ter mais e a nossa insatisfação por não termos tanto”, diz.
Conforme o estudo publicado, os residentes mostram um risco elevado de depressão e ansiedade, com uma taxa de risco destas perturbações até 27% e 19%, respectivamente. Os resultados dão ainda conta de que os jovens têm um risco mais elevado face a outros grupos etários.
Para Vitor Teixeira, é possível que “as pessoas de Macau, especialmente as gerações mais novas — as mais antigas estão cá há anos ou vieram da China continental e tiveram de passar por muitas privações — não saibam lidar com a adversidade”, sugere.
OS EFEITOS DA PANDEMIA DE COVID-19
Com a pandemia de Covid-19 e as privações impostas pelo Governo, algo mudou. “De repente, os residentes tiveram de se confrontar com medidas restritivas, que não estavam preparados para enfrentar”, afirma o psicólogo. “O isolamento social, o não poder viajar, o ter de ficar em casas pequenas, fechados com a família e o correspondente aumento da conflitualidade”, enumera, acrescentando: “O ter perdido as redes de suporte social, o não poder ir aos restaurantes como as pessoas estavam habituadas poderá ter contribuído para aumentar esta sensação de mal-estar”. No fundo, é possível que agora se esteja a “pagar a factura, a médio-prazo, das medidas restritivas da pandemia, altura em que as pessoas estavam anestesiadas”.
Ainda assim, diz, o Governo de Macau está “preocupado” com isto, e tem adoptado várias medidas de “promoção da saúde mental”, que passam por “dar apoios às Organizações Não Governamentais (ONG) para terem psicólogos, linhas de apoio reforçadas e a promoção de programas comunitários com vários serviços disponíveis”.
A psicóloga Agatha Lam, que trabalhou muitos anos nos Estados Unidos e, desde 2017, em Macau, concorda e admite ver mudanças na sociedade local no que toca à saúde mental, desde que cá chegou. “Quando cheguei ao território, via diferenças mais evidentes sobre como os asiáticos e os ocidentais viam a saúde mental”, declara. “No geral, os asiáticos, mesmo os que estão nos Estados Unidos, são mais tradicionais e conservadores, levando mais tempo a admitir de que é suficientemente sério para ser tratado”, refere. Porém, nos últimos anos, sobretudo depois da pandemia de Covid-19, “as pessoas em Macau estão mais abertas a pedir ajuda”, por terem sofrido uma série de problemas nessa altura.
Na verdade, a pandemia despertou ou intensificou os problemas de humor e as questões ligadas à depressão e à ansiedade. “Sentiram-se mais deprimidos, mais desesperançados”, diz.
A DIFICULDADE EM PEDIR AJUDA
O inquérito dá conta também de uma dificuldade em pedir ajuda. Segundo a Associação e a Universidade, mais de metade dos inquiridos não pretendia procurar apoio profissional quando se sentia deprimido ou ansioso. “As principais razões prendiam-se com o facto de eles pensarem que eram capazes de lidar com a situação ou de terem uma vida ocupada e sem tempo para ir à consulta, enquanto alguns não queriam solicitar apoio porque pensavam que o custo do serviço era elevado e não queriam suportá-lo”, constataram. Para Vitor Teixeira, este trata-se de um fenómeno “muito típico em populações asiáticas”, no geral.
Ainda assim, perante o aumento do número de casos que este inquérito parece estar a apontar, o psicólogo afirma que “o que pode estar a acontecer é que as pessoas agora falam mais sobre isto”. Para isso, os números alusivos ao ensino especial são expressivos. “Em 2000, eram quase 100 pessoas sinalizadas para o ensino especial e hoje são mais de 2000”, revela. “O que acontece é que as pessoas têm menos vergonha de assumir as dificuldades dos filhos, os próprios pais aceitam que os meninos sejam avaliados”.
Já a psicóloga Agatha Lam refere que, neste ponto, provavelmente, poderia haver maior apoio do Governo para “as pessoas com carências e que precisam destes tratamentos”. Ainda assim, já há tratamentos gratuitos no hospital público, além de vários serviços providenciados pelas ONG do território.
E, olhando para a composição da população do território, Agatha Lam afirma que, hoje em dia, é mais fácil para os chineses locais procurarem tratamento, o que, há uns anos, era pior. Não se vendo grandes diferenças entre os géneros, afirma que talvez “haja mais mulheres” a passar pelo seu consultório.
COM QUEM FALAM?
Muitas vezes, o que falta, porém, é “pôr em contacto as pessoas que precisam de ajuda e as pessoas que estão disponíveis para ajudar”, diz Vitor Teixeira, arriscando algumas justificações para isso. “Pode ser porque as pessoas que precisam de ajuda ainda sentem alguma vergonha, como esse próprio relatório diz”, afirma. Mas também pode ser “porque muitas preferem falar com amigos e familiares e, só em última instância, pedem apoio a um profissional”. Outra hipótese pode ser uma falta de hábito por parte dos profissionais de estarem “disponíveis e próximos das populações que ajudam”. É, por isso, essencial “promover mais os serviços de ajuda mental, mais acções de sensibilização e os serviços comunitários irem mais às escolas e às associações de moradores, às associações de diferentes expatriados, falar sobre isso e mostrar que estão disponíveis para ajudar”.
Porém, não atribui isso à falta de iniciativa da sociedade civil nem à falta de financiamento do Governo. “A Caritas Macau tem vários serviços comunitários, a Associação de Beneficência Sheng Kung Hui, a Federação das Associações dos Operários de Macau, a Associação Geral das Mulheres de Macau — há uma iniciativa da sociedade civil, há financiamento do Governo e há respostas comunitárias que existem e com profissionais que estão disponíveis para ajudar e que fazem o seu trabalho, organizam workshops sobre saúde mental e acho que, havendo ainda mais necessidade, podem absorver as necessidades da população. Não acho que haja de facto aqui uma carência de recursos”, diz.
OS PRINCIPAIS PROBLEMAS
No estudo publicado, os residentes apontaram o trabalho, os assuntos familiares e a situação financeira como as principais fontes de pressão emocional. Para Vitor Teixeira, se olharmos especificamente para os jovens, os principais problemas estão ligados “à pressão escolar e académica que, não sendo específico de Macau, é muito característico das culturas asiáticas”. Por isso, diz, uma das coisas que mais lhe interessa é a maneira como estes ocupam o tempo.
“Os estudos mostram que as crianças e os jovens em Macau participam muito pouco em tarefas domésticas, são poupados a ter de pôr a mesa, arrumar o quarto, fazer a cama”, declara. Mas se, por um lado, são poupados às tarefas domésticas, são bastante pressionados no que toca ao desempenho escolar. “Isso ainda é um problema, porque uma das coisas que aprendemos é que, nas relações entre pais e filhos, deve haver uma aceitação incondicional e acho que muitas vezes ainda passa a mensagem de que os miúdos valem em função das notas que têm e não em função daquilo que são”, revela, explicando que é por isso que têm um grande volume de aulas e apoio depois da escola.
Sobre as problemáticas ligadas à indústria do jogo, Vitor Teixeira afirma que existem, em Macau, e há serviços específicos para lidar com isso, assim como as diferentes ONG.
Entre os principais problemas das pessoas que passam pelo consultório de Agatha Lam, incluem-se a depressão, ansiedade, ‘burnout’ e stress ligado ao trabalho. Especificamente no que toca aos jovens, há pressões na escola ou universidade e entre os seus pares. “A sociedade é tão competitiva que muitos dos jovens sentem que trabalham muito, mas não veem como o seu trabalho os leva para o sucesso, podem sentir-se perdidos”, afirma.
OS PROFISSIONAIS QUE ESTÃO NO TERRITÓRIO
No que toca aos profissionais a trabalhar no território, a psicóloga tem notado um número crescente de profissionais da área nos últimos anos, na sua maioria, chineses. “Eu diria que talvez fosse preciso mais profissionais da área com um bom entendimento das diferentes culturas”, afirma. Por exemplo, há poucos que sejam fluentes em inglês, mas o número de profissionais com um conhecimento intensivo da vida em diferentes países é ainda menor.
Quanto aos seus próprios pacientes, a abordagem pode ser diferente. “Talvez os chineses gostem mais de uma abordagem directa, enquanto os estrangeiros sentem-se mais confortáveis num tipo de terapia mais exploratória”, diz.
No geral, também no que diz respeito às crianças com necessidades educativas especiais, há uma mudança positiva no território, mas tudo depende das escolas em causa. “Há escolas mais abertas, que querem trabalhar com terapeutas em colaboração para ajudar as crianças, como uma equipa”, afirma. Ainda assim, no geral, nota-se a falta em escolas internacionais e chinesas de profissionais especializados em crianças com necessidades educativas especiais.
O TRABALHO NO TERRENO
Para o secretário-geral da Caritas Macau, Paul Pun, há uma grande diferença no passado e no presente. “Dantes, as doenças tornavam-se sérias e os pacientes perdiam a oportunidade de serem bem tratados”, refere. “As pessoas não conseguiam reconhecer os membros da família, conseguiam perceber que algo estava diferente, mas não sabiam exactamente o que era”, acrescenta.
Hoje, o caso é diferente. “As pessoas têm mais consciência da doença mental e, se eu ficar doente, vão imediatamente dizer que é importante ver o médico”, afirma. E há mais meios para providenciar ajuda. “Se estiverem muito mal, podem ir directamente às urgências do Hospital e serão imediatamente seguidas por um psicólogo. Se for mesmo grave, terão tratamento no Hospital, mas, se for mais ligeira, serão referenciadas para clínicas externas”, esclarece.
Claro que há casos e há casos. “Há quem esteja a sofrer de doença mental, mas não têm apoio da família para serem tratadas ou acham que não estão doentes ou que iniciam tratamento, mas depois param de tomar os medicamentos receitados”, afirma. Nessas situações, as pessoas podem, naturalmente, piorar e nunca recuperar.
Sobre o aumento do número de casos de depressão e transtorno de ansiedade referido no inquérito, Paul Pun atribui à Covid-19. “Muitas pessoas ficaram mais frágeis depois da pandemia, ganharam outros problemas, menos mecanismos para lidar com estas questões”, refere.
E OS SUICÍDIOS?
Durante a primeira metade deste ano, 44 pessoas cometeram suicídio em Macau, segundo informação dos Serviços de Saúde, menos três casos do que no primeiro semestre de 2023. No segundo trimestre deste ano, os casos registados pelas autoridades disseram respeito a nove indivíduos do sexo masculino e 13 do sexo feminino, com idades compreendidas entre os 12 e os 76 anos. Deste universo, 19 (ou 86,4%) eram residentes da RAEM, enquanto três (ou 13,6%) eram não residentes. As possíveis causas estão relacionadas com doenças mentais, problemas com o jogo e dificuldades financeiras.
No ano passado, 88 pessoas suicidaram-se em Macau, total que representa um aumento anual de 10% em relação a 2022, que já tinha sido um ano dos mais mortais dos últimos 10 anos. Para o psicólogo Vitor Teixeira, estes números podem causar alarme social, mas talvez possam estar mais ligados a fenómenos paralelos. “Há fenómenos nas redes sociais, fenómenos da Internet, nomeadamente os chamados pactos de suicídio, que podem estar a acontecer e a afectar os jovens”, diz.
Em 2015, antes mesmo da pandemia, a Caritas Macau criou a linha aberta “Esperança de vida da Caritas”, para combater o suicídio, em inglês e chinês. “Recebemos, num ano, 10.000 chamadas do público”, refere Paul Pun. “Há três grupos de pessoas que nos ligam: pessoas com problemas familiares, com questões ligadas à saúde mental e problemas de relações inter-pessoais”, esclarece. Entre o total de 10.000 chamadas, talvez 40 ou 50 se refiram a pessoas que estão a planear cometer suicídio.
Para atender as chamadas, a Caritas Macau, dependendo da gravidade dos telefonemas, disponibiliza diferentes tipos de ouvintes. “Temos os voluntários e temos assistentes sociais, psicólogos ou outros profissionais”, diz, especificando: “Se alguém apenas quiser falar por estar infeliz ou insatisfeito com algo, os voluntários ouvem-nos e fazem com que se sintam ouvidos”. Mas, quando o caso é mais sério, são encaminhados para profissionais especializados. “Se alguém ligar a dizer que está a sofrer de violência doméstica, o telefonema é encaminhado para os profissionais”, exemplifica.
À linha da Caritas Macau, chega todo o tipo de casos. “Já ligou alguém que se queria suicidar, porque um familiar ignorava-a e ela se sentia pequena e insignificante”, recorda.
É, por isso, cada vez mais importante passar a mensagem certa às pessoas. “Talvez toda a gente, pelo menos uma vez na vida, vá ter problemas de saúde mental — demasiadas preocupações, depressão, dificuldades a dormir, medo em encontrar demasiadas pessoas, distúrbios alimentares”, diz. Quando isso sucede, há que reconhecer o problema e procurar tratamento.
O PONTO FINAL contactou a Associação de Psicologia de Macau, que preferiu não comentar. Também não foi possível encontrar pessoas a passar por questões ligadas à saúde mental no território, com disponibilidade para partilhar o seu testemunho.