Dora Nunes Gago
Febre amarela
Borboletas de fogo percorrem-lhe a pele, desenhadas por aquelas mãos a pressionarem cada linha, cada músculo do seu corpo. Alex pensa na vida. Por onde andará ele? Tem sempre a sensação de que quando chegar a casa, lá estará à espera dela, refastelado no sofá, em frente à televisão, com os pés em cima da mesa, agarrado ao ipad no facebook, no instagram, no twitter ou no wechat, pois é perito em redes sociais. Mas não. O sofá e o resto da casa estarão vazios. Há quinze dias que ele saiu de casa – contaminado pela chamada “febre amarela” – e ainda parece ouvir-lhe os passos, sentir aquela presença ao seu lado na cama. Afinal foram vinte anos. Vinte anos de casamento, por sorte sem filhos. Nenhum dos dois sonhava propriamente com a formação de uma família, embora também não estivesse inteiramente fora de questão. Simplesmente não aconteceu.
Fazia naquele dia três anos que tinham chegado a Macau. Em Portugal, ele perdera o emprego no banco, ela gravitava de call center em call center. As dívidas acumulavam-se, pois Raul, filho único, habituara-se desde sempre a um nível de vida superior ao que os salários de ambos podiam pagar. Somavam-se os empréstimos para férias, para móveis, para o carro, já para não falar da casa. Com a queda drástica dos rendimentos e a subida das dívidas, decidiram tentar a sorte noutras paragens. Pensaram na Europa ou nos Estados Unidos, lá para as terras da Califórnia. Vir parar aos confins da Ásia é que não estava mesmo nos planos. Mas as coisas foram acontecendo e ele acabou por conseguir um emprego bem remunerado num Casino. Ela começou a fazer traduções em part time, que acumulava com horas num consultório.
No início, a adaptação foi difícil, procurar casa, uma saga acrescida pelas dificuldades de comunicação. Viram lugares onde parecia ter rebentado uma bomba e acabaram por arrendar um pequeno apartamento recentemente restaurado que prometia ser acolhedor. Puro engano! Quando começou a estação das chuvas, as inundações passaram a ser constantes: chovia nos quartos, na sala, só escapando incólume um pequeno canto ao lado do frigorífico, onde, em noites de tempestuoso desespero chegaram a encostar o colchão. As queixas eram sucessivas, as visitas dos pedreiros também, mas os consertos duravam, na melhor das hipóteses, uma ou duas semanas. Depois de terem ficado com quase tudo destruído devido a um tufão, conseguiram encontrar um outro apartamento.
Aos poucos, Alex foi-se acostumando ao cantonense, à confusão, à poluição da cidade, ao calor húmido, ao ar irrespirável. O salário de Raul no casino permitia pagar as dívidas em Portugal, ter uma vida desafogada, viajar pela Ásia.
Raul tinha horários muito irregulares e, às vezes, ficava um ou dois dias sem vir dormir a casa, mas Alex não estranhava.
Até que um dia, ao chegar a casa, viu um bilhete em cima da mesa da cozinha. Meia dúzia de palavras a comunicar que encontrara outra pessoa, fora viver com ela. O guarda-fato estava vazio na parte dele. Não sobrara qualquer marca física da sua passagem pela vida de Alex. Eclipsara-se como o nevoeiro matinal, uma sombra fugaz a viver agora só na sua memória. Apenas aquele rasgão na alma, ainda a sangrar. A palavra “encontrara” era cómica naquele contexto. Após vinte anos de casamento, parecia que tudo fora um mero acaso, uma passageira chuva de Verão que vai e vem, a terminar com meia dúzia de linhas num papel. Um pesadelo! Não tem qualquer ombro amigo onde chorar. Conta somente consigo própria. Se cair, ninguém a erguerá, ninguém a resgatará do pântano de areias movediças onde arrisca afundar-se. Precisa de se manter à tona, sobreviver.
Volta ao presente, à salinha escura do SPA, ao cheiro das velas, aos olhos fechados, às borboletas suaves geradas por aquelas mãos a espalhar um óleo aquecido pelo seu corpo, cheiro de incenso, de jasmim, a derramar-se em movimentos circulares, reconfortantes.
Só dias depois, ficou a saber que Raul apanhara a “febre amarela”, ou por outras palavras, andara a “montar casa” para uma jovem filipina, com metade da idade dele – a típica perdição do homem ocidental pela mulher asiática. O caso duraria há meses, comentado nos cafés onde desaguava a comunidade portuguesa aos domingos de tarde. Mas Alex, nunca frequentara esses lugares, sempre metida consigo e com a sua própria vida, ignorando os mexericos de aldeia típicos de Macau.
Naquele momento prenhe de eternidade, na lassidão morna daquelas mãos, tenta diluir a lembrança dos dedos de Raul no seu corpo. Devora-a a revolta, aquele vazio a rasgar o estômago, impedindo-a de respirar. Alguma vez passará? Talvez o tempo cicatrize a dor e, no seu lugar, fique apenas alguma mancha com uma costura rosada, como a ferida feita, ainda na infância, num acidente de bicicleta.
A massagista coloca-lhe as pedras quentes na pele. Embalada pelo calor suave, adormece. Sonha com o recomeço, o início de um novo caminho. Passado o peso da ausência, novas luzes brilharão. Nada é definitivo e a vida não passa de uma sucessão de instantâneos efémeros, intensos – uns felizes, outros dolorosos, uns coloridos, outros em tons de cinza – todos condenados, mais tarde ou mais cedo, a adormecerem num banco esquecido do jardim das memórias.