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      CRÍTICA

      DAR FORMA AO DESAMPARO

       

      Tânia Ganho

      O Meu Pai Voava

      Dm Quixote

       

      Depois do romance Apneia, Tânia Ganho regressa com um livro de memórias, assim se apresenta na badana. A designação assenta bem, porque este é um livro sobre o luto, mas talvez essa etiqueta seja demasiado redutora, como quase todas as palavras o são perante a perda de alguém que nos é querido. “Memórias” estará mais próximo de um rigor que se revela demanda ao longo destas páginas, fazendo justiça a essa matéria invisível que nos compõe e da qual os nossos mortos são parte essencial. Antes da aproximação a esse rigor, algum contexto: O Meu Pai Voava é assumidamente um livro na primeira pessoa e sem o véu da ficção. Escrito a partir da morte do pai é  um texto íntimo, que se atravessa, ainda assim, sem qualquer ameaça de intrusão ou voyeurismo, o que se explica pela facilidade com que qualquer leitor se relaciona com a situação (por experiência ou antecipação), mas sobretudo pelo trabalho de escrita a que a autora se entregou. É esse trabalho que faz deste um livro que nada deve ao sentimentalismo ou à tentação do conselho ou do exemplo.

      De que serve escrever sobre o luto? A quem escreve, servirá ou não para alguma coisa, mas esse é o lugar aonde não chegamos como leitores, nem tal nos cabe. Chegamos, sim, à matéria comum, ao reconhecível independentemente das experiências individuais e principalmente à transformação de uma experiência pessoal em matéria literária. A abrir o livro, lê-se: «Dou por mim a pensar se é do foro privado ou da esfera pública, a morte do meu pai.» (pg.9) A pergunta surge a propósito da partilha do acontecimento nas redes sociais, e das semelhanças dessa partilha com a necrologia que tornava públicas as mortes através dos jornais, mas a pergunta é o arranque do livro e não será por acaso. O que lhe subjaz pode ler-se como uma outra pergunta, agora sobre a publicação deste texto, lembrando que publicar é, precisamente, tornar público. As frases seguintes, até ao fim do livro, são também a resposta a essa pergunta não enunciada, uma confirmação de que a matéria literária pode fazer-se da mais íntima e impartilhável situação.

      A maldição de Babel convoca a pluralidade de idiomas humanos e a impossibilidade de comunicação fluída entre quem não os domine. Ecoando mitos anteriores, o episódio bíblico costuma ser exemplo para a importância da tradução (e, coincidência ou nem tanto, é esse o ofício mais regular de Tânia Ganho), mas talvez a maldição não tenha tanto que ver com diferenças idiomáticas; talvez na sua origem esteja a nossa individualidade e essa impossibilidade de, mesmo falando a mesma língua, partilharmos com outras pessoas de modo pleno e com a semântica às claras aquilo que nos passa pela cabeça, pelo corpo e por essa zona cinzenta de difícil classificação a que por vezes chamamos inconsciente. Babel existiria ainda que houvesse uma língua única, porque a Torre, a confusão das línguas e a maldição somos nós, sujeitos únicos e ainda assim dependentes dos outros para existirmos, condenados a tentarmos expressar o que somos, sabendo que nunca o conseguimos plenamente, mesmo que o idioma seja comum. Escrever sobre o luto é o exercício mais revelador dessa impossibilidade, e também aquele que mais diz sobre o tanto que temos em comum. Não há contradição e este livro é exímio a confirmá-lo.

      O luto é pessoal, subjectivo, mesmo quando é partilhado. Será lugar-comum, mas não perde relevância por isso. Na senda de outros livros que partiram do luto, e que a autora refere ao longo do texto (de Joan Didion a Rosa Montero, passando por Annie Ernaux), este livro parte de uma ausência e procura os seus sentidos, erguendo, de caminho, um texto muito para lá da perda. Escrever a partir desse lugar de desamparo é um exercício arriscado, porque é fácil cair nos abismos da lamentação e perder o fio que nos une a outras pessoas. Trazer o abismo para a língua comum, é esse o registo destas páginas, e Tânia Ganho cumpre-o, expondo o desamparo, mas construindo com ele uma outra coisa, um percurso que vai encontrando lugar para a ausência numa construção que a confirma presença, não só a partir das memórias – e da sua construção, que acompanhamos ao longo do texto –, mas também a partir dos confrontos com idealizações e vivências quotidianas e das inevitáveis projecções para o futuro: «Que rituais guardará o meu filho das minhas manhãs? (…) A que nos reduzimos nós na memória de quem deixamos para trás? Que sobrará de mim quando eu morrer?» (pg.121). Não se trata de um discurso de conforto, nada remotamente aparentado com as palavras que se dizem nos funerais e que só aparentemente podem atenuar a dor dos vivos. O Meu Pai Voava é um percurso que enfrenta a linguagem e as suas limitações, com elas (e contra elas) traçando um espaço que se reclama à finitude. Também no início do texto, logo depois da dúvida sobre o dever, ou não, tornar pública a morte do pai, a autora escreve: «De repente, a linguagem é um território cheio de imprecisões e eu procuro o rigor.» Ao longo do texto, serão muitos os momentos em que este rigor se confronta com a inevitável imprecisão, nomeadamente quando uma médica pergunta qual foi a causa da morte e depois explica que ninguém morre de Alzheimer. Esclarecida a causa da morte, pneumonia, lê-se «Para nós, ele morreu de Alzheimer.» (pg.85) O rigor não é o da ciência, é o da luta com a linguagem e as suas limitações para ser espelho do que vai acontecendo nesse lugar inacessível que somos. Nesse sentido, este livro é uma tremenda contenda, uma daquelas em que não há vencedores declarados. De certa forma, o que a linguagem permite é dar forma ao desamparo, como se essa delimitação, esse traçar de linhas, áreas e semânticas contraditórias através das palavras fosse o único modo de o domar. E talvez seja.