Edição do dia

Segunda-feira, 10 de Fevereiro, 2025
Cidade do Santo Nome de Deus de Macau
céu limpo
13.9 ° C
13.9 °
13.9 °
72 %
5.7kmh
0 %
Seg
17 °
Ter
18 °
Qua
20 °
Qui
19 °
Sex
17 °

Suplementos

PUB
PUB
Mais
    More

      EM FOCO

       

      Raquel Dias

      Palavras Nómadas para uma escrita de raizes

       

      Palavras Nómadas, de Dora Nunes Gago, acaba de ser distinguido com o Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga. O júri do prémio destacou a «prosa de grande fluidez, eivada de reflexões onde se cruzam percepções, memórias, cultura, literatura e história».

       

      A professora de literatura, investigadora mas também escritora e viajante, viveu quase uma década em Macau, chegando a Directora do Departamento de Portugês da Universidade de Macau, após ter passado por diversos outros cargos em  diferentes países (Uruguai, Estados Unidos). A sua profissão levou-a também a conferências, palestras e outras viagens. É deste movimento constante que nascem estas palavras.

      Natural de São Brás de Alportel, no Algarve, Dora não esconde— nem na sua escrita nem quando lhe perguntamos—  que as suas raízes, quer da terra, quer da língua que leva para onde vai, nunca as perde. Em Palavras Nómadas, colectânea de crónicas de viagem com edição da Húmus, Dora Gago partilha episódios vários das suas passagens por quase todos os continentes. Enquanto as descrições, sempre regadas de sentido de humor, das pequenas frustrações que o estrangeiro por vezes nos traz, nos divertem, é quando toca nas questões metafísicas que nós— também viajantes— mais nos revemos.

       

      Em Palavras Nómadas fala-se muito da questão espaço-tempo-identidade (chega mesmo a falar de Lovecraft e Heiddegger). Curiosamente, a Dora diz-se do Barrocal nas primeiras páginas, intitula-se Algarvia mais à frente, até se como ver portuguesa. É possível dizer-se que quanto mais distância há entre nós e a nossa terra natal, mais se alarga a visão do eu? Por outras palavras, concorda que, visitando um outro planeta, seríamos apenas “da Terra”?

      Sim, concordo inteiramente com essa perspectiva. A nossa noção identitária e de pertença vai-se dilatando com a distância, o conceito expande-se inevitavelmente. Assim, se estamos a Oriente, somos ocidentais, se estou na Ásia, sou Europeia e assim sucessivamente, até sermos terrestres em contacto com os marcianos. Isto prende-se também com a necessidade de comunicarmos aos outros a nossa identidade. Se eu, num outro país, disser que sou sambrasense ou algarvia, ninguém sabe o que significa, de modo que a solução é dizer-se que se é europeia, portuguesa.

       

      Durante esta viagem em nos leva o seu livro, cheio de eventos curiosos, a maior parte das suas aventuras acontecem em trabalho, quando ensina a língua e a literatura portuguesas a estrangeiros. Evitando citar a célebre fase de Pessoa, sente, ainda assim, que a língua lhe oferece uma espécie de solo que transporta consigo?

      Sem dúvida que sim. A língua é o nosso substracto, o facto de termos uma determinada língua materna define o que somos, é um elemento identitário fortíssimo. Aliás, o George Steiner, em Os Livros que Não Escrevi, refere, por exemplo, a experiência do sexo em línguas diferentes, o que espelha muito desta forte conexão entre língua e identidade. É ainda o mesmo Steiner quem diz «toda e qualquer língua interpreta a facticidade da realidade existencial».  Sentimos isto na pele quando aprendemos e falamos outras línguas. Posso dizer que o pouco que estudei de mandarim me ensinou muito sobre a China e o povo chinês. Ensinar português no estrangeiro tem uma dimensão muito forte de partilha cultural e também, no fundo, pessoal.

       

      Na Crónica «Em Amherst: no universo de Emily Dickinson», menciona como tantos têm necessidade de partir, por oposição à poeta que nunca saiu da pequena cidade, «muitas vezes em busca daquilo que têm atrás da porta (…) mas isso só depois descobrimos». Sente que se afastou então «por demasiado tempo» como refere no capítulo? Sente-se no desfecho da epopeia, quando se chega por fim a casa?

      Não, acho que me afastei durante o tempo necessário, para aprender a valorizar certos elementos que talvez me tivessem passado despercebidos de outra forma. A década vivida em Macau foi um tempo de aprendizagens extraordinárias, na qual senti que vivi muitas vidas e de forma muito intensa. Mas foi um ciclo que achei que fazia sentido fechar, muito por motivos familiares e também para seguir outros caminhos, pois acredito que a vida é feita de ciclos.

       

      Das muitas crónicas sobre os mais diversos aspectos da sua vida em Macau, as primeiras ainda muito jovem, as últimas já como viajante experiente, sente-se ainda assim um espanto. Pode-se dizer que, apesar de algumas semelhanças entre Macau e Portugal, se sentiu por vezes ainda mais estrangeira aqui, na cidade onde sentiu que não se podia dar ao luxo de se perder?

      Eu cheguei a Macau com trinta e nove anos e, como já disse, senti que passei por um processo de amadurecimento intenso. E sim, senti-me muito estrangeira em Macau e é um lugar onde a solidão se pode sentir de forma muito intensa. É um espaço sui generis, único no mundo, que aprendi a amar, mas que é feito de bolhas, de mundos paralelos que se toleram, mas que nem sempre se tocam. Eu sempre tive muita curiosidade em conhecer as outras culturas e Macau é uma montra extraordinária também nesse âmbito. Mas a comunicação, que é a base de tudo, é uma forte barreira, principalmente no início, quando ainda não sabemos como contornar essas dificuldades.

       

      Outro dos assuntos que aborda é ser mulher e viajante. Como quando teve de inventar um marido fictício que dormiu durante vários dias… Sente que o mundo melhorou neste aspecto? Acha que a mulher-viajante vai deixar de ser um ser estranho, sujeito a olhares e comentários?

      Gostaria de dizer que sim, mas… A experiência na Malásia aconteceu em 2013. Depois disso, encontrei várias jovens a viajarem sozinhas pelo mundo. Contudo, mais de dez anos depois, vemos ameaças às liberdades e retrocessos um pouco por todo o lado. Por isso, tenho certas dúvidas, apesar do tremendo caminho que tem sido feito rumo à emancipação feminina.

       

      Termino com a mesma pergunta que faz a Lovecraft, quando se questionou se ele seria Providence. Até que ponto é que [ainda] é do Barrocal?

      Na verdade creio que serei sempre do Barrocal, independentemente das viagens que faça, das experiências que viva, dos lugares e das pessoas que conheça. Esse sítio chamado Peral, nos arredores de São Brás de Alportel, é o meu ponto de partida, um ponto de origem que marca tudo o resto. O Torga levava esta questão ao extremo, referindo Trás- os-Montes, sobretudo a sua aldeia de São Martinho de Anta, como o seu axis mundi. No meu caso, nos anos em que não consegui sair de Macau, senti, mais do que nunca, a força das origens, a sua importância, aliada a uma pulsão da escrita que sempre existiu em mim, mas que camuflei, durante algum tempo, por detrás do trabalho académico, da investigação. Durante esse tempo, houve uma notável escritora portuguesa cujas obras tiveram muita importância para mim, também ela do barrocal algarvio: a Lídia Jorge. E neste contexto, as suas obras , sobretudo O Vale da Paixão, O Vento Assobiando nas Gruas e o Dia dos Prodígios foram para mim um reviver profundo de raízes.

      Ponto Final
      Ponto Finalhttps://pontofinal-macau.com
      Redacção do Ponto Final Macau