Num comentário difundido pela imprensa internacional, o Presidente Volodymyr Zelensky afirmava que a Rússia ocupa agora 20% do território da Ucrânia e que as linhas de batalha se estendem por mais de 1.000 km. Concluía “temos de nos defender contra quase todo o exército russo. Todas as formações militares russas prontas para combate estão envolvidas nesta agressão.”
O balanço de vitimas desta guerra de invasão de um país soberano é aterrador. 3000 soldados mortos pelo lado russo segundo o site russo IStories. Entre 7000 a 15000, segundo fontes ocidentais. Cem mortos por dia pelo lado ucraniano, o que para os cem dias de guerra totaliza cerca de 10000 mortos.
É possível ainda assim um balanço das operações militares. Putin concebeu uma operação em termos de guerra clássica com a tomada de território, fixação de posições e derrota das forças militares ucranianas em semanas. Contava para isso com um conjunto de factores que tinha por adquiridos.
Primeiro, a superioridade militar russa em termos de equipamento, número de homens, aprovisionamento de forças na frente de combate. Segundo, a adesão do povo ucraniano à operação militar com as populações saudando efusivamente os militares russos. Terceiro, a divisão ocidental sobre a Rússia e o medo quanto à utilização do arsenal nuclear russo. Quarto, a fragilidade de liderança de Zelensky, um político sem história, antigo comediante, sem formação militar. Quinto, o carisma, inteligência e conhecimento da Europa Central de Putin, advinda do tempo que integrou o primeiro directório central do KGB em Leninegrado. De 1985 a 1990 Putin foi chefe da secção do KGB em Dresden, na Alemanha Oriental. Sexto, a apatia da liderança norte-americana depois do recuo político-militar decorrente da saía do Iraque e do Afeganistão.
Todos estes factores fracassaram por erro de cálculo, arrogância estratégica e megalomania. O exército russo tem revelado uma decrepitude inconcebível no equipamento de combate, nas estruturas de aprovisionamento, uma descoordenação surpreendente entre estado-maior e a cadeia de comando, com unidades a funcionarem, por moto próprio, levando à perpetração de crimes de guerra contra populações indefesas. O apoio emotivo da população ucraniana aos “libertadores” não existiu e estes foram vistos com cruéis invasores, levando à mobilização patriótica e armada das populações das vilas e cidades flageladas. Surpreendentemente os políticos ocidentais perceberam que a agressão não se limitava à Ucrânia, mas que poderia estender-se a países da frente oriental da União Europeia. A ocupação por Hitler da Polónia há oitenta anos soou como aviso quanto a uma ameaça possível e provável. A tartaruga europeia mobilizou-se em meios financeiros e depois na ajuda militar ao exército ucraniano, recebendo e acomodando milhares de refugiados.
A visão politico-estratégica de Putin revelou-se um flop. O seu carisma motivo de anedota. Apenas os incondicionais o apoiaram, e apesar da repressão em São Petersburgo e Moscovo, opositores de Putin manifestaram-se nas ruas contra a desastrosa aventura militar, exigindo o fim da guerra. Sucederam-se, no tempo, demissões de membros do estado-maior russo e dos serviços de inteligência. Subiram de tom rumores sobre um eventual golpe palaciano para depor o presidente. Os Estados Unidos começaram a enviar ajuda financeira à Ucrânia e a despachar equipamento militar de combate terrestre e armas e misseis antiaéreos. E se a entrada da Ucrânia na Nato é uma hipótese remota, a adesão da Finlândia e da Suécia, países habitualmente neutrais, cria um factor de intranquilidade na vizinhança da Rússia, levando Putin a ameaçar usar armas nucleares contra a Europa. Algo nunca visto desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
No essencial, a operação militar está num impasse. A Rússia não tem capacidade estratégica e projecção de poder militar para ocupar todo o território ucraniano e levar à rendição do país. O ponto mais frágil da estratégia de defesa ucraniana é o Donbass, onde as guerrilhas pró-russas têm efectiva capacidade de penetração e ocupação de território, não estando apartada a possibilidade de um referendo fantoche – como foi feito na Crimeia – levar à independência das chamadas repúblicas populares de Donetsk (358 Km2) e Luhansk (257 Km2). As quais correspondem e a 0,1 por cento da área de todo o território ucraniano. Apesar do reforço militar ucraniano com ajuda ocidental, o país não tem capacidade para derrotar o exército russo mas apenas fazê-lo recuar para as posições de partida. Aliás, Biden tem sido muito claro a afirmar que não dará equipamento militar a Kiev que permita a Zelensky atacar território russo. Isso seria internacionalizar o conflito e levar a uma provável Terceira Guerra Mundial.
Que possibilidades diplomáticas de conversações que conduzam a um armistício? Não há para já contactos formais entre os dois lideres e as reuniões técnicos estão suspensas. Guterres tem pressionado para uma conferência internacional de paz para resolver o conflito (como se fez com a guerra do Vietname, por exemplo) mas até ao momento as duas partes parecem não ter posto de lado o confronto no teatro de operações. O que coloca outro problema. O facto de não se poder eternizar a questão dos 3,4 milhões de refugiados ucranianos em países europeus (segundo o ACNUR). As pessoas deixaram para trás as suas casas, haveres, famílias e estão naturalmente desejosas de regressar ao seu país, com a segurança possível.
O que coloca outras questões decisivas. Será este o tempo de incrementar o diálogo para o fim da guerra? Mas em que termos? Com cedências de território ucraniano? E quem paga a reconstrução da Ucrânia? Só a União Europeia e os Estados Unidos? Mas a Rússia que provocou o conflito não terá de pagar indemnizações de guerra? Terá Putin o discernimento de perceber que tem de recuar sob pena de não ter qualquer futuro politico?
Questões para as quais não existem respostas fáceis e intuitivas.
Arnaldo Gonçalves
Jurista e professor de Ciência Política e Relações Internacionais