Na véspera do início da guerra que completa agora três meses, o presidente russo, Vladimir Putin, negou o direito à existência da Ucrânia e dos ucranianos enquanto nação independente e soberana, num discurso duro e ameaçador que tinha por destinatários principais os países do Ocidente. Ao fazê-lo, seguiu aparentemente as teses defendidas por Alexander Dugin, um dos fundadores do Neo-Eurasianismo e considerado por muitos o “cérebro de Putin”. O que leva observadores a recear que o pior ainda esteja para vir. Para este filósofo e politólogo russo, a Ucrânia como estado independente representa “um enorme perigo para toda a Eurásia”. Até se resolver “o problema ucraniano fica destituído de sentido falar sobre política continental”, garante.
Num texto publicado dias antes do início da invasão, Dugin fez as suas previsões para 2022. Previu um fortalecimento do mundo multipolar, graças ao reforço das relações entre a Rússia e a China; admitiu a possibilidade de uma 3ª Guerra Mundial, por “os Estados Unidos continuarem a recusar-se a renunciar à posição de hegemonia que detiveram entre 1945 e 1991”; e mostrou-se convicto de que a Rússia continuaria a reforçar a sua soberania e a “restaurar a sua essência imperial”. Caso a Ucrânia se envolvesse em provocações, “a Rússia passaria à ofensiva e a Ucrânia, enquanto entidade independente e plataforma do globalismo, desapareceria de uma forma ou doutra”.
O tom belicista adoptado e a defesa aberta do expansionismo russo não surpreendem em Dugin. No livro em que lançou as bases do Neo-Eurosianismo, intitulado ‘As Fundações da Geopolítica: o Futuro Geopolítico da Rússia’, publicado em 1997, apresentava já a visão de um grande império euroasiático, dirigido por Moscovo, que se estenderia de Dublin até Vladivostoque (ou de Lisboa até Vladivostoque, como defendeu mais recentemente o ex-presidente e ex-primeiro ministro russo Dmitry Medvedev, que ocupa agora o ainda importante cargo de vice-presidente do Conselho de Segurança Nacional).
Nessa obra, Dugin defendia a divisão do mundo em dois grandes poderes: o marítimo, representado pela Grã-Bretanha, na Europa; os Estados Unidos, na América; a China, na Ásia; e a Turquia, no mundo islâmico; e o continental, construído em torno do eixo Moscovo-Teerão, sob liderança russa. Identificando os dois espaços como inimigos geopolíticos, traçou nessa sua primeira obra a estratégia que levaria à vitória da Rússia tradicionalista e conservadora sobre as democracias liberais do Ocidente. Nos Estados Unidos, o governo russo deveria investir numa política que encorajasse as correntes isolacionistas e fomentasse tensões sociais e raciais. Na Grã-Bretanha, deveria apostar nas forças que defendiam a saída da União Europeia e também nas que se batiam pela independência da Escócia e de Gales. No resto da Europa, deveria estimular políticas que levassem a Alemanha, a França e outros países a uma grande dependência energética da Rússia. Tudo isso em marcha, sugeria Alexander Dugin, a NATO não tardaria a desintegrar-se e seria uma questão de tempo até Moscovo conseguir a “finlandização” de toda a Europa.
A proposta de Dugin de uma nova ordem internacional na Europa, nesse já longínquo ano de 1997, era bem detalhada. A Alemanha assumia controlo sobre a maioria dos estados protestantes ou católicos da Europa Central, numa aliança com a Rússia que o autor designava como o eixo Moscovo-Berlim. A França associava-se à Alemanha e afastava-se do bloco atlantista. A Bielorrússia, a Moldova e os países bálticos eram reabsorvidos pela Rússia. À Polónia era conferido um estatuto especial dentro da esfera euroasiática. E países de religião ortodoxa, como a Roménia, a Sérvia e a Grécia, unir-se-iam debaixo de uma entidade descrita como Terceira Roma, herdeira directa do Império Romano do Oriente, sob influência russa e rejeitando claramente o Ocidente do racionalismo e do individualismo. Já a Ucrânia, “por não ter relevância geopolítica, importância cultural ou singularidade geográfica ou universal, ou mesmo exclusividade étnica”, jamais poderia continuar independente.
O livro apontava ainda para a necessidade da Geórgia ser desmembrada, através da incorporação dos territórios da Abkhazia e da Ossétia do Sul na Federação Russa. A separação dos dois territórios acabou mesmo por acontecer em 2008, no seguimento de uma intervenção militar que deixou muito fragilizado o regime de Tiblíssi. Anos mais tarde, tropas russas ocuparam a Crimeia e um referendo, não reconhecido pela comunidade internacional, votou pela integração do território na Rússia, ao mesmo tempo que movimentos separatistas no Donbas davam início a um conflito que se estendeu até aos dias de hoje. No relatório da acção governativa do ano de 2014, o então primeiro ministro Dmitry Medvedev comparou o acto de auto-determinação da Crimeia com a queda do Muro de Berlim e a reunificação alemã, ou a reintegração de Macau e de Hong Kong na China, adiantando que a mesma situação se aplicava às regiões separatistas do Donbas. A visão geopolítica de Dugin começava gradualmente a tornar-se realidade.
Neo-Eurosianismo: Sinófilo ou Sinófobo?
Quando se virava para a Ásia, Alexander Dugin manifestava nesse primeiro livro ideias igualmente radicais e preocupantes. Irão e Arménia eram aliados naturais. Já as repúblicas do Cáucaso e as nações do Cáspio e da Ásia Central – Cazaquistão, Turquemenistão, Uzbequistão, Quirguistão e Tajiquistão – deveriam ser parte integrante do território russo. E a Turquia teria de ser posta em sentido, através de “choques geopolíticos” provocados por acções de desestabilização das minorias curda e arménia.
Relativamente à China, a posição de Dugin estava também longe de ser amistosa. A China era vista como uma ameaça à Rússia e, por isso, “deveria, na medida em que fosse possível, ser desmembrada”. O politólogo sugeria que a Rússia começasse por tomar o Tibete, Xingjiang, a Mongólia Interior e a Manchúria, para formar aí uma cintura de segurança. Para compensar Pequim em termos geopolíticos, Moscovo apoiaria os esforços da China em reforçar a sua influência a sul, nomeadamente na Indochina (excepto o Vietname, aliado da Rússia), Filipinas, Indonésia e Austrália. O Japão seria um aliado de Moscovo nesta estratégia, devendo para isso ser apoiados os movimentos anti-americanos e devolvidas as ilhas Kuril, ocupadas pela União Soviética nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial.
As teses de Alexander Dugin face à China sofreram, no entanto, uma reviravolta de 180 graus quando, recém-chegado ao poder, Vladimir Putin iniciou um processo de aproximação a Pequim, no início deste século, com o presidente Jiang Zemin e os seus sucessores. A China passou a ser descrita por Dugin como um “poder continental” e aliado natural da Rússia, com quem partilhava a defesa de um mundo multipolar, contra a hegemonia americana. Dugin passa então a realçar a natureza única da civilização chinesa e acaba mesmo por defender, em palestras que foi convidado a realizar na Universidade de Fudan, em Xangai, em 2018, a ideia de que Moscovo já terá aceite que a China será a nova potência dominante no mundo.
Perante a volatilidade ideológica de Dugin e dos seus seguidores, face a posições bastante distintas de outros politólogos chineses também próximos do Kremlin, a investigadora francesa Marlene Laruelle faz a pergunta que se impõe: “Quando a Eurásia olha para Leste, o Eurosianismo é Sinófilo ou Sinófobo?” Dito de outro modo, a aproximação de Moscovo a Pequim é um acto genuíno de amizade e cooperação, ou é fruto das circunstâncias e esconde objectivos futuros inconfessáveis?
No estudo que publicou sobre o tema, Laruelle traça uma distinção muito clara entre as posições de Dugin e a de outros neo-eurasionistas, como Mikhail Titarenko, antigo director do Instituto do Extremo Oriente da Academia Russa de Ciências, que é visto como sinófilo e que apresentou uma outra alternativa ao globalismo ocidental. Titarenko, falecido em 2016, encarava a China como um modelo para a Rússia, em termos políticos, económicos e identitários. Elogiava, em particular, a capacidade da China, do Japão e dos tigres asiáticos de abraçarem a modernidade tecnológica do Ocidente sem abdicarem da sua própria cultura.
Embora o seu discurso fosse optimista, Titarenko reconhecia a existência de “uma sensação de estranheza” entre as partes europeia e asiática da Rússia, que poderia pôr em causa a sua coesão territorial. Por isso, foi ao ponto de propor a criação no Extremo Oriente russo de entidades políticas autónomas inspiradas no exemplo das regiões administrativas especiais de Macau e Hong Kong. Seria, no fundo, admitir o carácter binário da Rússia e da sua economia: as regiões a oeste mais viradas para a Europa, as regiões da Sibéria de olhos postos na Ásia-Pacífico.
China fora da Eurásia
Em Macau, a ameaça expansionista que a Rússia e o Neo-Eurosianismo possam exercer sobre a China não causa alarme nos meios académicos, a julgar pelas reacções obtidas pelo PONTO FINAL. Edmund Li Sheng, director do Centro de Estudos Russos da Universidade de Macau, em artigo de opinião assinado nestas páginas, vê a parceria entre os dois países desenvolver-se de forma saudável, ainda que seja prematuro falar de uma aliança entre as duas partes. Do mesmo modo, Michael Share, ex-director do Centro de Estudos Russos da Universidade de S. José, considera que o Neo-Eurosianismo não deve ser visto como uma potencial ameaça à China, entre outras razões, porque “a Eurásia lida com a China de forma meramente periférica”. Para este académico, o objectivo de Moscovo é recriar o antigo império Russo, reunindo as nações eslavas do coração da Europa – Rússia, Bielorrússia e Ucrânia – com a Ásia Central e o Extremo Oriente. “É isso o que significa para eles a Eurásia”, diz. “Não querem tomar qualquer parte da China, e lhes interessa na China a manutenção de uma aliança contra o internacionalismo liberal do Ocidente”.
Share descreve Alexander Dugin como “um racista e um fascista, talvez até mesmo um nazi, que é suposto ser quem Putin combate na Ucrânia”. Mas diz também que Dugin jamais “ousará desafiar a política externa de Putin”, agora alinhada com Pequim, e que o facto de ter deixado de fazer referência a reivindicações territoriais russas sobre a China justifica que seja agora, sem surpresa, convidado a falar em universidades chinesas.
Quanto ao resto, ironiza sobre a falência de algumas das teses antes defendidas por Dugin: “O Trump é passado, graças a Deus, e Biden repudiou todas as suas políticas. Os britânicos acham cada vez mais que o Brexit foi um grande erro, que de facto foi. Os alemães estão a cortar nas importações de petróleo e gás russo, como todos os outros países da União Europeia. As palavras de Medvedev (de um império de Lisboa a Vladivostoque) são apenas isso, palavras”.
PONTO FINAL