Milos Hrma é um homem jovem que vive com a mãe e trabalha numa pequena estação de comboios perdida na Checoslováquia ocupada pela Alemanha nazi. Estamos no estertor da II Guerra Mundial. Milos, o narrador, descende de homens loucos e corajosos – o avô era hipnotizador e foi o único a ir ao encontro dos tanques germânicos que avançavam sobre a sua cidade e a tentar detê-los com a força da sua psique. «O meu avô foi andando estrada fora com os olhos fixos no primeiro tanque, que encabeçava a guarda avançada daquelas tropas motorizadas. E no cimo desse tanque, enfiado até a cintura dentro da torre, estava um soldado do Reich que tinha na cabeça um barrete preto com uma caveira e dois ossos cruzados, e o meu avô avançou em direcção ao tanque de braços estendidos e, com os olhos, projectava nos alemães o seu pensamento, dêem meia-volta e regressem para de onde vieram… e realmente o primeiro tanque parou, todo o exército parou, o meu avô tocou no tanque com os dedos e continuou a emitir o mesmo pensamento… dêem meia-volta e regressem para de onde vieram, dêem meia-volta… e então o tenente fez um sinal com a bandeirola e o tanque arrancou, mas o avô não se desviou e o tanque atropelou-o, arrancando-lhe a cabeça, e o exército do Reich ficou com o caminho livre.» (p.11). Não se pode dizer que tenha corrido bem. A cabeça do avô de Milos ficou entalada na lagarta do tanque alemão, como muitas cidades e muitas almas ficaram entaladas no fogo cruzado de uma guerra cruel e desvairada que nunca quiseram.
É neste terreiro demencial e até por isso profundamente humano que se desenvolve a acção de Comboios Rigorosamente Vigiados, escrito em 1965 pelo checo Bohumil Hrabal e agora publicado pela segunda vez em Portugal, pela Antígona, numa tradução directa a partir do checo assinada por Anna Almeida – a edição anterior, há 30 anos, tivera chancela da Caminho. Hrabal nasceu quatro meses antes do começo da I Grande Guerra e, quando a II chegou, teve de interromper os seus estudos de Direito em Praga, sendo destacado para trabalhar numa estação de caminhos-de-ferro em Kostomlaty, na Boémia Central. Declinou muito dessa experiência neste livro, onde convivem humor e violência e onde a existência parece pouco mais que um teatrinho sórdido.
Não será estranha a esta a associação ao teatro o facto de me ter cruzado pela primeira vez com o trabalho de Bohumil Hrabal nos palcos e não na página. Foi há dois anos, numa reposição de Uma Solidão Demasiado Ruidosa, peça que parte do livro homónimo do autor. Aí, a personagem Hanta passa décadas numa cave de Praga onde prensa toneladas de papel e, pelo meio de tanta letra patusca, vai encontrando livros preciosos que lê e reverencia – livros de Kant, Hegel, Camus, Novalis, Lao-Tsé. Se aquele era um texto formidável sobre a memória, o “progresso” industrial, a repressão, a passagem do tempo e a solidão, Comboios Rigorosamente Vigiados é um livro sobre o absurdo da guerra e a resistência mais ou menos trapalhona de uns funcionários enredados nos seus próprios problemas e desejos.
No arranque do livro, Milos regressa ao trabalho depois de estar hospitalizado (logo perceberemos porquê). Com ele vamos conhecendo «o chilrear dos telégrafos e dos telefones» (p. 18) da estação ferroviária. Dedicado e orgulhoso, Milos admira o seu uniforme de funcionário dos caminhos-de-ferro estatais e lembra que estes profissionais eram apelidados de «nobreza azul» (p.21). O aprendiz de vagões carruagens responde hierarquicamente ao senhor chefe da estação e é a ele que conta que o senhor sinaleiro Hubicka e a senhora telegrafista Zdenicka Svatá fornicaram no seu faustoso gabinete, espécie de luxuosa cápsula do tempo que passa incólume à guerra que acontece lá fora. Enojado com o que ouve, o chefe da estação declara como quem atira palavras a um poço: «Isso tudo porque as pessoas já não acreditam em nada. Nem em Deus, nem em mitos, nem em alegorias, nem em símbolos. Estamos sozinhos no mundo e por isso tudo é permitido… Mas comigo não é assim! Para mim há deus! Para aquele porco imundo é que só existe carne assada com repolho…» (p. 27)
O vicioso sinaleiro, que levantou as saias da telegrafista e estampou no seu traseiro todos os carimbos da estação, é então alvo de um processo sumário. Tudo vai ganhando contornos estapafúrdios mas bem dispostos, como se Kafka tivesse decidido começar a rir às gargalhadas. Enquanto isso, vão passando pela estação comboios de mercadorias, comboios de passageiros, comboios com animais moribundos que supostamente serviriam para alimentar os soldados na frente e, claro, comboios rigorosamente vigiados que transportam material militar, incluindo esse material humano que todos os dias se gasta na frente de qualquer batalha. Enquanto a guerra passa por ali sob carris, as pequenas vidas dos funcionários da estação vão-se desenrolando como se nada fosse. O senhor chefe da estação, columbófilo até à quinta casa, adora os seus pombinhos linces-da-polónia que pousam nele «como numa estátua no meio de uma praça» (p.57); o senhor sinaleiro Hubicka continua a ser um debochado; e o nosso narrador, Milos, sofre com o facto de permanecer virgem numa altura em que nada à sua volta parece capaz de manter esse estatuto. Exasperado com o que encontra na pequena estação, um dos conselheiros que a visita fixa os olhos num comboio que passa cheio de jovens soldados e atira: «Vai ali a nossa esperança. A nossa juventude. Vão bater-se por uma Europa livre. E o que fazem os senhores aqui? Carimbam o traseiro da telegrafista!» (p.76) Para este conselheiro, os checos são «umas bestas que gostam de galhofa» e isso, como por vezes acontece, não cai lá muito bem aos checos, que em retorno decidem fazer aquilo a que chamam «a rigorosa vigilância de um comboio militar» (p.81).
A voz narrativa vai alternando entre a cadência que faz a trama avançar e as digressões que nos levam à infância e à família de Milos, aos seus desejos e a vários episódios em que se deparou com cadáveres – de pessoas, mas também de cavalos, de corvos e de outros seres que levam por tabela quando tudo se põe a morrer. E é assim que, quando ao longe se adivinham bombardeamentos sobre Dresden, alguém diz: «Não deviam ter declarado guerra ao mundo inteiro!» (p. 107) Ou, numa versão mais apropriada encontramos adiante, «não deviam ter tirado o cu de casa» (p.128). Um formidável conselho para os tempos que correm.
Bohumil Hrabal
Comboios Rigorosamente Vigiados
Antígona
Tradução de Anna Almeida