Cultura – Crítica Literária
Hélder Beja
Henry Miller
Pesadelo em Ar Condicionado
Antígona
Trad. Fernanda Pinto Rodrigues
Nunca foi tão literário detestar o próprio país. Se houvesse uma corrida de automóveis para aferir que cidadão americano mais desprezou os Estados Unidos da América, Henry Miller seria um forte candidato à vitória a bordo do seu todo-o-terreno Pesadelo Em Ar Condicionado. E pouco importa para esta suposição que Miller nada saiba de carros e que abomine Henry Ford. As chances estão muito a seu favor.
Pesadelo Em Ar Condicionado é o livro do regresso a casa de Miller, mesmo que essa seja uma casa consumista e aburguesada da qual tentou fugir durante toda a vida. Em 1930, o escritor deixou Nova Iorque para viver em Paris e experimentar todos os excessos de uma cidade que parecia adivinhar a cercania de mais uma longa noite bélica – e que por isso vivia desmesuradamente. Aí germinou a escrita sexualizada e explícita de Miller, que chocou muitos leitores, acima de tudo nos EUA, onde os seus livros foram proibidos durante décadas (conta-se que as palavras de Miller terão viajado clandestinamente para a América com os soldados que descobriram os seus livros depois da libertação da Europa do jugo nazi, em 1944-45).
Henry Miller saiu de Paris apenas três meses antes do começo da II Guerra Mundial. Primeiro viajou pela Grécia na peugada de D.H. Lawrence, autor que admirou sempre, e dessa viagem resultou o famoso diário de viagens O Colosso do Maroussi (ed. Tinta da China). Finalmente, decide voltar aos EUA e fazer um périplo de redescoberta do país, escrever o seu livro americano, conhecer a sua terra – não para ali assentar, apenas para com ela se pacificar e poder voltar a partir paz. Não foi bem o que aconteceu.
«Ao deixar a Grécia, encontrava-me com uma disposição serena. Pensava que, se no mundo havia alguém isento de ódio, preconceito e azedume, esse alguém era eu. Estava confiante em que, pela primeira vez na minha vida, olharia para Nova Iorque e para o que ficava para lá dela sem vestígios de aversão ou asco.» O navio que o leva de volta ao continente americano, porém, pára primeiro em Boston. «Foi talvez uma infelicidade, mas constituiu um excelente teste», nota Miller, que afirma sem que nele acreditemos que «estava predisposto a gostar de Boston», cidade que nunca visitara antes. Só que, ali chegado, absolutamente tudo lhe desagrada desde a primeira hora: decepciona-se e entristece-se ao primeiro vislumbre da costa americana, «desolada e pouco convidativa»; as casas americanas parecem-lhe desde logo frias e austeras, cruéis e sinistras; era Inverno, estava frio, a estação de comboio que atravessa é lúgubre, mas o pior estava para vir: «Era domingo e a população saíra, reforçada por grupos de estudantes turbulentos. O espectáculo nauseou-me. Desejei voltar para o navio o mais depressa possível. Em cerca de uma hora vira tudo quanto queria ver de Boston. Pareceu-me horrendo.»
A expressão «pareceu-me horrendo» é um bom resumo da impressão que Henry Miller passa dos EUA ao longo de todo livro, um país onde os artistas de qualidade vivem «como ex-presidiários», na penúria; um país em que «cegos guiam cegos»; o país esteticamente mais conservador do mundo. Estas impressões apontam acima de tudo às gentes dos EUA, aos seus concidadãos.
O argumento de que Miller despreza a vida simples da população americana em favor da existência artística, intelectual e hedonista pode ser feito e há muito nesta obra para respaldá-lo. Mas importa fazer uma distinção importante entre aquilo que o autor considera uma vida simples e uma vida simplória, mecanizada, desprovida de sentido. Miller, nesta fase já mais saciado dos prazeres da carne, é um homem em descoberta interior, um homem preocupado com os assuntos da alma e que na sua América natal encontra pouco mais que nada para se saciar.
Para Miller, voltando ao argumento anterior, «a terra é um paraíso, o único que jamais conheceremos (…). Não precisamos de a transformar num paraíso – ela é um paraíso.» É esta visão despojada da existência que faz com não se identifique com o fascínio que um amigo húngaro exilado em Nova Iorque sente ao olhar o rio Hudson e o casario denso da janela do seu apartamento; ou quando avista Detroit: «A capital do novo planeta – quero dizer, o que se auto-aniquilará – é, evidentemente, Detroit». Henry Ford e a sua indústria representam tudo o que Miller rejeita, porque «não crescem almas nas fábricas». «Nas fábricas matam-se almas – até as almas mesquinhas. Detroit pode fazer ao Branco numa semana o que o Sul não conseguiu fazer ao Negro em cem anos.» E isso, adivinhamos, é expurgá-lo da sua humanidade.
Para Miller, o chamado progresso matou a alma americana. Isso é bem patente quando assume a sua desilusão: «Tive o infortúnio de ser alimentado pelos sonhos e visões dos grandes americanos – os poetas e os videntes. Uma outra raça de homens venceu. Este mundo que está em formação enche-me de terror. Vi-o germinar, sou capaz de lê-lo como a um blueprint. Não é um mundo em que queira viver.» As suas considerações sobre o progresso poderiam ter sido escritas há meses em vez de nos anos 1940.
Miller queixa-se de que teve de viajar mais de 15 mil quilómetros até ter inspiração para escrever uma única linha. «Aqui o aborrecimento atinge o máximo.» A viagem pela terra americana é desapontante ao ponto Miller referir, quando a termina, que o melhor que dela guarda é a leitura da biografia do importante líder religioso hindu Sri Ramakrishna Paramahamsa (1836-1886), escrita por Romain Rolland. Na breve lista de pessoas que considera dignas de nota, inscreve a mulher de um poeta negro, um mestre hindu que encontrou em Hollywood, única «grande alma» com que se cruzou; um desconhecido professor de filosofia judaico; um pintor que escreve melhor que todos os autores do seu tempo; e os homens das estações de serviço do Far West, os únicos «da classe trabalhadora» a merecerem menção. O grupo mais maçador em todas as comunidades que visitou, assegura, são os professores universitários e respectivas esposas.
Os capítulos sucedem-se e dedicam-se a diferentes lugares da grande mancha continental americana. Em cada paragem, Miller viaja também por pessoas que considera ilustrativas dos raios de luz que ainda iluminam a terra ou da escuridão suprema que sobre ela se abate a grande velocidade (como Walt Disney, que Miller despreza). Miller castiga a sua pátria, aponta-lhe os problemas sem estar preocupado em alvitrar soluções, chega a ser moralista e cruel, faz em suma o equivalente àquilo a que a que Robert Hughes chamou, na New York Review of Books, «os sermões contra o plástico e o cancro» de Norman Mailer. O único lugar que se salva é talvez o Sul, esse Sul sobre o qual Miller prefere não se alongar no livro mas ao qual dedica o último capítulo. Para o autor, «o sulista tem um ritmo diferente, uma atitude diferente para com a vida». A derrota do Sul perante o Norte foi apenas militar e mantém-se vivo «um combate sem esperança, muito semelhante ao dos irlandeses contra Inglaterra». Escreve Miller: «Este mundo do Sul corresponde mais aproximadamente à vida de sonho que o poeta imagina do que quaisquer outras regiões do país. Pouco a pouco, este mundo de sonho está a ser infiltrado e envenenado pelo espírito do Norte.» É assim que um premonitório Henry Miller traça o fim de tudo, até deste derradeiro território de tabaco e esperança, onde «as cinzas ainda estão mornas».