Edição do dia

Quinta-feira, 23 de Março, 2023
Cidade do Santo Nome de Deus de Macau
nuvens dispersas
24.9 ° C
28.3 °
24.9 °
83 %
6.2kmh
40 %
Qui
25 °
Sex
24 °
Sáb
21 °
Dom
20 °
Seg
20 °

Suplementos

PUB
PUB
Mais
    More
      Início Categorias do Parágrafo Conto EM MACAU, BÊBADO DE VINHO TINTO

      EM MACAU, BÊBADO DE VINHO TINTO

       

      Wang Gang |王剛

      Não é que Macau estivesse bêbado – eu é que estive bêbado todos os dias em Macau. Não de bebidas destiladas, mas de vinho tinto. As bebidas destiladas são fortes, e aqueles que as consomem conhecem o seu perfume; mas para os outros, especialmente para as mulheres, cheiram mal – sobretudo para as mulheres sofisticadas, as mais refinadas das quais consideram o seu odor uma absoluta ofensa.

      Contudo, os homens das classes baixas gostam de bebidas fortes – não lhes parece que cheirem mal. Pelo contrário, gostam do seu perfume, o que mais uma vez denuncia os vários defeitos dos homens, que vêm de um país diferente do das mulheres, e constituem em absoluto uma outra espécie. Com o vinho tinto não é assim. Os homens gostam de vinho tinto, as mulheres também. Homens e mulheres podem ser provenientes de países distintos, mas encontram-se nas vinhas de Bordéus, unindo-se e rendendo-se ao prazer, até que se transformam em animais idênticos. O que é o vinho tinto? Cultura. Elegância. Bom gosto. O ambiente rarefeito das elites. Falar sobre vinho tinto, ou conversar na sua presença, é um acto imensamente refinado. Como é que o vinho tinto nos deixa bêbados? Será que tudo se modifica quando chega até mim, um chinês? Todas as coisas boas se transformam quando chegam aos chineses: o bom transforma-se em mau, o mau torna-se péssimo… Ao longo destes últimos anos habituei-me a falar desta maneira, e até a dizê-lo pomposamente. Acabei por falar assim até à velhice, até à exaustão, e agora não falo mais.Como é que o vinho tinto nos deixa bêbados? Basta bebermos bastante!

      Há pouco tempo, andei a comparar o vinho tinto com o licor de sorgo, de Pequim. Segundo o teor alcoólico de ambos, uma garrafa de vinho tinto equivale a mais de dois liang de licor de sorgo.

      Portanto, beber todos os dias uma garrafa de vinho tinto mal se pode considerar embriaguez: é apenas prazer. Sentado no bar do Hotel MGM, erguendo um copo de pé alto, emborcando vinho tinto, olhando para o espelho, contemplando o mar, ainda de pijama, queijo por perto, a banheira cheia de água, o coração insuflado de prazer, o meu corpo em Macau e os meus pensamentos com o meu país, passo água quente pelo corpo, o vinho tinto e o queijo ali ao lado, as minhas faces vermelhas por causa do calor e do vinho, a minha cabeça em sobreaquecimento, os meus olhos enevoando-se, já não consigo ver Macau distintamente pela janela, o céu escurece pouco a pouco, e nesse momento sei que chegou a boa sorte, a garrafa de vinho tinto chegou ao fim – avancemos para uma segunda garrafa, ainda de pijama, queijo por perto, o vapor da banheira perfumado com lavanda da Provença, o mar, o luar e o ar límpido lá fora, vistos da janela, a felicidade em ritmo ascendente. Tomo consciência do meu estado ébrio, mas quero continuar a beber, e não há ninguém que me impeça. Sim, quero beber, terminar duas garrafas de vinho, todo aquele merlot, cabernet sauvignon, syrah e grenache dançando diante dos meus olhos, tão recompensador, hora de dormir…

      A questão não é o vinho, é o dinheiro. O vinho tinto vale imenso a pena em Macau, é tão barato, os homens e as mulheres macaenses têm tanta sorte, que importa o resto, concentremo-nos no vinho tinto, como é que eles conseguem ter vinho tão bom e tão barato? Sabem quão mais elevados são os preços do vinho em Pequim, se comparados com a América ou com França? Seis vezes! Ou seja, se uma garrafa de vinho tinto custar 100 yuan nos Estados Unidos, em Pequim custa 600. Uma garrafa de 200 yuan em França vale 1200 em Pequim. No ano passado, o meu passatempo favorito era navegar em sítios da internet dedicados a vinho tinto estrangeiro, para comparar os preços de Pequim com os preços de França e dos Estados Unidos. Uma tristeza. Quando chegam aos chineses, todas as coisas boas se desfiguram, o bom torna-se mau, o mau torna-se péssimo. Nunca me ocorreu estabelecer a comparação com Macau. Só quando cá cheguei é que percebi como o vinho aqui é barato, tão barato quanto na América ou em França – com 200 ou 300 patacas compra-se uma garrafa de vinho tinto que custaria 1000 yuan em Pequim. Não é vinho tinto o que eu estou a beber em Macau, é dinheiro. E se quero beber mais uma garrafa de tinto em Macau, tenho de ganhar mais dinheiro, mais um bolo de direitos de autor. Obrigado à Rota das Letras, que me permite ganhar dinheiro para beber todos os dias, direitos de autor para beber vinho tinto, quem quer que tenha ouvido falar de coisa tão maravilhosa, de entre o mundo inteiro apenas poderia acontecer em Macau, porque em Macau existe um festival literário.

       

      II

       

      Caminhando para noroeste a partir do Hotel MGM, onde estou hospedado, rapidamente alcanço a Rua de Londres. Nesta rua fica a Jointek Wines. Agrada-me atravessar as ruas de Macau. São silenciosas; é possível inspirar grandes golfadas de ar. Ladeado pelo mar, um céu azul sobre a minha cabeça, a estrada sob os meus pés sem vestígios de lixo, vou ao encontro de um casal macaense no Clube Militar. O rapaz ostenta uma expressão de desassossego, está preocupado com o futuro da sua terra. A rapariga tem olhos vivos, afirma não sentir qualquer ansiedade relativamente ao futuro de Macau. Pergunto-lhes como lhes parece Macau no momento presente, respondem que está tudo bem, que trabalham e ganham dinheiro, mas que há alguma desordem. Desordem, aqui? Haviam de ver como as coisas são nas cidades do Continente.

      De volta à Rua de Londres, o patrão da Jointek Wines sorri quando me vê; este continental parece nada mais ter que fazer durante todo o dia a não ser beber vinho tinto. Muitos dos seus amigos são também adeptos de vinho tinto: um médico especialista em intervenções estéticas para senhoras, e que bebe vinho tinto apenas aos fins-de-semana; um escritor do Continente que bebe todos os dias, e que, por beber tanto, vem aqui comprar vinho diariamente, três ou quatro garrafas de uma vez só, como se o vinho em Macau fosse gratuito. E como se não houvesse vinho para beber em Pequim.

      Foi o poeta Yao Feng quem me convidou para a Rota das Letras. Na noite que precedeu a minha partida, antes de me embebedar, Yao Feng pediu-me que escrevesse qualquer coisa no seu bloco de notas: «Pequim é a cidade onde tu nasceste – eu vivo lá; Macau é a minha terra dos sonhos de vinho tinto – tu vives cá.»

       

      Texto publicado no livro de contos e outros escritos Dois Dará (praiaGrande Edições, 2014)

       

      Traduzido do inglês por Madalena Alfaia

      Ponto Finalhttps://pontofinal-macau.com
      Redacção do Ponto Final Macau