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      Início Entrevista “A arte não tem 'direitos de autor' sobre o significado”  

      “A arte não tem ‘direitos de autor’ sobre o significado”  

      Quando contemplamos as telas de Konstantin Bessmertny, a princípio, é como se estivéssemos a abrir livros de pintura clássica e de história de arte. À primeira vista, Bosch ou Bruegel, pela perspectiva, e pela estética geral. Depois, uma camada mais onírica e psicadélica remete-nos para Salvador Dali. E por fim, entra a contemporaneidade e referências a Macau, e tudo descamba: letras rabiscadas em estilo Basquiat brincam com o latim e o português mal escrito e criam uma nova linguagem, figuras nuas em saltos de alto põem um pé na roleta, fidalgos andam a cavalo pelo Circuito da Guia, e santos abençoam uma torre babel dos casinos. É um caleidoscópio vertiginoso com um sentido de humor maroto que surpreende por contrapor o clássico e o contemporâneo e o oriente e ocidente de formas tão inesperadas. Mas estas visões de outro mundo, afinal, são apenas deste, já que, como defende o artista, a sua obra é apenas um espelho, e a realidade já é assim mesmo, bem surreal e anedóctica.

       

      Com o seu estilo humorístico inconfundível e mestria técnica irreparável, o pintor Konstantin Bessmertny dispensa apresentações. Nascido na antiga União Soviética e a residir no território desde 1992, há muito que o seu trabalho é admirado em exposições a solo e colectivas em Macau, Hong Kong, e por todo o mundo. Foi por telefone que falámos com o artista russo, que se deslocou a Lisboa para acompanhar a exposição “Grande e Pequeno” na Galeria Monumental até ao fim de Outubro, onde se dedica a uma das suas predileções: a de fazer arte, desconstruindo-a, mudando-lhe a perspectiva, contexto e valor. Partindo da premissa de que o tamanho não importa, Konstantin Bessmertny na conversa com o PONTO FINAL foi mais longe, acabando por argumentar que também não importa quem compra as suas peças, nem qual é a posição política ou mensagem inicial das suas obras, já que “as pinturas têm a sua própria vida”, e “a arte não tem ‘direitos de autor’ sobre o significado”, e cada um é livre de interpretar as suas obras como lhe convier.

       

      Como está a correr a exposição em Lisboa “Grande e Pequeno” na Galeria Monumental?

      Muito bem, com muitas visitas. No ano passado estive cá, mas com uma exposição experimental, de apenas cinco dias, mas muitas pessoas se queixaram, e eu prometi-lhes que faria uma nova exposição neste ano durante um mês. Todos os que não puderam ver o meu trabalho no ano passado vieram e continuam a visitar. A exposição vai estar aberta até 21 de Outubro, e estiveram bastantes pessoas no dia da abertura, e depois.

       

      Quantas peças estão expostas?

      São muitas, 47, mas incluindo duas casas de bonecas, e outras peças muito pequenas, umas, imagine, têm um raio de 1 centímetro. O catálogo de preços com a lista de trabalhos também é muito pequeno, por isso tem de ter uma lupa para poder ver. É infantil, mas é uma espécie de paródia sobre a escala. De certa forma, estou a brincar de uma maneira algo académica com o conceito de arte, e das instituições da arte. Uma ideia pode ser maior do que o tamanho da obra, e inversamente, um trabalho que é gigante, pode ter uma ideia pequena. O tamanho não interessa. A maior parte da arte de má qualidade esconde-se em peças de grandes proporções. Quando estou a ensinar, em palestras, costumo dizer que para avaliar arte, não podemos olhar para o tamanho da tela ou trabalho. Tente imaginar essa peça em versão miniatura em frente de si numa mesa. Imagine-a muito pequena. Aí apercebemo-nos que, na verdade, a peça é uma coisinha pequenina feita de metal polido. Uma coisa que podemos colocar num fio ou numa pulseira e se transforma num adereço, num pêndulo. Portanto muitas vezes, na arte, o tamanho não interessa e, aliás, de certa forma confunde as pessoas. Quando chegam a Chicago e vêm este tipo de estruturas de aço polido ficam boquiabertas, mas isto não é arte. É decoração, pelo tamanho que tem, e que apenas se pode compreender verdadeiramente se a escala for reduzida.

       

      E apreciou esse processo, de criar peças de tamanho tão reduzido?

      Não é a primeira vez que exponho e desenvolvo este trabalho, já o fiz em Londres há cerca de sete anos, onde expus uma espécie de casas de bonecas com peças lá dentro, e também levei este tipo de exposição a Hong Kong. Não é nada de novo, eu gosto deste jogo entre o gigante e o pequeno. Mas na exposição em Lisboa também tenho peças grandes, de dois metros. Também levei uma peça que está relacionada com a transferência de Macau à China, “Great Surrender”, numa referência à obra de Velasquez, que tive exposta no Clube Militar numa mostra de celebração da transferência. Gosto de pintar quadros com ideias que estão escondidas, e onde é preciso passar tempo e descobrir, ver pontos paralelos, e entrar no labirinto de mensagens. Na altura, essa pintura não foi assim muito bem compreendida em Macau, e achei que em Portugal ela encaixaria melhor, por isso decidi trazê-la. A maior parte destas obras foram pintadas durante a Covid, é algo que as une.

       

      Na exposição da Bienal de Macau havia uma pintura, a “Grobia in Grobia”, em que havia referência a máscaras e distanciamento social, essa também foi desse período? A pandemia foi algo que o inspirou?

      Gosto de reflectir sobre aquilo que me rodeia. Não estou a documentar, mas, de certa forma, estou a processar aquilo que se está a passar. Estou a ir um pouco mais além do que as notícias do dia. Não era sobre as máscaras, era sobre a forma como as pessoas reagem quando há grandes mudanças, tragédias ou tempos felizes. “Grobianus, Et Grobiana” é um famoso livro do séc. XVI a que muitos, incluindo Bruegel, Bosch, se referem, e usaram com base para as suas ilustrações. Não sei bem como, mas acabou por cair no esquecimento. Ninguém sabe quem é o personagem Grobianus, nem o que é a Grobiana. É uma espécie de país onde o Santus Grobianus vivia. É uma personagem fictícia, um santo que era santo padroeiro dos cobardes, preguiçosos e bêbados. Uma espécie de anti-santo. Imagine esta obra no séc. XVI na Europa.

       

      Queria também perguntar-lhe sobre outro trabalho seu que está no Museu de Arte  de Macau, de pessoas a praticar Yoga [“Natarajasana saves the world”].

      Foi uma forma de resistência pacífica aos dramas da vida quotidiana. Como pôde ver na pintura, há uma espécie de máquinas de rabos a cobrirem o chão com fezes, e também aviões que estão a deitar fezes pelo ar. É uma referência à Covid, mas também à poluição do planeta, e a como nós estamos a destruir o mundo. Este tipo de resistência pacífica, das pessoas a praticarem yoga em frente destas máquinas, é ridícula, mas eu achei que era uma forma de ser positivo face a algo negativo. Claro que a pintura é anedóctica. Foi pintada na pior altura da Covid, quando toda a gente estava em pânico, e eu senti o dever de animar as pessoas. Pelo menos quem vinha ao meu estúdio, e podia ver as obras, sorria, e a disposição delas melhorava. Senti que devia fazer algo mais positivo do que habitualmente faço. A situação assim o exigia, e assim o criei e penso que serviu o propósito. Mas agora a obra já vive para além desse contexto, e tem outras mensagens. A arte não tem ‘direitos de autor’ sobre o significado. Cada espectador tem direito de encontrar a sua interpretação. Por isso, neste caso, acho que a pintura tem mais significados do que aquele que eu tentei expressar no princípio. Há quem diga, por exemplo, que pode ser uma metáfora da invasão à Ucrânia. As pinturas vivem a sua própria vida, e as pessoas adicionam o seu próprio significado às imagens e narrativas.

       

      A sua obra parece por vezes criticar as elites, a indústria do jogo, os casinos, e toda a alta sociedade de Macau. Nas suas pinturas explora muito estes temas, mas depois é um artista que é sustentado por este rendimento que habitualmente advém da elite. Como vive e processa esta questão?

      Em primeiro lugar eu não sou um rebelde, eu não critico. Eu sou um reflexo, sou um espelho. Um artista é um espelho. E não tem de marcar nenhuma posição política. Acho, aliás, que os artistas não o deviam fazer. Toda a gente sabe que normalmente são as instituições que pagam pela arte. Mas está a ver, todas as pessoas, seja de que camada social forem, tentam ver as coisas de forma a que estas apoiem as suas próprias ideias. Por exemplo, acabou de ver esta situação deste ângulo, mas, por exemplo, um coleccionador verá a situação por outro. A propósito, a exposição em Portugal, também tinha outro significado. Não era apenas “grande e pequeno”, era também “caro e barato”. A arte pode existir na casa de qualquer pessoa. Um carpinteiro na sua oficina pode comprar um desenho, uma cópia de uma pintura de Salvador Dali, de Paula Rego. No topo estão cinco oligarcas a comprar arte? Não. Na verdade, até eles não compram. Na maioria dos casos as pessoas que compram a minha arte compreendem aquilo que eu estou a fazer, têm o mesmo tipo de QI, de afinidades e gostos. Eu não pinto para uma categoria específica de pessoas. Toda a gente usa uma espécie de ferramentas para obter um determinado estatuto social. E na maioria dos casos é decepcionante. Por exemplo, há seis séculos, a maioria das riquezas na Inglaterra foram obtidas através do contrabando de drogas, com o ópio. Agora, gerações mais tarde, as pessoas tentam aparentar que são cultas, e investem em arte. Não sou apologista de igualdade social de todo, porque ela mata a arte. No socialismo, a arte não existe. Aconteceu na União Soviética, em que todos os artistas eram contra a burguesia, etc, e lutaram contra os ricos em que se incluíam grandes coleccionadores como Shchukin, que foi quem deu projecção a nomes como Matisse, Picasso e por aí a fora, porque foi o primeiro a comprar e a descobri-los. A colecção pode ser vista em São Petersburgo e Moscovo. Mas quando a revolução aconteceu, todos estes artistas vanguardistas aperceberam-se que já não havia pessoas para comprar as pinturas, para comprar as fotografias, patrocinar filmes, etc. Portanto não tiveram outra escolha senão trabalhar para o Estado. Havia apenas um cliente, o Estado. É deprimente.  Agora em Portugal, por exemplo, está a acontecer um pouco o mesmo. Há uma divisão entre a classe mais alta, de bancos, advogados riquíssimos, que coleccionam, mas fazem-no para obter um certo estatuto. Vão a casas de leilões e outras lojas de luxo, às quais eu não vou, para comprar Murakami, ou o que seja. Nem a Paula Rego é exibida nesses locais, são muito poucos artistas, apenas dez. Esses artistas não mordem na mão que lhes dá a comer. Não sei que mão é que mordo, eu. Na verdade, pinto para mim próprio. Se alguém gosta, óptimo. Se alguém quer até pagar pelas minhas pinturas, melhor, porque assim consigo comprar mais telas, pagar a minha renda, e isso. Não pinto para ninguém em particular, nem para afirmar nenhum estatuto, nem para expressar nenhuma visão específica do mundo.

       

      Como vê a situação actual em Macau, em que tem havido tanto investimento no mundo artístico?

      Estou satisfeitíssimo. Quando cheguei em Macau em 1992/1993, claro que comparei Hong Kong com Macau. Hong Kong, na altura, era um deserto cultural. Em Macau, governadores e secretários adjuntos vinham às exposições – não só às minhas, a todas em geral – e advogados compravam telas para decorar os seus escritórios, queriam arte de qualidade, e não umas cópias baratas compradas em Zhuhai. Na altura era um mercado, e foi uma grande surpresa, com uma cidade enorme ao lado. Mas agora, para ser franco, Hong Kong também não anda assim tão bem. Claro que não me estou a referir aos grandes museus como o M+. Isso é mais “entretenimento de arte”, em que as pessoas vão visitar exposições enormes e compram bilhetes, e o Governo pode mostrar que apoia a cultura. Mas a arte em si, fica, é feita para ficar. Fica numa parede, em colecções privadas, em museus, fundações, em casas. Se não, ela desaparece. É a questão da pegada cultural. Macau tem agora um enorme potencial para ter uma pegada cultural, e construir museus com colecções e assim. Imaginemos daqui a meio século, como será Macau. Já perdeu algumas oportunidades, mas agora, finalmente, Macau já se apercebeu da importância da questão. Quando nos apercebemos que somos um dos locais com mais riqueza por capita, com a quantidade de dinheiro que passa por aqui, Macau tem de se ser cultural. As pessoas e os sistemas perderam a confiança, e dizem que Macau é uma máquina de lavar. Não é, Macau é um sítio bonito, com uma arquitectura interessante, contexto histórico, e uma mistura de culturas, e que também tem imensa arte contemporânea. E eu sinto-me muito satisfeito de isto estar a acontecer. Melhor tarde do que nunca, é certo, mas está finalmente a acontecer. Vejo como o Governo está a apoiar a arte, e muita coisa está a acontecer, claro que com o apoio também dos casinos, mas está a acontecer. Não é buscando artistas dos Estados Unidos e assim; a maioria dos artistas são locais, que trabalham por comissão, com o apoio dos casinos, e é bom.

       

      Sente que os artistas em Macau estão a melhorar? Porque em tempos disse que achava o nível cá em Macau um pouco medíocre. 

      Isso foi há algumas décadas. O problema das pequenas cidades é sempre o tamanho. Neste caso, o tamanho importa (risos). É preciso haver competitividade; a concorrência é sempre a solução para se ter qualidade. Por exemplo, quando me dizem que sou um artista muito famoso em Macau… eu não sou um artista famoso de Macau, sou um artista famoso da vila de Coloane. Está a ver? Quando mudamos a escala, as coisas tornam-se ridículas. Quantos competidores temos, com quem é que nos estamos a comparar, e assim. É sempre melhor para os artistas saírem, e verem como funcionam lá fora. Macau, de muitas formas, é uma zona de conforto. Muitos artistas de cá têm uma rede de ligações, de apoios, e formas de terem sustento, mas depois não têm qualidade. Por isso vemos agora cada vez mais artistas de Macau a exporem lá fora e a competir com os seus pares, e estou satisfeito de ver este progresso. Estas iniciativas não são apenas individuais, são feitas com a ajuda do Governo, do Instituto Cultural, de museus, que tentam promover os artistas lá fora, para competir, e os resultados são óbvios.

       

      Tem algum projecto novo que está a desenvolver que nos possa revelar?

      Não gosto de falar de coisas que ainda não aconteceram, mas estou a planear expor em Hong Kong, e em Portugal também vou tentar começar a fazer mais coisas. Ficámos cá sempre durante a epidemia, e agora quero começar a expor mais lá fora. Vou continuar a fazê-lo por cá também, claro, mas Macau é pequeno demais para se expor com demasiada frequência. Este ano já o fiz, portanto para o ano não vai acontecer. Mas Hong Kong vai certamente acontecer. Vamos ver. O mundo está a mudar. A presença física está a tornar-se irrelevante. Andamos a experimentar com formas diferentes de expor. Por exemplo, as minhas casas de bonecas. Para quê um museu enorme quando podemos fazer uma exposição numa casa de bonecas? E também a localização se está a tornar irrelevante. Já fizemos uma exposição virtual.

       

      Sim, essa foi sem dúvida uma das grandes mudanças que a pandemia trouxe no mundo da arte, houve tantas exposições virtuais a serem criadas.

      Sim, é isso, por isso a percepção das pessoas está a mudar, e os artistas também estão a ganhar mais poder. Penso que vai haver cada vez mais exposições ‘pop up’ no futuro. Porque não é preciso uma galeria. Por vezes sim, claro, galerias, como esta, a Monumental em Lisboa, sim, são necessárias. É preciso exposições de um mês para que haja algum enraizamento, para estarmos no planeta Terra, mas por outra via, há agora os ‘pop up shows’, de dois dias e assim, que são documentados virtualmente, e ficam lá no online, a serem promovidos. Por isso, o tempo também se tornou irrelevante. Pode-se estar a fazer uma exposição agora, mas lançá-la apenas um ano depois. A presença online é cada vez mais importante. Não digo que o Instagram e assim, que estão cheios de lixo e não são fáceis de consultar, sejam ideias, mas interessa-me esta nova oportunidade de ter projecção online. Vejo mais mudanças nesse sentido. Não que me esteja a preparar, mas estou a tentar fazer mais deste tipo de coisas. E também as comissões. É um desafio. A maior parte da história de arte são peças por comissão. Desde os tempos pré-históricos até aos tempos mais recentes, em que galerias e museus começaram a ter um papel, algo que só aconteceu apenas há meio século, era apenas as comissões privadas. Alguém precisava de uma pintura para hotéis, espaços públicos, escritórios de advogados, e pedia. Penso que se vai também ir cada vez mais nessa direcção, das peças ‘site specific’.