No segundo dia do Rota das Letras – Festival Literário de Macau, os professores de literatura da Universidade de Macau, Nick Groom e William Hughes, sumidades mundiais em matéria de terror e sobrenatural, captaram a atenção de uma sala cheia para falarem sobre como a literatura de terror pode ajudar-nos a entender a pandemia do novo coronavírus.
Os dois autores editaram “CoronaGothic: Cultures of the Pandemic”, uma colectânea de textos académicos de diversos autores com chancela da Critical Quartely, incluindo os próprios, que nada mais são do que o resultado da discussão de um simpósio organizado pela Universidade de Macau, em 2020, sobre a temática. “O coronavírus em curso é, sem dúvida, um fenómeno médico que parece destinado a ser expresso de forma mais eficaz através de imagens e consequências góticas. Um artigo recente no Fortean Times – um periódico impregnado com as complexidades e contradições do género – observa, por exemplo, como uma comunidade no sudeste da Ásia procurou proteger os seus cidadãos do contágio epidémico através de uma mitologia geograficamente específica. Isso tem implicações góticas tanto para os leitores da publicação quanto para uma localidade geográfica, cujas lendas foram progressivamente comprometidas pela implantação de motivos de terror ocidentais na cultura popular”, pode ler-se na introdução da colectânea assinada, precisamente, por Nick Groom e William Hughes.
No Rota das Letras, os académicos começaram por introduzir a obra de Daniel Defoe, criador de Robinson Crusoe, mas igualmente autor do livro “Diário do Ano da Peste” que aborda, quase ao detalhe, o que se passou em Inglaterra e, em especial, em Londres durante a Grande Peste que foi a última epidemia de peste bubónica na Inglaterra, em 1965 e 1966, e que terá vitimado cerca de 100 mil pessoas, o que representava, à época, um quinto da população da capital do Império Britânico.
O livro, publicado pela primeira vez em Março de 1722 não pode ser considerado uma leitura reconfortante, e ainda menos nestes tempos de pandemia global, mas ajuda a compreender muitos fenómenos que vivemos actualmente, 300 anos depois. O relato arrepiante e gráfico, mas sempre compassivo, de Defoe é considerado pelos especialistas da sua obra “também um conto de advertência, com exortações frequentes às gerações futuras, instando-as a evitar os erros”.
Na altura, a doença, causada pela bactéria Yersinia pestis, geralmente transmitida via roedores, em especial ratos, propagou-se em menor escala do que a anterior Peste Negra que atingiu a Europa entre 1347 e 1353.
Mas as analogias com a pandemia actual de Covid-19 não se esgotam com a obra do irlandês Defoe. Cem anos depois, o The European Magazine criou a figura dos vampiros. Numa outra epidemia, a ameaça sobrenatural, a alusão a monstros, cobras, dragões ou diabos para explicar doenças que surgem de modo inexplicável, “porque não havia microscópios na altura para aferir qualquer patogénico” como há hoje. “Um veneno subtil preenchido, como a arte óptica mostrou, com formas monstruosas temerosas quase até a terra desconhecida. Em queda, e uma só, a Peste derramará através dele, e dentro de pouco tempo Fitz-Marck não existirá mais… Vampiros… Alimentar-se de sangue até que o tempo chegue, engolido na imortalidade”, escrevia a The European Magazine, em Março de 1822.
QUEM É O DEMÓNIO? QUEM É A PESSOA QUE ESPALHA A PRAGA?
William Hughes aborda a temática da respiração para termos uma noção daquilo com que estamos a lidar neste momento, mas não fica por aí e explica o que se passava igualmente no século XIX. “A respiração é uma das coisas mais fantásticas que fazemos, porque fazemos sem notar. Agora estamos afastados, com máscara. Quem é o demónio? Quem é a pessoa que espalha a praga? Porque as pessoas não estão marcadas. A única maneira de saber se as pessoas estavam infectadas era vê-las nuas e isso, naquela altura era quase impossível, uma situação culturalmente inaceitável. Até médicos, por vezes, estavam privados de verem as pessoas nuas. Certas palavras fazem a diferença. São quase fatais. Se dissermos praga as pessoas simplesmente afastam-se. Se alguém tossir, as pessoas assustam-se. Vemos isso agora mesmo com a pandemia de Covid-19. Se alguém tossir no autocarro, as pessoas retraem-se”, disse.
Por outro lado, Nick Groom traz a lume a “Dissertatio de Vampiris Serviensibus”, um documento redigido em 1733 por Johann Heinrich Zopf, que era um estudante de teologia em Leipzig, e é um dos primeiros livros sobre vampiros. O seu livro nada mais era do que uma dissertação académica séria sobre um pânico vampírico que ocorreu em Belgrado, na Sérvia. “Depois dele, muito se tem escrito e especulado sobre vampiros, mas, na verdade, nunca alguém viu tal criatura”, referiu Groom, que acrescentou que o fenómeno do vampirismo começou, muito a partir daí, “a ser usado como justificação para inexplicáveis surtos de doenças, mas muitos dos sintomas que eram abordados no século XVIII são iguais e sugestivos de outras doenças”. “O medo que de coisas que não se conseguem explicar. Não têm capacidade de lidar com isso para lá do sobrenatural”, atirou ainda.
Já Hughes insere na discussão, nada mais nada menos, do que o tema da histeria e faz a analogia aos sintomas sentidos por um manancial de enfermidades. “Histeria. É um estado que se propaga, não sendo uma doença, mas com sintomas que são iguais ao de diversas doenças, incluindo a Covid-19 ou a gripe, por exemplo”.
Por tudo o que até aqui havia sido dito nas intervenções, à vez, dos dois professores da Universidade de Macau, Nick Groom atirou com um “é a ‘gotificação’ da pandemia” e recorreu a uma apresentação em powerpoint para se explicar“.
Nas primeiras notícias acerca da pandemia, em 2020, no Reino Unidos, o Daily Mail escreveu: ‘From bat to snake to Humans – the coronavirus is a real-life sci-fi nightmare’. Estamos aqui a ver ficção científica juntamente com o gótico em pleno século XIX. A saúde, o social e a política cozinhados juntos”, afirmou, acrescentando ainda outro exemplo, publicado no The New York Times, em que teorias da conspiração com analogias a vampirismo surgem quando alguém passa a mensagem de que se uma pessoa tomar a vacina contra a Covid-19 torna-se vampiro. “É o que alguns acreditam nos Estados Unidos da América”, notou Groom.
OS VAMPIROS ESTÃO EM TODO LADO
Essa é a convicação de William Hughes, que a explica em seguida. “O vampiro está em todo o lado. Há actos de vampirismo em todo o lado, daqueles que te tiram o dinheiro da conta, daqueles que te fazem perder tempo em frente a uma televisão ou a um telemóvel, e por aí fora. A linguagem está a mudar. A palavra vírus apenas era usada em matéria de saúde, hoje usa-se muito no âmbito da electrónica. O símbolo @ era usado em contabilidade, hoje anda espalhado por toda a Internet. Todos os ficheiros que terminam em.exe são uma porta aberta para a nossa vida. É como se abríssemos a porta a um vampiro e deixássemos entrar. Tenham muito cuidado”, referiu, ao jeito de filme de terror.
Nick Groom assina por baixo e acrescenta que “a par disto tudo, todos nós estamos a ser bombardeados, não só com verdades, mas também com fake-news”. E porque é que os vampiros continuam tão presentes no mundo actual? Porque têm uma lógica biológica enquanto entidade. Eles continuam a atrair atenção, defendem ambos os autores. “Os vampiros podem circular por todo o lado livremente, porque ninguém acredita na sua existência, da mesma forma que não se consegue notar alguém que circula na sociedade doente, ainda mais se for assintomático”, enfatizou Hughes.
Apesar da prolífica literatura sobre a representação de elementos e motivos góticos, ainda não foram elaboradas reflexões sobre os motivos góticos na reprodução do discurso da Covid-19, defendem diversos autores.
William Hughes é professor de literatura inglesa na Universidade de Macau. Foi educado na Liverpool Collegiate School e na University of East Anglia, e também possui um PGCE da Christ Church, Canterbury. Ao longo dos anos apresentou programas de rádio para o BBC World Service e BBC Radio 4, e também apareceu na televisão ao vivo através do Living TV’s Most Haunted Live!, mais recentemente durante a transmissão de 2009 de St George’s Hall, Liverpool. Em 2015, foi eleito Fellow da Royal Historical Society e, em 2019, Fellow da Society of Antiquaries of Scotland. Antes de aceitar o convite da Universidade de Macau foi, durante 26 anos, membro do corpo docente de inglês da Bath Spa University, em Inglaterra, onde leccionou e investigou nas áreas da literatura gótica e das humanidades médicas. É um especialista na literatura de Bram Stoker, criador de Drácula.
Nick Groom é, também, professor de literatura inglesa na Universidade de Macau, autor de temas que vão desde a história da Union Jack, a Thomas Chatterton. Editou vários livros e aparece regularmente em televisão, rádio e festivais literários como uma autoridade em literatura inglesa, costumes sazonais, J. R. R. Tolkien, identidades ‘góticas’ e ‘britânicas’ e ‘inglesas’. Devido ao seu extenso trabalho sobre o gótico, especialmente sobre a história dos vampiros, ficou conhecido como o ‘Prof do Gótico’ na comunicação social e escreveu vários artigos sobre a cena gótica, incluindo ensaios sobre o cantor australiano Nick Cave. Entre os seus livros mais famosos estão “The Gothic: A Very Short Introduction” (2012), “The Vampire: A New History” (2018) ou “Twenty-First Century Tolkien: What Middle-earth Means to Us Today” (2022).