Todos nós já fomos confrontados com a neutralização da oposição entre a oclusiva bilabial e a fricativa labiodental sonoras. Aquilo que se esconde por trás destes palavrões engravatados não é o nome do próximo vírus pandémico, mas sim da comuníssima troca dos v’s pelos b’s, a qual é, muitas vezes, usada em situações de humor, ainda que, para algumas pessoas, isso possa trazer alguma irritação. Não há quem não conheça esta idiossincrasia do português de certas regiões, mas poucos, incluindo os que trocam os v’s pelos b’s, sabem a origem desse fenómeno linguístico.
Em português o uso do b em vez do v é um fenómeno regional ou dialectal, normalmente considerado como uma mera questão de pronúncia; para muitos, de pronúncia incorrecta da língua. Já em espanhol, essa neutralização da distinção entre estes dois sons é absoluta, de forma que o som, que em português é representado pela letra v, não existe em espanhol-castelhano. É necessário fazer aqui a especificação em relação ao espanhol-castelhano porque, em certas partes da Andaluzia e em algumas variedades de espanhol das Américas, esse som sim existe, como também existe em certos dialectos do catalão, sobretudo insular e, também, em variedades do valenciano.
Para tentarmos entender porque é que o v se substitui pelo b em certas regiões do território nacional é mister desembrulharmos primeiro todo aquele jargão científico com o qual a vossa atenção foi imediatamente captada ou, esperemos que não seja esse o caso, imediatamente desviada para o próximo texto deste jornal.
A produção dos sons
O nome oficial do som representado pela letra v em português e pelo símbolo [v] no alfabeto fonético é fricativo labiodental sonoro. (Por convenção, os sons são sempre transcritos entre parênteses rectos [ ].) Comecemos pelo fim. Já aqui expliquei uma vez que os sons consonânticos podem ser surdos ou sonoros dependendo da abertura da glótis; se a glótis está aberta, o ar ao passar não vibra as cordas vocais–o outro nome para a glótis–e o som resulta surdo, se as cordas vocais estiverem fechadas, o ar ao passar vibra as cordas vocais e o som é sonoro.
Quanto à classificação de labiodental, esta refere-se aos órgãos ou partes da boca que intervêm na configuração final do som. No caso do [v], para produzirmos este som, os dentes do maxilar superior fixam-se sobre o lábio inferior. Se nos detivermos por um momento no outro som que nos interessa aqui, o som representado pela letra b em português e pelo símbolo [b] no alfabeto fonético, este som é bilabial porque para o produzirmos os dois lábios tocam-se, fecham-se; bilabial porque ambos os lábios interagem na configuração deste som. O [b], tal como o [v], é também um som sonoro, ou seja, produzido com vibração glótica.
O primeiro elemento na classificação de [v] é fricativo; o que esta palavra descreve é a forma como o ar, que é a matéria de que os sons são feitos, sai através boca. O [b], por sua vez, é um som oclusivo, às vezes também chamado explosivo. A diferença entre estes dois tipos de sons consonânticos é que, no caso dos oclusivos, o ar encontra um obstáculo, uma oclusão, à sua passagem e o som resulta de uma “explosão” do ar que irrompe contra o obstáculo que encontra, no caso do [b], os lábios fechados. Nos sons fricativos, como no caso do [v], o obstáculo que o ar encontra não impede a sua passagem por completo, o ar vai passando causando uma fricção contra os órgãos que intervêm na sua configuração. Podemos fazer o teste. Se pronunciarmos um [v], notamos a vibração entre os dentes superiores e o lábio inferior e podemos produzir este som enquanto tivermos ar nos pulmões. Já no caso do [b], o ar força os lábios a se abrirem para poder passar e o som [b] só é produzido no instante e que os lábios, empurrados, se abrem. Se tentarmos continuar a pronunciar [b], aquilo que pronunciamos é o som [e], porque o [b] só existe no instante em que os lábios irrompem para deixar passar o ar; os sons oclusivos são como pequenas explosões de ar.
Os sons consonânticos normalmente vêm em pares. O par de [v] é o [f ] que em português se representa pela letra f de farmácia. O [f ] é a correspondente surda de [v], ou seja, é um som fricativo labiodental surdo. Podemos testar; se pronunciarmos um [f ] a posição dos dentes em relação aos lábios é exactamente a mesma e a vibração entre estes órgãos é também a mesma que em [v], apenas a qualidade final do som é diferente, este soa mais opaco, daí surdo.
Chegados aqui, vemos que o único traço que estes dois sons partilham é a sua sonoridade. Exemplos como votar e botar (aquilo que fazem as galinhas no Brasil) ou bota e vota, mostram que a distinção entre o [v] e o [b] é pertinente na língua portuguesa. Como é que se explica a neutralização da diferença entre estes dois sons? E como explicar, então, que o segundo se sobreponha ao primeiro?
Romanos e Ibérios
Muitas vezes são factores externos à língua que determinam a forma como falamos. Já aqui falámos da variação diastrática, ou seja, de como factores socioeconómicos determinam a maneira como falamos, ou da variação diafásica, ou seja, de como o contexto em que nos encontramos nos obriga a ajustar a nossa forma de falar às situações. Estes são apenas alguns dos aspectos externos que influenciam a forma como usamos a língua.
Muitos outros aspectos externos podem influenciar a forma de falar. No passado foi sugerido, sugestão que hoje em dia não encontra cabimento, que a forma como os brasileiros falam o português é causada, ou talvez melhor, influenciada pelo seu clima. Se isso fosse verdade, seria interessante tentar prever quais as consequências linguísticas que o aquecimento global traria ao português no futuro.
Já factores de natureza histórica têm todo o cabimento, pois estes têm enorme relevância na forma como falamos. Senão vejamos, se os romanos não nos tivessem conquistado, não falaríamos a língua românica que o português é; ou, se os mouros não tivessem sido expulsos da península, o português poderia ser hoje um dialecto do árabe, ou, pior ainda, Portugal e a sua língua poderiam nunca ter vindo existir de todo.
A troca do v’s pelos b’s ou, utilizando uma linguagem mais científica, agora perfeitamente clara, a tal neutralização da distinção entre [b] e [v], pode encontrar a sua raison d’être em aspectos histórico-linguísticos que têm a ver com o substrato linguístico da Península Ibérica antes da conquista desta pelos romanos e da introdução do latim, primeiro, como língua franca, e, posteriormente, como língua vulgar.
Antes da chegada dos romanos, outros povos já habitavam a península, entre eles, os nossos antepassados, os lusitanos, cuja língua se extinguiu totalmente. (Algumas inscrições em lusitano existem.) Os lusitanos eram o produto do encontro de duas outras raças que também habitavam a Ibéria, nomeadamente os ibérios, a Este e os celtas, a noroeste. Estes últimos, os celtas, estão muitíssimo bem representados no continente europeu, povo de origem ária, ou indo-europeia, estenderam-se deste as ilhas britânicas até à Anatólia, espaço geográfico hoje ocupado pela Turquia. Muitas são as línguas célticas faladas ainda hoje na Europa, nomeadamente o bretão na França, o gaélico escocês, o gaélico, irlandês, que ao lado do inglês é língua oficial da Irlanda, o gaélico galês, ou o Córnico, uma língua extinta recuperada no século XX, como já tivemos a oportunidade de ver nesta coluna.
Já dos ibérios, chamados Hiberi pelos romanos, o povo que dá o nome à nossa península, –a Hiberia, mais tarde rebaptizada de Hispania, era a terra dos Hiberi–sabe-se relativamente pouco. A sua origem é incerta, tal como também o é a filiação da sua língua, mas acredita-se que os ibérios já estariam bem distribuídos, em diferentes tribos, pelo Este e sudeste da península por volta do século sétimo a.C. No seu auge os ibérios chegaram ao sul da França e ao centro e sul de Portugal. A língua ibérica terá sido falada em grande parte da Península Ibérica desde a entrada dos ibérios na península até ter sido completamente substituída pelo latim, por volta do século primeiro antes da nossa Era. Embora a língua ibérica se tenha extinguido completamente, deixou para trás cerca de duas mil inscrições cuja compreensão continua a ser alvo de acesas discussões académicas.
Estas inscrições estão grafadas em três tipos de escritura, uma das quais derivada do alfabeto grego. Graças a isso, embora a língua ibérica não tenha sido decifrada totalmente, o seu sistema fonológico é mais ou menos bem conhecido. Assim sabemos que as fricativas labiodentais /v/ e /f/ não constavam do inventário fonemático da antiga língua dos ibérios.
O caso de f no castelhano
Para além do desaparecimento do som [v] do espanhol castelhano, também o seu contraparte surdo, o som [f ], esteve em risco de sofrer o mesmo destino. Muitos dos vocábulos latinos que começavam com [f ] perderam esse som na sua evolução ao espanhol moderno. Vejam-se, como exemplos, os casos do esp. harina, em face do port. farinha, derivado do lat. farina-, o esp. hacer, em face do port. fazer, do lat. facere, ou o esp. hoz, em face do port. foice, do lat. falce-, entre muitos outros casos. [Há alguns casos onde este fenómeno dá-se no interior das palavras, e.g. ahumado de fumar, mas nestes casos a composição da palavra pode ser posterior à perde do f- na palavra simples.]
Em espanhol moderno, estas palavras escrevem-se com um h-inicial que, obviamente, não soa, mas que serve para assinalar que, na sua origem, estas palavras não começavam apenas por vogal. A escolha desta letra não foi por acaso. A relativa dificuldade em pronunciar o f-latino que os falantes autóctones da península terão sentido devido ao substrato ibérico fez com que o som [f] fosse substituído, ainda que não conscientemente, por um som similar. Assim, o f-inicial latino, um som fricativo que não fazia parte do inventário dos sons da língua ibérica, terá sido substituído por uma aspiração faríngea que ao ouvido destreinado dos ibérios soava semelhante ao [f] dos romanos. Isto não quer dizer que o [f] teria sido sempre substituído e que a dificuldade de produzir este som fosse universal no espaço geográfico da Ibéria. Estes dois sons, [f] e a aspiração faríngea ou velar, representada em espanhol moderno por h-, seriam dois sons alternativos cuja escolha estava dependente dos falantes individuais; estes dois sons representariam aquilo que em linguística chamamos alofones. Disso mesmo dá testemunho o facto de que existem em espanhol moderno pares de palavras da mesma família que se escrevem, umas com f-, outras com h-; por exemplo, a palavra fundo, se é substantivo, como em ‘el fundo del mar’, escreve-se com f-, mas se for adjectivo, então escreve-se com h-, por exemplo, em ‘el mar hondo’. Também o resultado do acto de fumar, escrito em espanhol com f-, é o humo com h-. Existem também vocábulos que apresentam ambas as grafias, entre elas, por exemplo, as palavras hermoso e formoso ou o apelido Hernández e Fernández.
Outro aspecto a ter em conta é que, embora em algumas regiões e em alguns estratos sociais o f fosse pronunciado como uma aspiração faríngea, as palavras continuaram a ser escritas com o seu f-etimológico até que, ao perder-se a aspiração em algumas palavras, estas passaram a se escrever com h, enquanto que as que não perderam o seu som continuaram a ser escrever com o f-latino. Isto mesmo se pode verificar na imagem que acompanha este texto na qual figuram duas páginas da edição prínceps do D. Quixote de la Mancha de Miguel de Cervantes. As duas páginas retractadas, as páginas quatro e sete, do capítulo segundo, mostram duas ortografias alternativas para o verbo fazer, em espanhol moderno hacer. Na página quatro, do lado esquerdo, se podem ver três formas do verbo hacer escritas com h, a saber hizo ‘fez’, deshazer ‘desfazer’, e hiziera ‘fizera’; na página sete, do lado direito, vemos uma forma do mesmo verbo escrita com f, nomeadamente, fazerle ‘fazer-lhe’. As formas do verbo espanhol hacer escritas com f encontram-se sempre nas falas de D. Quijote. Isto sugere que esta forma seria na altura considerada mais conservadora e, sem dúvida, o seu uso está ao serviço da caracterização do D. Quixote como uma personagem excêntrica. Na mesma página sete, também numa fala de D. Quixote, encontramos a palavra espanhola hermosura escrita fermosura.
Da relação sonora entre o [f] e uma aspiração faríngea ou gutural, dá testemunho a palavra portuguesa fato (o de vestir) que deriva da palavra árabe hatu, que também deu origem em espanhol estremenho à palava jato, adjectivo que se atribui a alguém bem vestido.
Na questão histórica da neutralização da distinção entre [v] e [b] e da substituição do [f] latino etimólogo em algumas palavras do espanhol, o ibérico funciona como substrato linguístico. Uma definição simples de substrato seria uma língua falada por uma comunidade que ao ser substituída por outra língua, como foi o caso do ibérico relativamente ao latim, influencia a nova língua imprimindo nesta características próprias suas.
No caso da influência da língua substrato na produção de sons, esta pode ser causada por dois factores, a saber, ou o ouvido do falante não está treinado para reconhecer novos sons desconhecidos, ou o aparato fonético do mesmo não está habituado, ou não é mesmo capaz, de produzir esses mesmos sons. Em ambos os casos a solução é adoptar, de entre os sons que o falante conhece e é capaz de produzir, um som o mais próximo possível ao som desconhecido da nova língua.
Em Macau podemos ver como falantes chineses têm dificuldade na produção de certos sons do português, como sejam a diferenciação das vogais semiabertas e semifechadas ou do r simples, em palavras como caro. No caso deste último, os falantes chineses, que não são capazes de produzir a vibrante simples [r] produzem, em vez disso, um certo tipo de [l], som que é organicamente próximo do som original português.
Um caso mais interessante e muito mais pertinente para o tema aqui em discussão, é a dificuldade que os filipinos têm em pronunciar o som [f] quando falam inglês. Isto não quer dizer que os todos filipinos não sejam capazes de pronunciar este som, o que quer dizer é que, devido à influência da sua língua mãe, que aqui funciona como se de um substrato se tratasse, quando em situações informais ou de descontracção, os filipinos naturalmente substituem o [f] pelo som mais próximo no seu sistema fonético autóctone. Assim, substituem o som consonântico fricativo labiodental surdo ou [f] pelo som de articulação mais próxima, ou seja, o som oclusivo bilabial surdo ou [p], o som da palavra portuguesa pá.
O que os filipinos fazem é exactamente o que os portugueses, que trocam os v’s pelos b’s, e os espanhóis fazem em relação ao som [v], que, aliás, é, como já vimos, o som sonoro contraparte de [f]. O som mais próximo do labiodental sonoro [v] é o bilabial sonoro [b]. Não deixa de ser interessante ver como do outro lado do mundo, podemos hoje encontrar um fenómeno tão semelhante ao que se passa na Península Ibérica. Isto, aliás, prova que a substituição de uma fricativa labiodental, como o [v], por uma oclusiva bilabial, como o [b], é um mecanismo linguístico normal, pois é partilhado por línguas diferentes, não aparentadas nem em contacto.
Substrato Ibérico
Como é que se explica então que o f- latino tenha disso substituído por uma aspiração, representada em alguns casos pela letra h-, e que finalmente desapareceria? Por que é que o espanhol castelhano não optou por uma solução paralela à do [v] vs. [b] e substituiu [f] por [p], como, aliás, fazem os falantes de tagalo? A resposta é simples, de acordo com o sistema fonológico reconstruído para o ibérico, o fonema /p/ não fazia parte do seu inventário fonemático. O sistema das consoantes oclusivas do ibérico era constituído pela dental surda [t] e correspondente sonora [d], a velar ou gutural surda [k] e a correspondente sonora [g], mas quando chegamos a serie bilabial, a surda [p], contraparte da sonora [b], não existe. Sistemas fonéticos com desequilíbrios como estes não são invulgares. O próprio sistema fonológico do espanhol moderno não contempla fricativas sonoras, somente surdas, o que em si representa uma forma de desequilíbrio.
Um dos exemplos normalmente citados em favor desta interpretação dos factos é a palavra basca iko, importada do latim ficu-, port. figo. Embora as origens da língua basca, outra das línguas pré-romanas da Ibéria, é tão enigmática como as do próprio ibérico, esforços, baseados em semelhanças entre determinados sufixos e, sobretudo, nos numerais, têm sido efetuados para relacionar o basco com o ibérico. Esta associação linguística, porem, não é pacífica.
Assim sendo, o espanhol teve de procurar um som que fosse equivalente. Não podemos precisar que som foi esse já que o h de harina ou de hacer hoje não representa qualquer som. No entanto, não só a grafia h, ela própria, sugere aspiração como existem também palavras que se escrevem hoje com j-, que em espanhol represente a uma fricativa velar surda, cuja origem aponta para um antigo f. Tal é o caso da palavra jondo que, em espanhol andaluz, descreve um tipo de cante flamenco. A palavra fundo, que, como já vimos, dá o adjectivo hondo em castelhano espanhol, tem sido apontada como possível étimo para esta palavra já que o entendimento de cante jondo é o de um canto profundo.
Com a extensão da norma padrão do português, sobretudo através da escolarização e dos meios de comunicação, como foram no passado recente a televisão e a rádio, e o são hoje a internet e os social media, a distinção entre o v e o b tende a se (re)introduzir na língua falada. Existem, porém, certas variedades locais que gozam de um tipo particular de prestígio, que se poderia descrever como bairrismo, especialmente na zona do douro litoral e em partes do Minho, que provavelmente não permitirão que este fenómeno desapareça totalmente.
Há pouco que a história não explique, até os b’s pelos v’s!
Roberto Ceolin
MA (Conim.) MPhil, DPhil (Oxon.)
Docente Universitário de Línguas Antigas