Na Quarta-feira começou o período religioso que tradicionalmente em Portugal e nos países cristãos se denomina Quaresma. A palavra portuguesa Quaresma deriva do numeral ordinal latino quadragesima, como parte do sintagma quadragesima dies, ou seja, ‘dia quadragésimo’, referindo-se aos quarenta dias que a Quaresma dura. Embora hoje em dia exista alguma confusão no modo de calcular esses quarenta dias, pois muitos pensam que a Quaresma vai até à Páscoa, na realidade, os quarenta dias quaresmais vão da Quarta-feira de Cinzas até as primeiras vésperas do Domingo de Ramos, quando oficialmente começa a Semana Santa. É isso, aliás, que afirmam as rubricas do breviário do missal romanos anteriores à reforma de 1969-70.
A Quaresma como tempo de preparação para a Páscoa evoca os quarenta dias que Jesus passou no deserto em oração e jejum (Mt 4: 1-2), antes de começar a sua vida pública e depois de ter sido baptizado por João Baptista no rio Jordão, segundo a tradição, aos trinta anos de idade. Estes quarenta dias são prefigurados no Antigo Testamento pelos quarenta anos que o povo hebreu terá vagueado pelo deserto do Sinai antes de finalmente entrar na terra prometida (Nm 32:13).
O costume de se comemorar ciclicamente eventos-chave da história religiosa é herdado do judaísmo do segundo templo. De facto, de acordo com o Antigo Testamento é Deus, ele mesmo (Ex 12:1-3; 17-18), que estabelece a forma como os hebreus tinham de celebrar todos os anos a páscoa judaica, a qual comemorava a libertação do cativeiro do Egipto. O próprio Jesus, que seguia o calendário religioso dos judeus (Mt 26:17-18), também ele celebrava estas festividades todos os anos como, aliás, vem referido nos evangelhos. A Última Ceia, por exemplo, tratava-se da refeição ritual dos judeus na Quinta-feira de páscoa, que, de acordo com a tradição bíblica, foi o dia em que a mão de Deus passou pela terra dizimando os primogénitos dos egípcios, incluindo o filho do próprio Faraó.
As Origens da Quaresma
A Quaresma, cujas origens se perdem no tempo, na sua forma hodierna, é entendida como um período de preparação para a Semana Santa e para a Páscoa. A primeira menção explícita à Quaresma aparece no Concílio de Niceia, que se celebrou sob os auspícios do imperador Constantino, o Grande, em 325 da nossa Era, com o intuito de esclarecer de uma vez por todas a questão da natureza de Jesus em relação a Deus. Jerónimo de Estridão (c. 347 – 420) e o Papa Leão Magno (c. 400 – 461), no ocidente, e Cirilo de Alexandria (c. 376 – 444), no oriente, afirmam que a Quaresma foi instituída ainda no tempo dos apóstolos. Já Ireneu de Lião (c. 130 – c. 202), que Eusébio de Cesareia (c.260 – c.340) cita na sua Historia Ecclesiastica, diz que no seu tempo, o jejum preparatório para a Páscoa durava somente três dias, em vez dos quarenta que mais tarde se tornariam a norma.
Hoje em dia diferentes teorias existem acerca das origens da Quaresma, uma das mais credíveis é que esta terá começado por ser um período de preparação para os catecúmenos a serem baptizados na vigília pascal.
No Oriente, os ortodoxos gregos denominam a Quaresma de grande jejum. Os orientais, salvo os Melquitas e os Maronitas, dois grupos de cristãos orientais ligados a Roma, não celebram a Quarta-feira de Cinzas. Para a maior parte dos ortodoxos é a Segunda-feira da Limpeza ou Purificação que marca a entrada no tempo quaresmal. Durante esta primeira semana da quaresma ortodoxa, as pessoas efectuam uma limpeza profunda da casa ao mesmo tempo que são encorajadas a se confessarem. Esta tradição de limpar a casa por esta altura deriva, em parte, do costume judeu de limpar a casa antes da páscoa, de modo a se certificarem de que nenhum resto de fermento ficava para trás, pois a páscoa judia é a festa dos pães ázimos, ou seja, não-fermentados. A confissão representaria o equivalente espiritual dessa limpeza com o objectivo de se certificar de que não existem restos de pecado que impeçam a celebração da Páscoa.
Tal como acontecia no Ocidente durante a Idade Média, os ortodoxos dão muita importância ao jejum durante este período e têm regras muito estritas de abstinência de certos alimentos, nomeadamente da carne, que não se pode tocar durante os quarenta dias que dura o grande jejum. Para além disso, imediatamente antes da Quaresma propriamente dita, os ortodoxos têm um período de três semanas de jejum para preparar o grande jejum da Quaresma. Isto quer dizer que antes da Páscoa, os ortodoxos têm de jejuar durante, mais ou menos, dez semanas. O resultado disto, como é claro, é que muito pouca gente obedece a estes preceitos.
A Igreja romana nunca teve um tão extenso período de jejum e abstinência, ainda que até à reforma litúrgica de 1969-70, e ainda presente no uso extraordinário do rito romano, os latinos celebrassem as semanas da Septuagésima, da Sexagésima e da Quinquagésima, trinta dias que liturgicamente preambulavam a Quaresma.
Com as mudanças do Vaticano II, o jejum e a abstinência foram postos quase completamente na gaveta. Mais recentemente, no entanto, muitas das coisas que se perderam têm vindo a ser reavaliadas e até recuperadas. Nesse âmbito, em 2011, os bispos de Inglaterra e Gales, reintroduziram o jejum obrigatório em todas as Sextas-feiras do ano, um acto que foi descrito, por muitos, na altura como histórico. A carta dos bispos Ingleses descreve a penitência à Sexta-feira, não como um exercício mais ou menos masoquista, mas como ‘um sinal claro e distinto da identidade católica [através da qual] os católicos se identificam com Cristo no momento da sua morte na cruz’.
O Roxo Quaresmal
A cor litúrgica das cerimónias religiosas durante a Quaresma é o púrpura, comummente denominado roxo. [Há vários tons no espectro da cor púrpura, como sejam o violeta, o lilás, etc. Em português, roxo é normalmente o nome genérico dado às cores desse espectro. Embora, para muitas pessoas, roxo e púrpura não representem a mesma cor, neste texto, por pura comodidade, o roxo e o púrpura serão tratados como sinónimos, como se se tratassem da mesma cor. Isto porque, quando falamos do roxo no contexto da realeza, chamamo-lo de púrpura, enquanto que na linguagem religiosa o púrpura é chamado roxo. Já em inglês, em ambos os contextos, a palavra é a mesma, purple.]
As cores litúrgicas são simbólicas e servem para expressar o espírito da ocasião. São elas o branco, o vermelho, o verde, o rosa, o azul e o roxo. O branco, por exemplo, normalmente bordado a ouro, é usado nas festividades maiores referentes a Jesus Cristo como o Natal ou a Páscoa. O branco pode também ser utilizado nas festividades da Virgem Maria, onde pode ser substituído pelo azul, cor associada à Imaculada Conceição, razão pela qual a bandeira de Portugal antes da revolução de 1910 era azul e branca, como já tivemos a oportunidade de ver aqui.
A cor litúrgica do Advento e da Quaresma é o roxo, mas, no terceiro domingo do advento e no quarto da Quaresma, chamados de Gaudete, latim para ‘regozijai-vos’, e Laetare, latim para ‘alegrai-vos, respectivamente, se usa o cor-de-rosa em vez do roxo para expressar o gáudio sugerido pelas antífonas de entrada.
Antes da reforma litúrgica de 1969-70, no seguimento do Vaticano II, existia ainda mais uma cor, o preto, que era utilizado nas missas de sufrágio pelos mortos. Após a reforma, o preto foi substituído pelo roxo nas missas dos defuntos. Essa mudança causou alguma confusão no significado da cor roxa nas celebrações litúrgicas, já que esta passou a ser entendida como sinal de luto. Não é de todo verdade que o roxo do Advento e da Quaresma represente tristeza; no caso especial do Advento, que antecede o Natal, nunca poderia este período ser considerado triste. Aquilo que o roxo pretende expressar nestas duas estações do ano religioso é solenidade.
Na antiguidade, tal como o mencionam a Ilíada de Homero e a Eneida de Virgílio, o púrpura era uma cor reservada aos reis e, em alguns casos, reservada mesmo só aos deuses. Clitemnestra, a esposa de Agamémnon, quando quis vingar a morte da sua filha Efigénia que o pai, o mesmo Agamémnon, havia sacrificado a Poseidon para poder partir para Tróia, engana o marido fazendo-o pisar um tapete púrpura, algo reservado somente aos deuses. Agamémnon sabe o que está a fazer, ele próprio diz que aquela é uma honra reservada somente aos deuses, mas Clitemnestra joga com a vaidade deste e consegue convencer o marido de que ele também é digno de uma tal honra. Ao pisar o tapete purpura, Agamémnon comete um acto de insolência e, tendo incorrido em hybris, tem de morrer. É desta forma que Clitemnestra encontra uma justificação para poder matar o marido e vingar assim a morte da filha.
O que elevou a cor púrpura ao seu estatuto de cor real na zona da bacia do mediterrâneo foi a sua raridade. Na antiguidade, esta cor era conseguida através da gosma ou baba produzida por um pequeno molusco chamado murex, ou, em português adaptado, múrice (que se pode ver na imagem que acompanha este artigo). É, aliás, daí que vem a palavra espanhola murado para se referir ao roxo. Para a produção do pigmento para tingir tecidos roxos eram necessárias centenas destes pequenos moluscos que tinham de ser abertos e, depois de retirados da sua concha, estimulados para produzir a tal baba. Este processo era dificílimo, lentíssimo e dispendiosíssimo. Para além do mais, até à sintetização do amoníaco nos finais do século dezoito, o púrpura era uma cor muito difícil de se manter já que tendia a desmaiar com a exposição ao sol e ia desaparecendo com a lavagem. Assim, os tecidos roxos tinham de ser retingidos frequentemente, o que os tornava ainda mais dispendiosos. Como tal, esta cor era acessível unicamente às classes mais abastadas e na antiguidade passou a ser considerada cor real. É exactamente por isso que os soldados para fazer troça de Jesus, acusado de se fazer passar por rei dos judeus, o vestem com um manto púrpura e uma coroa de espinhos (Jo 19:2).
O púrpura de Tiro, assim chamado por ser originário da cidade de Tiro, no Líbano, era a cor roxa mais famosa e mais cara da antiguidade.
Da Idade Média até meados do século dezanove, em certas regiões de Portugal, o roxo era extraído de cascas de cebola e fixado aos tecidos com urina de bode.
Em vista do seu carácter nobre, a intenção do roxo não pode ser representar nem o luto, nem a tristeza, mas, sim, expressar dignidade e solenidade. Para além do mais, à boa maneira dos romanos, para os quais a gravitas e a solenidade se expressavam exteriormente pela sobriedade de modo a dar ênfase ao conteúdo mais do que à forma, o roxo expressa o solene e o nobre de forma discreta. Era, aliás, para marcar o conteúdo da estação e evitar distracções que antigamente se cobriam com panos roxos todas as imagens dentro da igreja durante a última semana da quaresma, chamada Semana da Paixão, e durante a Semana Santa. Ao entrar-se numa igreja onde toda a decoração está oculta sob panos roxos seriamos imediatamente avisados de que algo muito grave, no sentido romano da palavra, se passa ali.
As cinzas, forma solene de penitência
A Quaresma começa na Quarta-feira de Cinzas, assim chamada porque durante missa deste dia cinzas são colocadas sobre a cabeça dos fiéis, ou na testa em forma de cruz, acompanhadas da frase ‘lembra-te, homem, que és pó e que ao pó voltarás’. Este acto tem como objectivo lembrar o carácter efémero e transitório da passagem do homem por este mundo. O valor simbólico deste pequeno mas solene gesto marca o exórdio da Quaresma, período de introspecção e reflexão, fortificadas, sempre que possível, pela oração pessoal mais frequente, a partilha com os mais necessitados e a renúncia a coisas prazerosas e não só, como forma de tentar aumentar o controlo sobre o próprio corpo.
Esta Quarta-feira, o autor deste texto, yours truly, foi a missa numa das igrejas da nossa cidade. A missa foi dita num português em que o conjuntivo parecia ter ido de férias, mas, tendo em conta que o sacerdote em questão não era falante nativo, até esteve bastante bem; pelo menos o sermão foi oportuno e fazia sentido, não era o costumeiro estandarte de absurdidades ilógicas e de fideísmos irracionais que às vezes se ouve. Credulices e fé não são a mesma coisa, já dizia S. Tomás na Suma que tal como a Graça pressupõe a natureza (entenda-se natureza humana), a fé pressupõe a razão.
Antes do concílio, não se cantava à comunhão, o órgão podia tocar, mas não havia cântico porque a comunhão merece e requer reflexão. A caminho da comunhão vai-se a reflectir no que se vai fazer e depois da comunhão vai-se para o lugar reflectir no que representa aquilo que se acabou de fazer. Não é tempo para cantigas! Mas muito pior do que cantar durante a comunhão, é cantar disparates. Há uma série de cânticos religiosos portugueses dos anos sessenta e setenta cujos textos ou não fazem sentido, ou não se recomendam em virtude do seu conteúdo colorado. Foi um destes textos o escolhido para a comunhão neste dia tão solene do calendário religioso.
Assim, a caminho da comunhão ia-se cantando coisas como ‘buscamos, Senhor, a Vossa palavra | mas não a encontramos’. Uma tal afirmação na fila para a comunhão é, no mínimo, estranha, já que Jesus Cristo é a Palavra de Deus encarnada–não sou eu quem o diz, mas S. João no prólogo do seu evangelho– ou seja, aquilo a que se dirigem os que estão na fila para comungar. Como é que se coaduna a ideia de não conseguir encontrar a Palavra de Deus com o facto de se estar na igreja e, ainda por cima, na fila para a comunhão? Continua a cançoneta: ‘Ninguém fala de Ti, | Ninguém nos pode ensinar | Queremos profetas que apontem caminhos, | Para nos guiarem’. Não se fala de Deus na Igreja? Para que serve o padre? O que esteve o padre a fazer durante o sermão? E as leituras eram sobre o quê? E a cerimónia é sobre quem? Não se percebe! Este cântico não faz sentido para quem pratique a religião, para quem vá à igreja, pois a sua letra sugere que o povo está abandonado e à deriva; para serve então a Igreja?
E, como não podia faltar, também traz um dosezinha moderada do rancor marxista daquele tempo em que, palavras como ‘Enquanto muitos se arrastam, | Na fome e no sofrimento, | Há outros que vivem no seu bem-estar, | Como donos do mundo’, provavelmente até se cantavam com o punho fechado no ar. Palavras desta natureza não deveriam ter lugar dentro de um templo durante uma cerimónia religiosa; parece algo mais apropriado para se cantar ou recitar na festa do Avante!
Durante a cerimónia da imposição das cinzas, encontrava-se no espaço do altar, um fotógrafo que, à medida que o sacerdote desenhava com o seu dedo o sinal da cruz na testa dos fiéis ajoelhados em frente ao altar, este seguia o padre e fotografava os penitentes, ao ser-lhes impostas as cinzas, como se de símios a descascar amendoins no jardim zoológico se tratassem, como se fossem uma atracção turística para fazer postais, ou como se em vez de estar numa igreja estivessem num festival televisivo qualquer, sem nunca perguntar às pessoas se queriam ou permitiam ser fotografadas, desrespeitando assim o direito à própria imagem que cada um de nós tem e, sobretudo, o direito que as pessoas têm a exercer a sua fé e praticar a sua religião sem câmaras fotográficas à volta! Este comportamento durante um acto penitencial deste nível revela uma séria falta de sentido de oportunidade e de compreensão do verdadeiro significado das coisas.
Graças a Deus, quando chegou a vez do autor deste texto, o fotografo virou a enorme objectiva da sua câmara fotográfica na direcção de outra pessoa, porque este yours truly, já estava preparado para mandar um berro ou dois ao dito cujo fotógrafo, apesar de estarmos dentro da igreja. Alguns de nós preferimos não ser fotografados por não sabemos bem quem nem para quê quando vamos à igreja rezar. Será que sou eu o único que pensa assim?