Macau recebeu, entre os dias 20 e 22 de Fevereiro, o primeiro evento da série “Viagem Gastronómica dos Chefs Estrela”, promovida pelo MGM Cotai. O chef venezuelano Ricardo Chaneton foi o convidado de honra, trazendo para o restaurante AJI um menu de degustação de oito pratos que propunha unir os sabores da América do Sul às técnicas refinadas da culinária francesa.
Em entrevista ao PONTO FINAL, Ricardo Chaneton, chef do restaurante MONO, em Hong Kong, conta a sua jornada desde as origens humildes na Venezuela até à conquista de uma estrela Michelin.
Qual é o balanço desta primeira experiência profissional em Macau, no MGM?
Descobrimos, ao organizar o evento, que esta é a primeira vez que a cozinha latino-americana é apresentada em Macau. É uma grande conquista tanto para mim como para o MGM, que se torna pioneiro neste sentido. Estamos a trazer ingredientes que ninguém experimentou antes… Hoje, por exemplo, servi um prato com mashua, um ingrediente que em toda a Ásia só é servido em dois sítios: o AJI e o MONO. A ideia é fazer os convidados sentirem-se especiais e trazer algo novo, diferente, para a experiência gastronómica em Macau. Noutro assunto, devo dizer que é óptimo termos uma cozinha totalmente equipada, onde não falta nada. Facilita imenso o nosso trabalho. Em termos de equipa, diria que estou muito surpreendido. Temos filipinos, pessoas da China continental, de Macau, de Hong Kong… é positivo ver como todos se misturam, graças à cena culinária do MGM. É uma equipa muito trabalhadora, atenta, que presta atenção aos mais pequenos detalhes. Ontem, reunímo-nos às 19h para fazer um treino e estavam a tomar notas e a fazer perguntas interessantíssimas que me faziam pensar: “Meu Deus, porque é que me perguntam isto?” É óptimo trabalhar com pessoas que nos desafiam e que nos fazem sentir que precisamos de estar a um certo nível. Já estou habituado a fazer estes eventos promocionais e é um trabalho árduo, mas a confiança na equipa facilita tudo. Estamos todos no mesmo nível de sincronização. Eles sabem exactamente o que estou a tentar alcançar em termos de qualidade ou objectivos.
Como é que as suas técnicas culinárias evoluíram ao longo de anos de aprendizagem em diferentes países?
Quando se começa a cozinhar, estamos sempre a interpretar a cozinha de outra pessoa. É essa mistura de cozinhas por onde passamos que nos vai influenciando, até chegar o dia em que somos nós a dar as ordens. Como nasci e cresci na Venezuela, adaptar-me a Espanha foi fácil. São ambas culturas orientadas para a família e para a partilha; estamos sempre felizes à volta da mesa. A dificuldade, para mim, foi o facto de na Venezuela não termos restaurantes com estrelas Michelin. O nível de pressão, o nível de procura da excelência… E era um restaurante de gastronomia molecular, o que era como abrir o cérebro e enfiar lá dentro imensa teoria e informação. Adorava. Obrigava-me a fazer perguntas como “porquê isto e não aquilo?” ou “porquê dois centímetros e não cinco?”. França expandiu-me ainda mais os horizontes. O restaurante onde trabalhei não tinha menu e os pratos podiam mudar todos os dias. Costumo compará-lo à cozinha de uma avó: era como abrir o frigorífico e inventar um prato com base nos ingredientes que tínhamos à disposição. França ensinou-me a ter intenção e a ser criativo, como uma avó a cozinhar para a família. Aprendi que a verdadeira cozinha não está relacionada com o termómetro ou a balança, mas sim com o bom senso, a intenção e a criatividade. E depois temos Hong Kong, claro, uma cidade vibrante e repleta de diversidade. No entanto, a minha primeira cidade na Ásia não foi Hong Kong, mas Xangai. Também fui muitas vezes a Nanjing. Foi na China continental que aprendi muito sobre sabores, ingredientes e texturas diferentes. Adoro isso na cozinha chinesa: as texturas. O arroz chau-chau é capaz de ser o melhor exemplo, porque numa simples tigela de arroz frito podemos ter cerca de 15 texturas. Temos uma textura estaladiça, outra empapada, firme, gelatinosa, vegetais misturados com o arroz… Todas as colheradas são diferentes e nunca se tornam aborrecidas. A minha forma de trabalhar passa também por fazer perguntas e saber ouvir. Tenho pessoas de muitas culturas diferentes a trabalhar comigo: filipinos, mexicanos, guatemaltecos, argentinos, brasileiros, franceses, alemães, australianos… E ouço os clientes, também. Já fui criticado pela minha própria equipa por ouvir tanto os clientes, mas a verdade é que aprendo com eles. Como é que a minha abordagem mudou ao longo do tempo? Aqui está a resposta. É uma jornada sem fim, que continuará a mudar amanhã. Daqui a dez anos, talvez conversemos novamente e a minha abordagem será diferente.
A grande constante no seu trabalho parece ser a nostalgia da infância na Venezuela, e basta ver os comentários que recebe nas redes sociais para perceber que o carinho é recíproco. Muitos venezuelanos comentam: “¡qué orgullo!”
Costumo dizer que os venezuelanos estão sempre a cozinhar o que outra pessoa já fez e acabamos por perder a nossa identidade, de certa forma. Como nunca trabalhei num restaurante latino-americano na Venezuela, esforço-me por reconectar com as origens. É através da comida que honro os laços com o lugar de onde venho e onde cresci; onde tenho as memórias mais incríveis da minha vida pessoal. Depois de começar a cozinhar, tudo passou a estar relacionado com o trabalho. É uma forma de me ligar ao passado e aos sabores que cresci a comer. Quando recebemos a estrela Michelin, fui o primeiro chef venezuelano a receber essa honra na história do país. A minha conta do Instagram tinha oito mil seguidores e, em 2022, quando recebemos a primeira estrela, atingiu mais de 40 mil numa semana. Tantas mensagens a incentivar-me, a parabenizar-me. Respondemos a mais de três mil mensagens, eu e a minha equipa, uma a uma. Estava a equipa toda agarrada ao telemóvel: todos tinham a minha palavra-passe e ficaram encarregados de responder a diferentes tipos de mensagens. Uma pessoa tratava dos pedidos de entrevistas de rádio, outra das entrevistas para revistas. Às pessoas, respondia eu. O pessoal de relações-públicas pedia-me para não o fazer: era um desperdício de tempo, diziam. Mas eu sentia a necessidade de agradecer, porque o que vai também volta. Estas pessoas tiraram tempo das suas vidas para felicitar alguém que não conheciam. Demorei algum tempo, mas no final consegui responder a todas as mensagens. Foi um momento lindo. É bom fazer parte de uma indústria baseada na hospitalidade, na partilha, e representar o meu país. O meu passaporte é italiano, mas digo que sou venezuelano porque não foi na Itália que nasci, cresci ou vivi. Trata-se de um sentimento de pertença. Vivi em França sete anos, mas não posso dizer que sou francês. E agora vivo há nove anos em Hong Kong, mas também não posso dizer que sou de Hong Kong.
De que forma é que viver em Hong Kong influenciou a sua personalidade? Por exemplo, sei que contratou um mestre de Feng Shui antes de abrir o restaurante…
Foi a minha sócia quem me falou sobre isso, quando abrimos. Eu pensei: “OK, eu não acredito em nada, mas acredito em tudo”. Então, porque não? Todos nós precisamos de acreditar em algo. Sempre que o mestre de Feng Shui visitava os espaços onde considerávamos abrir o restaurante, dava uma volta e dizia: “não, este não é o lugar certo”, até encontrarmos o espaço onde fundámos o MONO. Regressa todos os anos, por ocasião do Ano Novo Chinês, para nos dizer o que precisamos de mudar. 99% das vezes, não diz nada excessivo. Quando falo de excessivo, quero dizer… Há dois anos, o Feng Shui desaconselhava o uso da cor vermelha. Acontece que o prato da Michelin é vermelho e estava ostentado bem no topo da cozinha. Então, imprimimos um prazo azul seguindo as directrizes do guia Michelin. No ano seguinte, o mestre voltou e, desta vez, era preciso que o prato fosse vermelho. Neste ano da Serpente, o mestre aconselhou-nos a mudar para ouro ou prata, então lá vamos nós ter de mudar outra vez. Ainda está em produção, mas assim que puder vou lá colocá-lo em tons prateados. No mundo ocidental também temos o 13 como número de azar, não é? Então, não é algo muito distante daquilo em que acreditamos no Ocidente. Há este tipo de crenças em todo o mundo.
O mundo da alta-cozinha está associado a muita pressão e horas de trabalho extraordinárias. Há algum mito associado a esta área que não seja exactamente verdade?
É triste que nos foquemos apenas na alta-cozinha, porque há tantas outras profissões que exigem dedicação e muitas horas de trabalho. A cozinha talvez seja a mais famosa porque é das mais divulgadas. Há tantos programas de TV, séries… e as pessoas que vêem TV adoram drama. Mas pensamos em médicos, voluntários em zonas de guerra, indústrias militares, pilotos, controladores de tráfego aéreo em aeroportos… Vejo muitos jovens da nova geração a dizer constantemente: “tantas horas”, “quero desistir”… Tudo bem, depende de quais são as ambições de cada pessoa. Se queremos ser os melhores, temos de trabalhar muito. E não é como se assim tenha de ser eternamente. Mas claro que, estando numa indústria do serviço, temos de ser hospitaleiros. Nesse sentido, nunca estamos fora do horário. Estamos sempre a trabalhar com isso em mente. É um chip dentro de nós que nunca se desliga e que nos incentiva a servir as pessoas e a ajudar…
Antes de decidir enveredar pela gastronomia, chegou a considerar ser médico. Considera que ambas as profissões se aproximam, nesse sentido? Ambas têm como propósito ajudar as pessoas?
Sem dúvida. Na cultura chinesa, em particular, a comida é vista como medicina. O gengibre aquece, o limão arrefece… E eu acredito que seja verdade: aquilo que introduzimos no nosso corpo pode curar-nos ou matar-nos. Se não prestarmos atenção a alergias ou tivermos comida fora do prazo ou em más condições, podemos matar alguém. Se formos a um restaurante humilde numa aldeia, que não esteja preparado para acolher intolerâncias alimentares, podemos morrer. A nossa profissão é delicada e é preciso levá-la a sério. Os chefs e até os gerentes dos restaurantes sentem muita pressão para estar em todo o lado, constantemente alerta, com os nervos à flor da pele. Esta é uma indústria que serve pessoas, e as pessoas são todas diferentes. Temos de ter em consideração cada cliente e tentar servi-lo da melhor forma possível.
De que forma é que o mundo da alta-cozinha tem vindo a evoluir? Sente que há um esforço para o tornar mais inclusivo?
Acho que esse estereótipo da alta-cozinha como uma experiência muito rígida, formal e cheia de códigos de conduta tem vindo a mudar, mas ainda existe. Há restaurantes japoneses de sushi onde, se o cliente chegar um minuto atrasado, é tratado como lixo e nada pode fazer senão engolir em seco e regressar ao hotel. Não se pode tirar fotos ou usar perfume; é preciso obedecer a um certo tipo de dress code. Ainda assim, penso que a gastronomia está a mudar para uma experiência mais acessível. Até se formos ao país mais famoso pela gastronomia, França, ou em restaurantes com três estrelas Michelin, vemos o maître d’ a colocar a mão na mesa e a falar casualmente com os clientes. No MONO, o que tentamos fazer é uma linha muito ténue entre casual e fine dining. Para mim, o fine dining é a atenção ao detalhe. É aquilo que os japoneses nos ensinaram com a palavra motenashi, que basicamente significa antecipar as necessidades do cliente. Se reparar que um cliente tem a boca pequena, tento antecipar e esclarecer que pode dar duas ou três dentadas numa infladita, para que não se sinta desconfortável. A alta-cozinha não é estar de gravata, muito formal, com o cabelo impecável. Sem dúvida, parece bonito, parece asseado, mas se tiver esta apresentação e depois proporcionar um tratamento rude ou apressado… Se notar que o cliente está com frio e não oferecer algo para se cobrir, de que vale esta aparência tão impecável? A questão do dress code relaciona-se mais com o respeito pelos outros clientes. Se alguém aparecer no restaurante com um fato elegante, não se sentirá bem se o cliente da mesa ao lado estiver a usar calções e boné. No momento da reserva alertamos que não se pode usar boné – muitas pessoas ignoram e, enfim, não dizemos nada. Tudo bem. Estão ali para se divertir. O problema é delas: vão ser ridicularizadas porque a pessoa na mesa ao lado está bem vestida e a olhar de soslaio. Mas há um ponto sobre o qual temos de falar honestamente: a indústria do fine dining está a passar por dificuldades. Não só o MONO, mas todos os restaurantes do mundo. Não podemos dar-nos ao luxo de recusar clientes ou criar problemas. Tentamos acomodar o máximo possível. Acima de tudo, é uma questão de senso comum e de princípio. Estamos na indústria da hospitalidade; recebemos pessoas e elas têm necessidades que precisamos de acomodar. Tão simples quanto isto.
O que é, afinal, o fine dining? Como é que a comida se torna arte, nesta indústria? Quando é que um prato passa de alimento para uma experiência artística?
A arte pode ser definida como uma série de actividades humanas que, através de técnicas e aperfeiçoamento de certos elementos, consegue provocar emoção. Cozinhar uma tigela de noodles é uma actividade humana. Se evoca emoção ou não, é isso que define o elemento artístico. Por exemplo, ontem comi porco agridoce num restaurante do MGM e estava delicioso. É isto, a arte. O restaurante pode não ter uma estrela Michelin, pode não estar no topo das listas mundiais de melhores restaurantes do mundo, mas evocou em mim uma emoção concreta. Fez-me dizer: “Bem, era exactamente isto que eu queria”. Nas artes culinárias, tentamos sempre que as nossas criações – sejam elas uma tigela de noodles ou um pombo – provoquem emoções e que o artista transmita algo através do seu prato à pessoa que o recebe. Portanto, se a mensagem for bem recebida e despertar emoções, acho que podemos chamá-lo de arte. E isto aplica-se a todas as áreas. Talvez o que o PONTO FINAL está a fazer também seja arte. A forma como conduzem a entrevista, os sentimentos que despertam nas pessoas que o lêem, a forma como entregam as palavras, o conhecimento sobre o trabalho que estão a fazer… tudo isto também pode ser arte. Tudo, tudo pode ser arte.
C.B.