No mesmo ano de 1290, em que funda o ‘Estudo Geral de Lisboa’, que viria a se tornar a Universidade de Coimbra, alma mater do autor deste texto, D. Dinis determina também que toda a documentação oficial do reino, até então escrita em Latim, se passasse a escrever em Português. Um dos intuitos desta sua medida era retirar das mãos dos clérigos o controle quase total da escrita, sobretudo a de documento oficiais. Poucos sabiam Latim, o que levava a que a administração do reino, e não só, não se pudesse fazer sem a intervenção dos membros do clero que desta forma estendiam os seus tentáculos a praticamente todos os quadrantes da vida pública. Até meados do século treze, a actividade notarial estava quase exclusivamente nas mãos dos membros da clerezia.
Isto não quer dizer que antes de 1290 não se escrevesse em Português. O documento mais antigo escrito inteiramente em português, o ‘Testamento de D. Afonso II’ (na imagem que acompanha este artigo), data de 1214; terá sido escrito em Coimbra e dele fizeram-se treze cópias das quais duas chegaram até nós.
Já antes deste documento escrito integralmente em Português, havia documentos onde apareciam palavras ou frases portuguesas no meio do texto latino, como é o caso da ‘Notícia de Fiadores’ de 1175. Alguns destes textos ‘híbridos’ são, muitas vezes, de difícil classificação, ‘estão em Latim?, estão em Português?’ Tal é o caso do ‘Pacto dos irmãos Pais’, um documento privado sem data, que os académicos acreditam ser também de por volta de 1175. Foi recentemente sugerido por um linguista galego que seria este o documento mais antigo escrito em Português, argumentando que as palavras e expressões em Latim no documento seriam lidas ‘à românica’. Para dar um exemplo do que isto quer dizer, onde no documento está escrito ‘homines’ em Latim, ler-se-ia ‘homens’ em Português. Este argumento não é vazio de mérito, já que muitas palavras portuguesas seriam difíceis de escrever, graças à evolução e aparecimento de novos sons que a grafia do Latim não contemplava. No texto em questão, por exemplo, a palavra ‘hoje’ aparece escrita em Latim ‘hodie’. No vernáculo da altura, ‘hoje’ pronunciar-se-ia ‘odje’ e a transcrição do som ‘dj’ para alguém com pouca experiência em escrever vernáculo poderia ser algo complicado, assim que a hipótese que o investigador galego levanta não é totalmente descabida. No entanto, se a língua híbrida em que este texto está escrito resulta de uma tentativa de escrever Latim por quem não sabia Latim ou de uma tentativa de escrever Português por alguém que não tinha experiência em fazê-lo, como alega o investigador galego, passados quase mil anos, é difícil, senão impossível, determinar qual a intenção inicial do amanuense do texto. Para além do mais, a hipótese de que se tratasse de um rascunho para mais tarde ser escrito em Latim não pode ser descartada.
Este tipo de documentos é normalmente classificado como sendo escritos em ‘latim bárbaro’, um latim agramatical e cheio de palavras vernáculas latinizadas usado por quem não sabia bem Latim, mas tinha de escrever em Latim porque os documentos em língua vernácula na altura não tinham validade oficial. O ‘Pacto’ poderia representar também um caso extremo de latim bárbaro. Interessante de notar, no entanto, que este documento já tem formas verbais totalmente portuguesas como, por exemplo, ‘ajudarmo-nos’, com a respectiva assimilação da terminação do verbo ao pronome reflexo (ajudarmos-nos → ajudarmo-nos).
Mais ou menos na mesma senda está a ‘Notícia de Tordo’, um documento também privado, em galego-português, cheio de palavras e expressões latinas que alguns crêem se tratava de um rascunho para mais tarde ser convertido num documento oficial em Latim; não tem data, mas crê-se que será de entre 1211 e 1216.
Também da mesma época será o mais antigo poema da poesia trovadoresca galego-portuguesa, a cantiga de escárnio e maldizer ‘Ora faz host’o senhor de Navarra’ de João Soares de Paiva. Esta cantiga, como é óbvio, não está datada, mas como os eventos a que parece fazer alusão, nomeadamente a invasão de Aragão por parte do rei Sancho VII de Navarra (1194-1234), sugere que tenha sido escrita entre 1204 e 1213, período de conflito entre o rei de Navarra e Pedro II (1177-1213) o Católico, rei de Aragão e conde de Barcelona, numa altura de intensas tentativas para a unificação dos reinos cristãos da Península Ibérica.
A poesia trovadoresca galego-portuguesa, que consta das famosas cantigas de amigo, de amor e de escárnio-e-maldizer estendeu-se por um período que vai desde meados do século doze até a meados do século catorze. A esta poesia de temática profana deve-se acrescentar também a poesia de temática religiosa compiladas por Afonso X (1221–1284), o Sábio, rei de Castela, sob a égide de ‘Cantigas de Santa Maria’. As cantigas da poesia trovadoresca são os primeiros monumentos literários da língua portuguesa.
Os Primórdios da Ortografia do Português
Problemas de classificação textual como os do ‘Pacto dos irmãos Pais’ não são mais do que o reflexo das dificuldades que os autores dos textos portugueses antigos sentiram quando tiveram de os escrever. Na altura, para aqueles que escreviam em Latim, existia uma norma ortográfica bem estabelecida, já quando tentavam escrever em vernáculo, especialmente palavras que, dada a evolução da língua, tornaram-se distantes da palavra latina na sua origem, a tarefa de escrever vernáculo se tornava um desafio.
Nesta primeira fase de escrita do português o que primou foi o princípio da fonética, ou seja, as palavras escreviam-se como soavam. O facto de que o Português derivasse do Latim e que a relação entre as duas línguas fosse, até certo ponto, perceptível, especialmente em fases mais antigas da língua, faz com que a aplicação das normas ortográficas do Latim ao vernáculo se tivesse encarregado de uma parte significante da representação dos sons da nova língua. No entanto, novas palavras e novos sons cuja relação com o Latim pode ser mais difícil de vislumbrar, nesses casos a pessoa que escreve tem de exercer o seu juízo para poder escrever os sons que o Latim não contempla. Ainda assim é ao Latim que o português vai buscar, não só o sistema de escrita, ou seja, as letras, para a transcrição dos seus sons mas também as regras de escrita dos mesmos sons; por exemplo, o ‘s’ inicial é simples, mas no interior da palavra tem de se duplicar ‘-ss-’, se se quiser manter a sua qualidade de consoante surda.
As vogais, por exemplo, mantêm o valor que tinham em Latim tardio. A maior diferença que as línguas românicas têm em relação ao Latim, no que diz respeito ao sistema vocálico, é que a ‘quantidade vocálica’, ou seja, a distinção entre vogais breves e longas, foi substituída pela ‘qualidade’, ou seja, a distinção entre vogais abertas e fechadas, uma evolução que já começara a ter efeito no período tardio do próprio latim coloquial. Na verdade, as línguas românicas herdam do latim coloquial tardio das suas respectivas regiões os seus sistemas vocálicos quase intactos (excepção feita ao Francês).
A evolução do sistema consonântico, esse sim susceptível de profundas alterações, levou a algumas alterações mais do sistema vocálico, mas nada que provocasse a necessidade de criar novas grafias.
Uma das grandes características que distingue o galego-português das demais línguas românicas da Ibéria, e da România em geral, é a ‘perda da nasal e da lateral simples em posição intervocálica’, ou seja, palavras latinas que tinham um -n- ou um -l- entre duas vogais, na sua evolução ao galego-português, perderam esse -n- e esse -l-, perda essa que trouxe consigo várias consequências de natureza diversa, incluindo alterações na estrutura silábica. Este é um assunto demasiado complexo e técnico para ser discutido aqui, assim que dois ou três exemplos serão suficientes para ilustrar a questão. A queda do -n- e -l- simples em posição intervocálica levou ao encontro de vogais que antes estavam separadas por uma consoante. Dependendo das vogais em questão, um ditongo poder-se-ia desenvolver, tal foi o caso da forma verbal ‘sai’, do latim ‘sali(t)’, comparece com o espanhol ‘sale’. Mas na maioria dos casos, a perda de -n- e -l- intervocálicos causaram o desenvolvimento de um hiato. Hiatos são foneticamente desconfortáveis e a língua tem a tendência para os resolver de algum modo. É, aliás, essa a explicação para a pronúncia de ‘aiágua’, em vez de ‘a água’, que às vezes se ouve por aí na linguagem popular. Uma das formas para a solução destes hiatos foi a contracção quando a qualidade das vogais em hiato era a mesma. Assim, a palavra latina ‘panatariu-’ dá o português medieval ‘paadeiro’, que finalmente dará ‘padeiro’; o ‘a’ da primeira sílaba é aberto apesar de estar em posição átona por derivar da crase dos dois ‘a’s. A palavra ‘paadeiro’ mostra ainda uma outra característica típica do vocalismo do galego-português, ou seja, a manutenção do ditongo -ei- de origem secundária, compare-se o português ‘padeiro’ com o espanhol ‘panadero’.
A perda da nasal intervocálica levou também à criação de vogais e ditongos nasais. O português medieval unificou na terminação -ão três terminações latinas diferentes. No plural, no entanto, esta terminação readquire as suas três origens latinas diferentes; as terminações -ãos, -ães, -ões derivam do Latim -anos, -anes e -ones, respectivamente. Embora estes plurais possam ser descritos como irregulares, desde um ponto de vista etimológico, é o singular -ão que é irregular e corresponde à uniformização de duas terminações medievais diferentes, a saber ‘-on’ e ‘-an’. Aqui vemos como o til é a única ‘coisa’ que necessitamos acrescentar às vogais herdadas do Latim para denotar a evolução do Português.
Novos Sons Consonânticos
Apesar de todas as evoluções da estrutura vocálica do (galego-)português, as vogais herdadas do latim eram suficientes para denotar os resultados atingidos. Já no âmbito das consoantes, a evolução linguística deu azo a novos sons que não existiam em Latim e para os quais era necessário encontrar grafias para os representar. O cardápio de inovações consonânticas é muitíssimo mais vasto do que os das vogais e como tal também bastante mais complexo e técnico, vejamos apenas um par de exemplos.
Os grupos consonânticos iniciais pl-, cl- ou fl- do Latim evoluíram para o som tch- em (galego-)português para o qual foi necessário encontrar uma grafia. Assim, as palavras latinas ‘pluvia-’, ‘clave-’ e ‘flamma-’ deram origem ao português ‘chuva’, ‘chave’ e ‘chama’, escritos com ch- que então se pronunciava tch-. A grafia ‘ch’ já existia em Latim mas não para denotar o som ‘tch’.
Um outro exemplo, este relacionado ainda com a perda da nasal simples intervocálica, é o desenvolvimento da nasal palatal–a nasal palatal é aquela na última sílaba da palavra ‘aranha’. Quando o vocábulo latino ‘vinu-‘ perde o seu -n- intervocálico, o -i- anterior adquire a nasalidade do -n- perdido e desenvolve uma nasal palatal; assim surge a palavra portuguesa ‘vinho’. Foi então necessário encontrar uma grafia para o som representado aqui pelas letras -nh-. As várias línguas românicas que desenvolveram este som adoptaram grafias diferentes para o denotar; o português medieval e o castelhano usaram o -ñ-, o francês -gn- o catalão -ni-, outras hipóteses eram o duplicar do -nn- ou, no caso do português, também o uso do agá em -nh-, que finalmente foi a solução que vingou no português, não obstante o facto de que, a princípio, essa grafia era de uso muito restrito.
Apesar de que ir, por exemplo, de Lisboa a Coimbra levasse então provavelmente um bom par de dias de viagem, a ‘network’ que existira entre as várias partes do Império Romano, manteve-se, pelo menos, parcialmente depois da queda do lado ocidental de dito império. Existia assim, apesar das longas distâncias e dificuldades em viajar, uma certa ‘ligação’ entre as nações que fizeram parte do império e que agora falavam línguas românicas. A religião e, no caso do sul da Europa, a luta comum contra o inimigo sarraceno ajudam a explicar essa conexão “internacional” entre os diferentes povos e nações que emergiam na Europa pós-imperial. Isto também teve influência na escrita e muitas línguas românicas partilharam não só determinadas opções ortográficas mas também as mesmas oscilações na representação de alguns sons que as suas respectivas línguas desenvolveram.
No ‘Cancioneiro da Ajuda’, manuscrito em pergaminho do final do século XIII, que contém uma colecção de 310 cantigas em galego-português, tem para os sons que hoje se denotam em Português com os dígrafos -nh- e -lh-, as grafias alternativas -ñ-/-ll-, típicas do castelhano, -ni-/-li-, típicas do provençal e do catalão, -gn-/-gl- típicas do francês e a grafia -nn-, herdada do Latim. Todas estas grafias para denotar os mesmos sons coexistem no mesmo manuscrito.
Estes são apenas alguns exemplos das muitas grafias que o galego-português teve de adaptar para acomodar as evoluções do latim coloquial tardio ao Português. Nesta primeira fase da história da ortografia portuguesa, a grande preocupação era a de representar no texto escrito os sons da língua falada nas ruas. No entanto, a estabilidade que a ortografia de qualquer língua exige somente se viria a conquistar no Português clássico.
A Grafia do Português Clássico
Por volta do século dezasseis, depois da queda de Constantinopla, da Renascença e da Reforma, da invenção da imprensa por caracteres móveis, da descoberta das Américas e do caminho para a Índia, episódios que marcam o fim da Idade Média e o começo da Idade Moderna, a língua portuguesa tinha já adquirido as feições que tem hoje; a língua de Camões é basicamente a mesma que usamos hoje. Isto não quer dizer que desde Camões a língua portuguesa se tenha mantido estática, mas as grandes alterações que transformaram o latim coloquial tardio do ocidente ibérico em Português já tinham terminado o seu trabalho.
As questões de como representar os sons do Português estavam todas, mais ou menos, resolvidas e variações na escrita derivavam sobretudo de variações inerentes à própria língua, como sejam variações regionais, de pronúncia, etc., e às vezes variações de estilo ou influências de outras línguas, como, por exemplo, o espanhol ou o italiano por via da literatura.
O crepúsculo da Idade Média traz consigo a abertura da educação académica aos não-clérigos e o renascimento dos estudos clássicos. Com o aumento do número de pessoas que sabem escrever e o acesso mais liberalizado à cultura clássica aparece uma nova preocupação, a de ‘escrever bem’. Por volta desta altura, a língua portuguesa, tal como as demais línguas românicas, sofre um influxo de novas palavras latinas, algumas das quais passam a coexistir com formas antigas, como, por exemplo, é o caso da palavra portuguesa antiga ‘paço’ que passa a coexistir com a nova palavra ‘palácio’, ambas derivadas do latim ‘palatiu-’.
É difícil estabelecer até que ponto e desde quando é que as pessoas se tornaram conscientes da relação etimológica entre as palavras portuguesas e a sua origem etimológica, mas a partir do Português clássico, ‘escrever bem’ era usar o maior número possível de palavras de tom clássico e escrever as palavras portuguesas o mais próximo possível do étimo latino.
Tal como na Idade Média, nas idades moderna e contemporânea, não existia uma norma ortográfica fixa para a língua portuguesa, a diferença era que no Português clássico a representação dos sons da língua estava já bem estabelecida. Na Idade Média, por exemplo, escrevia-se ‘paço’ e ‘passo’ com duas grafias diferentes porque as duas palavras eram heterófonas, enquanto que, na época clássica, as duas palavras, que já se haviam tornado homófonas, continuavam a ser escritas de forma diferente, não por razões de natureza fonética, mas por questões semânticas e etimológicas e também porque, entretanto, uma certa tradição ortográfica se começara a impor.
Com o desenvolvimento da sociedade moderna, a escola, a universidade, as instituições do estado e as casas editoriais foram imprimindo à língua portuguesa escrita uma certa tradição ortográfica. Assim, a ortografia portuguesa foi encontrando a sua norma naturalmente baseada, sobretudo, nas melhores práticas de escritores, tais como Eça ou Camilo, ou na influência de instituições, tal como a Universidade de Coimbra. Esta tradição ortográfica caracterizava-se sobretudo pelo respeito pela fonética do português e pelo respeito, sempre que possível, da origem etimológica das palavras. Assim, uma palavra como ‘gramática’, que na Idade Média escrever-se-ia foneticamente como ‘gramatica’, a partir do século dezasseis, a grafia etimologizante ‘grammatica’ passa a ser considerada ‘correcta’. Foi assim que a primeira República encontrou a ortografia portuguesa quando em 1911 decidiu impor uma ortografia por via da lei.