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      InícioOpiniãoOrtografia (2): Quando as letras e os sons se desencontram

      Ortografia (2): Quando as letras e os sons se desencontram

      Alguém disse que ‘a língua portuguesa é muito traiçoeira’, e do ponto de vista ortográfico isso bem poderia ser considerado verdade. Todos nós que na escola primária tivemos de passar por aquele ‘exercício de tortura’ chamado ‘ditado’ sabemos bem como ‘èsses e cês, agás iniciais, entre outras especiosidades que tais, eram a matéria dos pesadelos que se seguiam ao Topo Gigio ou ao Vitinho e que, segundo a psicologia moderna, nos deixaram traumatizados para a vida inteira.

      A ortografia portuguesa não é fácil, não vale a pena tentar falsear a questão, e vários são os factores que contribuem para a relativa complexidade da escrita do Português, mas modificar o sistema ortográfico de modo a torná-lo mais ‘fácil’ nunca foi, pelo menos oficialmente, o intuito do acordo ortográfico de 1990 agora em vigor. No entanto, foi-se generalizando a ideia de que a eliminação do chamado ‘grafema mudo’, aquele ‘c’ que não se lê, de certas palavras faria com que a escrita se tornasse mais fácil. No entanto, qualquer reforma que torne o sistema menos lógico–uma imputação frequente contra este acordo–não simplifica o acto de escrever, pelo contrário, torna-o mais confuso e, como tal, mais susceptível ao erro.

      Um dos problemas da ortografia portuguesa, mesmo antes do acordo, é a deficiência do seu ensino sobretudo nas fases mais iniciais do processo educativo; práticas como escrever as palavras difíceis em casa para preparar o ‘ditado de amanhã’, entre outras formas de ‘treino’ ortográfico, foram consideradas traumatizantes para as criancinhas e como tal abandonadas.

       

      A falta de coincidência unívoca dos símbolos linguísticos

      O sistema ortográfico do português não só europeu, mas do português em geral, carrega consigo características que, de facto, tornam o processo de escrita numa tarefa algo complexa e que necessita de treino específico. A ideia de que as regras ortográficas do português são intuitivas é um dos problemas que a aprendizagem da língua escrita enfrenta e que é responsável por muitos dos erros ortográficos mais comuns. A ortografia portuguesa tem uma lógica interna e regras específicas que necessitam de ser, antes de mais, entendidas e interiorizadas desde cedo.

      A nossa ortografia é muito mais fonética do que a do francês ou do inglês. Nessas línguas, onde o elemento etimológico é muito mais preponderante do que no português, o processo de aprendizagem da língua pelas crianças é bem diferente e muito específico no caso do inglês. No Reino Unido, somente há alguns anos a esta parte é que se começou a introduzir nas escolas primárias um sistema misto de aprendizagem de leitura e escrita que incorpora uma componente fonética que até então não era utilizada. O nosso sistema de ‘b’ + ‘a’ = ‘ba’ não funciona no inglês já que a sua estrutura silábico-fonética é muito mais complexa do que a do português.

      Ainda assim, a etimologia desempenha um papel significativo no sistema ortográfico do português e é esse elemento etimológico que explica, em grande parte, a falta de univocidade entre as letras e os sons que estas representam.

      Na coluna anterior, vimos que o símbolo linguístico é ‘convencional’ e ‘arbitrário’, o que isto quer dizer em linguagem mais terra-a-terra, é que as letras que escrevemos têm o valor que têm porque nós assim o decidimos. Mas se assim é, por que é que o sistema ortográfico português permite que diferentes sons sejam escritos com a mesma letra e que o mesmo som seja representado por letras diferentes? Esta é uma das grandes, se não, a maior dificuldade da ortografia portuguesa. Vejamos dois exemplos de como isso funciona.

       

      A representação gráfica das vogais

      A falta de coincidência unívoca entre som e letra começa nas vogais. Em português, herdadas do Latim, temos cinco letras que representam os nossos sons vocálicos. No entanto, estas cinco letras, a, e, i, o, u, representam mais do que cinco sons, pois o português, sem contar com as vogais nasais, tem nove sons vocálicos.

      A letra ‘a’ pode representar dois sons, a saber: o ‘a’ aberto, como o primeiro ‘a’ no imperativo ‘pára’ e o ‘a’ fechado como os dois ‘a’s na preposição ‘para’. O mesmo acontece com as letras ‘e’ e ‘o’. A letra ‘e’ pode representar o ‘e’ aberto, como no pronome ‘ela’, o ‘e’ fechado como no substantivo ‘selo’ e ainda o ‘e’ mudo, que só existe em posição átona, como no particípio ‘selado’. A letra ‘e’ pode ainda actualizar o som ‘i’, como, por exemplo, na conjunção copulativa ‘e’ ou em palavras como ‘exame’. Por sua vez, a letra ‘o’ serve o ‘o’ aberto, como na palavra ‘soda’, o ‘o’ fechado como em ‘solha’ e, em posição átona, serve também o som ‘u’, como os dois ‘o’s na palavra ‘positivo’. As vogais ‘i’ e ‘u’ representam apenas os sons ‘i’ e ‘u’, ainda que em posição átona a letra ‘i’ possa representar o ‘e’ mudo como em ‘distinto’, que é homófono de ‘destinto’. Estas são aquilo que em linguística nós chamamos ‘vogais fonológicas’, ou seja, aquelas que os falantes conseguem distinguir.

      Estes exemplos mostram como, não só as cinco letras vogais representam nove sons distintos, mas também como o mesmo som pode ser representado por letras diferentes como é o caso do som ‘u’ que pode ser representado pelas letras ‘o’ e ‘u’ e o ‘e’ mudo que pode ser representado pelas letras ‘e’ e ‘i’.

      Esta situação deriva do facto que herdamos o nosso sistema de representação das vogais do Latim que também só tinha cinco letras para denotar dez sons vocálicos diferentes. O sistema latino evoluiu de forma diferente em todas as línguas românicas, por exemplo, o espanhol castelhano somente tem cinco vogais fonológicas, o italiano sete enquanto que o francês parisiense, sem contar com as vogais nasais, tem onze, duas mais que o português, embora em outros dialectos os sons vocálicos do francês cheguem a treze, todos representados por tão somente cinco letras.

      Para quem tem de escrever português, o facto de que nove sons diferentes são representados por apenas cinco letras e que alguns destes sons são representados por mais de uma letra pode ser confuso e é, de facto, a raiz de alguns dos erros ortográficos mais comuns, sobretudo nas fases iniciais da aprendizagem.

      Já no século dezasseis estavam conscientes deste problema. A ‘Grammatica da lingoagem portuguesa’, a primeira gramática do Português, publicada em 1536, pelo frade dominicano Fernão de Oliveira (1507-1581) faz menção não só deste problema, mas também de artifícios que na altura eram usados para contornar esta questão. Tanto a gramática de Fernão de Oliveira como a de João de Barros, esta última publicada em 1540, chamam as vogais abertas de ‘vogais grandes’ e as vogais fechadas de ‘vogais pequenas’, nomenclatura importada do Latim que tinha vogais ‘longas’ e ‘breves’. Fernão de Oliveira refere que ‘muitos em lugar destas vogaes grandes escrevem duas como quer que a voz não seja mais que hũa e outros põelhe aspiração mas tambẽ estes errão porque lha nam podem por em todos lugares’ ou seja uma das soluções usadas para marcar a diferença entre as vogais ‘pequenas’ e ‘grandes’ era ou duplicar as vogais ou acrescentar-lhes um ‘h’, letra que em português não tem som e que era usada no Latim para marcar a aspiração em palavras importadas do Grego, para marcar as vogais ‘grandes’, as nossas vogais ‘abertas’.

      Segundo Fernão de Oliveira, estas formas de diferenciação do grau de abertura das vogais eram ineficientes e este, por sua vez, propõe que para as vogais grandes se utilizem letras gregas, nomeadamente o ómega, o épsilon e o alfa para representar os ‘o’, ‘e’ e ‘a’ grandes ou abertos, respectivamente.

      Obviamente estas soluções nunca foram adoptadas, e não sabemos qual foi o real alcance das propostas do autor ou mesmo das soluções que ele critica no texto, mas o que impressiona aqui é o elevado grau de sofisticação que a primeira gramática escrita do português já revelava.

      À gramática de Fernão de Oliveira seguiu-se-lhe a ‘Grammatica da Lingua Portuguesa’ do historiador João de Barros (1496-1570) publicada em 1540. Ambas gramáticas são posteriores à ‘Grammatica Castellana’ do humanista espanhol António de Nebrija (1444-1522), publicada em 1492, que, não só foi a primeira gramática da língua espanhola, foi também a primeira gramática de uma língua românica vernácula. Aquando da sua apresentação, em Salamanca, à rainha Isabel, a Católica, cerca de dois meses antes da descoberta das Américas, esta indagou acerca da oportunidade e mérito de uma tal empresa. Na altura não existiam gramáticas e tratados senão da língua latina e o estudo da língua vulgar não era considerado como oportuno nem necessário.

       

      O caso das sibilantes surdas

      Também a representação dos sons consonânticos do Português sofre de uma falta de univocidade entre letras e sons semelhante à das vogais. Porque as consoantes são muitas e de natureza diversa, vamos ver aqui apenas o caso das sibilantes surdas do português como forma de ilustrar a questão.

      ‘Sibilantes’ é uma forma tradicional de nos referirmos aos sons ‘s’ e ‘z’. A sibilante na palavra ‘só’ é ‘surda’ e na palavra ‘zelo’ é ‘sonora’. A classificação de consoante ‘surda’ ou ‘sonora’ refere-se ao grau de vibração glótica, ou seja, se as cordas vocais estão abertas ou não quando passa o ar para a produção destes sons; se estão abertas a consoante é surda já que é produzida sem vibração glótica e a sonora, o contrário.

      As sibilantes ‘s’ e ‘z’ podem ser representadas de maneira diferente; o som ‘s’ pode ser representado pelas letras ‘s’, ‘ss’, ‘c’ e ‘ç’ dando origem assim a pares de palavras homófonas como o ‘passo’ de andar e o ‘paço’ do bispo ou o ‘concerto’ de música e o ‘conserto’ do carro ou a terminações homófonas em ‘-ão’ como em ‘abolição’, ‘aversão’ ‘admissão’ ou casos como ‘intercepção’ e ‘intercessão’. Outros casos de palavras heterógrafas mas homófonas existem com as letras ‘x’ e ‘ch’, ‘g’ e ‘j’, ‘c’ e ‘qu’.

      Estes ‘problemas’ de letras que representam mais do que um som e casos em que o mesmo som é representado por mais do que uma letra levam necessariamente a confusões no momento de escrever e, tal como no caso das vogais, são responsáveis por muitos dos erros ortográficos mais comuns.

      Se a escrita é, como nós dissemos, convencional e essa convenção é arbitrária porque não ajustar o sistema de modo a que cada letra represente somente um som e que cada som seja representado por apenas uma letra? Por que não fazer um ‘acordo ortográfico’ que implementasse uma reforma que tornasse totalmente unívoca a relação entre os sons da língua portuguesa e os símbolos ou letras que os representam?

      Tal como a língua portuguesa deriva do Latim, também o sistema ortográfico do português, nós herdámo-lo do Latim. A maioria das relações entre as letras e os sons que estas representam no nosso sistema de escrita já existia no Latim. No entanto, a evolução que leva o Latim coloquial tardio do ocidente ibérico a se tornar o Português moderno que hoje falamos, implica, entre outras coisas, também a evolução fonética da língua que leva à alteração de certos sons herdados do Latim e à introdução de novos sons que eram desconhecidos da língua mãe do Português. Esta evolução fonética que se opera por meio de uma alteração de sons antigos e da introdução de sons antes inexistentes tem de conduzir necessariamente a um recalibramento do sistema de representação escrita dos sons da língua.

      Para vermos um exemplo, em Latim apenas a letra ‘s/ss’ representava o som sibilante surdo da palavra ‘passo’ (do lat. ‘passu-’). No entanto, a sibilante do Latim era diferente da que usamos hoje em português padrão, era semelhante àquela que se pronuncia no interior de Portugal e que as pessoas normalmente associam à cidade de Viseu; diz-se de forma jocosa ‘falar à moda de Bijeu’. Essa sibilante, a de Viseu, pode ser descrita em termos tradicionais como sendo ‘chiada’.

      A evolução linguística do Português levou à aparição de uma nova sibilante surda não chiada, ou seja, igual à que se produz no litoral de Portugal hoje em dia. A nova sibilante resulta da evolução de grupos consonânticos para os quais era necessário encontrar uma nova forma de representação na escrita. Assim o ‘ç/c’ passou a representar o som ‘s’ da palavra ‘paço’ (do lat. ‘palatiu-’). A princípio, estas duas sibilantes, que tinham origens diferentes, soavam diferente, e como tal as palavras ‘passo’ e ‘paço’, que hoje são homófonas, então não o eram. Entretanto, um novo som aparece, o som sibilante palatal ‘ch’ que se escrevia com ‘x’, como na palavra ‘roxo’ (do lat. ‘russeu-’). [Na altura ‘ch’ representava apenas o som ‘tch’; ‘chuva’, do latim ‘pluvia’, até meados dos séculos XVI/XVII se pronunciava ‘tchuva’. Ainda hoje em regiões de Trás-os-Montes se ouve a pronúncia ‘tchuiba’, uma forma do português medieval, em pessoas de certa idade.]

      Assim, passaram a existir no Português três sons muito próximos, o ‘s’ chiado de ‘passo’, o ‘s’ não-chiado de ‘paço’ e o som palatal representado pelo ‘x’ em ‘roxo’. Como estes sons eram articulados muito próximos uns dos outros, o sistema teve de se simplificar e em vez de três sibilantes, passaram a existir apenas duas; a sibilante chiada de ‘passo’ e a não chiada de ‘paço’ fundiram-se numa só, no litoral e na zona meridional, na sibilante não chiada que se usa no português padrão moderno e, no interior e na zona setentrional, na sibilante chiada, dita de Viseu. A entrada em jogo da sibilante palatal força o sistema a se reajustar porque as três sibilantes eram articuladas muito próximas umas das outras o que dificultava a sua distinção. Assim se explica a sibilante chiada de certas partes de Portugal; essa sibilante, a tal de ‘Bijeu’ representa uma forma de pronúncia mais conservadora e herdada do Latim.

      Esta pequena explicação pode ser algo confusa à primeira vista, mas trata-se de uma híper-simplificação de um sistema de evoluções fonéticas muitíssimo mais complexo e que levou séculos a se desenvolver até adquirir a forma que tem hoje.

       

      Fonética e etimologia

      As palavras ‘passo’ e ‘paço’, usadas aqui como exemplo da evolução do sistema de escrita do português, mostram porque é que, em princípio, não podemos fazer uma reforma da ortografia que torne totalmente unívoca a relação entre os sons da língua e as letras que os representam na escrita. Estas duas palavras têm origens diferentes, significados diferentes e uma história também diferente. A palavra ‘paço’ passou por um longo processo evolutivo antes de chegar a se pronunciar como se pronuncia hoje. Já ‘passo’, em certas regiões de Portugal, soa hoje tal qual soava no tempo dos romanos a palavra latina ‘passus’ que lhe deu origem. A escrita diferenciada destas duas palavras é o único testemunho da sua origem, do seu significado e da sua história diferentes.

      Embora a ortografia portuguesa não seja tão etimológica como a francesa ou a inglesa, a tradição ortográfica do português sempre respeitou a origem etimológica das palavras. Desde o acordo ortográfico de 1911, que a ortografia portuguesa tem tentado encontrar e manter um equilíbrio entre a realidade fonética das palavras e a origem etimológica do léxico do português.

      No caso, por exemplo, das vogais, no passado houve formas de escrever que, imitando o Francês, usavam os acentos como instrumento para diferenciar as vogais segundo o seu grau de abertura. No entanto, isto fazia-se em detrimento da função primordial que os acentos têm de marcar a sílaba tónica. No Francês, o acento não necessita de marcar a tonicidade das sílabas porque o acento francês é fixo. Não é esse o caso do Português. Se quiséssemos de facto fazer uma reforma da ortografia que impusesse uma total univocidade de letras e sons como resolveríamos o problema das cinco letras vogais que representam nove sons?

      Teríamos de fazer algo semelhante àquilo que propôs Fernão de Oliveira na sua gramática, ou seja, acrescentar pelo menos três letras vogais ao nosso sistema. Isso não seria impossível e até poderia dar bons resultados, no entanto, quebraria com a tradição latina do nosso sistema de escrita que, aliás, está também relacionado com o das demais línguas românicas. A única língua românica que não obedece a esta tradição é o Romeno mas isso deve-se ao facto de que, até ao século dezanove, o romeno se escrevia com o alfabeto cirílico que tem muitos mais símbolos para vogais e consoantes. Somente quando os romenos se aperceberam de que a sua língua era românica é que modificaram o seu sistema de escrita e aí tiveram de “inventar” símbolos para as letras cirílicas que não têm correspondência no alfabeto latino. O Português, pelo contrário sempre fez uso do alfabeto latino e isso é a base mais essencial da escrita do Português. Uma tentativa de tornar o sistema de escrita do Português totalmente unívoco, hipótese que, aliás, esteve sobre a mesa aquando do acordo ortográfico de 1911, o primeiro na história da ortografia portuguesa, representaria uma quebra total e absoluta com a tradição ortográfica portuguesa que desde os seus documentos mais antigos se tem regido por dois princípios, o da representação fonética da língua falada e o respeito pela origem latina da língua como veremos, se Deus quiser, para a próxima.