No passado dia dezasseis de Dezembro fez 34 anos da assinatura do famoso, ou infame, dependendo de como cada um se posicione, acordo ortográfico, o qual, supostamente, traria uniformidade à língua portuguesa escrita em todas as suas variantes nacionais e faria com que os autores portugueses, os do nosso rectangulozinho, tivessem uma tal projecção internacional que acabariam todos tão famosos e, consequentemente se supõe, tão ricos que não teriam outra alternativa senão a de ir todos viver para Cascais em palacetes de mármore cor-de-rosa, imagina o autor deste texto! Se a coisa funcionou ou não, é discutível, mas que se saiba, a indústria do mármore ainda não sentiu nenhum benefício derivado desta globalizante concordata ortográfica.
Embora o acordo tenha sido assinado em 1990, somente em 2009 entrou oficialmente em vigor por força do decreto-lei nº 6583/2008, o que, por lógica, faria de alguns de nós foras-da-lei, membros de uma nova categoria de criminosos, os ‘criminosos linguísticos’, mesmo a precisar sentir a força do ‘braço secular’, como se dizia nos dias da ‘SANTA Inquisição’.
O primeiro acordo ortográfico da língua portuguesa data de 1911, e como tantas outras coisas das quais nós ainda hoje padecemos, é mais um dos ‘presentes envenenados’ da primeira pepública. A necessidade efectiva de um acordo ortográfico era então, tal como é hoje, algo assaz dependente de como nós vemos a relação entre os cidadãos e a sua língua, os cidadãos e o Estado, a língua nacional e o Estado; afinal, ‘quem (de)tém a tutela sobre a língua nacional?’ Apesar de não serem de respostas simples e, muito menos, consensuais, ainda assim, estas são questões sobre as quais vale a pena reflectir.
Começando pelo princípio, temos de, primeiro, tentar compreender o ‘conceito de ortografia’ para podermos ver até que ponto e dentro de que moldes esta se relaciona com os indivíduos falantes de uma determinada língua e com a mecânica do Estado onde essa mesma língua é falada.
Ortografia – étimo e significado
Ortografia é apenas mais uma das muitas palavras de origem grega que populam o vocabulário português, sobretudo o de carácter mais técnico. A palavra é composta por dois elementos, o primeiro ‘orto-’, do grego ‘orthos-’, quer dizer ‘recto ou correcto’, e o segundo deriva do verbo grego ‘grafein’ que significa ‘escrever’. Assim, a palavra ‘ortografia’ quer dizer ‘escrita correcta’.
O elemento grego ‘orthos-’, nós reconhecemo-lo também em palavras como ‘ortodoxo’, ‘ortodoxia’, ‘heterodoxo’, e afins. Estas palavras aparecem muito por aí sem que as pessoas saibam muito bem o que elas querem de facto dizer e, como tal, são muitas vezes mal utilizadas. A palavra ‘ortodoxia’ quer dizer ‘opinião correcta’. O segundo elemento da palavra deriva de ‘dóxa’, uma palavra grega que ‘mudou’ de significado no curso da sua história. Assim, em Homero ‘dóxa’ quer dizer ‘fama’, sobretudo a ‘fama do guerreiro’, em Platão, ‘dóxa’, que se refere a ‘opinião’ ou conhecimento obtido pela experiência, opõe-se a ‘episteme’, o ‘conhecimento verdadeiro e racional’ que melhor reflecte as ‘ideias hiperurânicas’, já, em Grego moderno, ‘dóxa’ quer dizer ‘glória’. A palavra ortodoxia, e seus derivados, é muitas vezes entendida como sinónima de ‘fundamentalismo’ ou ‘radicalismo ideológico’. Ainda que as posições ortodoxas de uns possam parecer radicais para outros, não é esse o verdadeiro sentido da palavra e o facto de que em determinados contextos, como por exemplo o contexto religioso, a palavra ‘ortodoxia’ necessite de ter o seu verdadeiro sentido reconhecido, faz com que a comunicação às vezes se arrevese e resulte em mal entendidos.
O outro elemento grego da palavra ortografia, ‘grafein’, está também presente na palavra ‘esferográfica’, nome de um instrumento que utilizamos todos os dias. A esferográfica ‘escreve’ com recurso a uma minúscula ‘esfera’ na ponta da caneta que distribui a tinta sobre o papel. Os espanhóis chamam-lhe ‘bolífrafo’, substituindo ‘esfera’ por ‘bola’, tal como no inglês ‘ballpoint-pen’. A palavra ‘caneta’ vem do latim ‘canna-’ ou seja ‘pequena cana’ herdada do instrumento de escrita usado na Antiguidade Clássica e na Idade Média.
De volta à ortografia, ‘escrever de forma correcta’ consiste, como a maioria de nós bem o sabe, em obedecer às regras da escrita de uma determinada língua, neste caso a nossa. ‘Mas o que é que isso implica em concreto?’ ‘O que é escrever correctamente e o que é que torna algo num ‘erro ortográfico’?’
A escrita e a sua correcteza
O título que introduz esta secção tem uma palavra que não existe; o vocábulo ‘correcteza’ não consta do léxico do português, ainda assim, a maior parte dos falantes do português consegue perceber o seu significado já que estão familiarizados com os seus elementos constitutivos, graças à sua competência linguística de falantes nativos. [Isto não quer dizer que esta palavra não possa ser encontrada, ainda que com uma grafia diferente, num dicionário brasileiro de sinónimos do português já que uma das características contrastivas do português brasileiro face ao europeu é a sua grande liberdade e plasticidade derivacionais, algo que torna ainda mais infrutífera qualquer tentativa de unificação linguística através de acordos ortográficos.]
Embora a palavra ‘correcteza’ não exista, está correctamente escrita, o que pode causar alguma surpresa, pois ‘como é que uma palavra que não existe pode estar correctamente escrita?’.
Quando falamos de correcção em termos ortográficos, o que está realmente em jogo é o que se quer dizer por ‘correcto’ ou ‘errado’. Antes do acordo de 1990 entrar em vigor em 2009, escrever ‘janeiro’ com letra minúscula estava errado, depois de 2009 já não. Em casos como este, ‘certo’ ou ‘errado’ corresponde ao obedecer ou não a ‘convenções arbitrárias’ que ‘alguém’ ou ‘alguma instituição’ determinou em ‘algum momento’. A palavra ‘correcteza’ está correctamente escrita porque obedece a esse conjunto de regras ou convenções vigentes. O domínio dessas regras permite que até palavras novas, muitas vezes referidas como ‘neologismos’, se possam escrever de forma ortograficamente correcta.
A Tipologia do ‘Errado’
Ao nível da ortografia, o ‘erro’ reside em não respeitar as convenções ortográficas vigentes. Num outro nível, uma frase como ‘a gente fomos ao café’ é do ponto de vista linguístico, senão mesmo correcta, pelo menos ‘não errada’. A linguística explica que num caso como este, ‘a gente’, que se refere a um plural semântico que inclui o sujeito, concorda com a primeira pessoa do plural do verbo por uma questão de lógica semântica ou, como se diz em linguística, ‘ad sensum’. No entanto, esta mesmíssima construção está errada do ‘ponto de vista gramatical’ porque a sintaxe do português ‘dita’ que a forma ‘a gente’ concorde gramaticalmente com a terceira pessoa do singular do verbo ainda que, do ponto de vista semântico, isso possa parecer incoerente. Aqui também as regras são convencionais, e, na medida em que podem desafiar, até certo ponto, a lógica, também arbitrárias. Este tipo de erros, quer ortográficos quer gramaticais, são de uma natureza completamente diferente de erros como ‘matar’ ou ‘roubar’ alguém, estes últimos não são erros convencionais nem arbitrários; amanhã ninguém pode decidir que matar ou roubar passam a ser acções correctas e aceitáveis. O erro gramatical e o erro ortográfico são de uma natureza completamente distinta do erro moral; o ‘erro moral’ é ditado por aquilo a que normalmente se denomina ‘Lei Natural’ que o Homem, através da sua capacidade racional, abstrai do mundo social em que vive, como bem o explica Cícero nas suas duas definições de Lei Natural. A justificação para que matar seja considerado errado deriva, mais do que do próprio acto, da natureza racional do Homem; para os animais matar não é errado, para muitos faz mesmo parte do seu modo de existir. Enquanto a correcteza moral deriva da Razão, a correcteza ortográfica deriva da ‘decisão’; são os falantes que decidem o que está certo ou errado de acordo com um conjunto de convenções que estes desenham, acordes com a sua vontade e não porque a Razão lhas imponha. [A questão da correcteza gramatical é um pouco mais complicada e, para já, podemo-la deixar de parte.] É neste contexto que se insere um acordo ortográfico. Este representa nada mais do que um acto ou momento de decisão sobre quais as regras que determinam a correcteza ortográfica de uma língua. Um acordo ortográfico é um tipo de ‘carta magna’ ou ‘constituição’ das convenções arbitrárias de como escrever uma certa língua. Os problemas relacionados com o acordo, como veremos no futuro, não derivam da falta de legitimidade do acordo ‘per se’. Acordos ortográficos são perfeitamente legítimos e muitas vezes necessários para regular e tornar estável a escrita de uma língua. Problemas que rodeiem certos acordos ortográficos têm que ver com o seu conteúdo e a legitimidade da instituição que os outorgam e a sua capacidade ou autoridade de os impor aos falantes da língua. Mas atenção que acordo ortográfico não é a origem das normas ortográficas; o primeiro acordo ortográfico do português data de 1911 enquanto que o primeiro documento escrito em português, o testamento de D. Afonso II, é de 1214 e já antes disso se escrevia em galaico-português como, por exemplo, nas ‘cantigas de amigo’ que todos nós bem conhecemos.
Para percebermos o valor do conteúdo do acordo ortográfico de 1990 e da legitimidade do seu outorgamento e imposição das suas normas temos primeiro de tentar perceber como é que a língua que falamos se relaciona com a língua que escrevemos.
A ortografia e o sistema de escrita
A convencionalidade da ortografia deriva directamente do carácter convencional da escrita que por sua vez começa na natureza convencional do próprio signo linguístico.
Nós já vimos nesta coluna que existem diferentes formas de escrever, a escrita ideográfica, usada pelo cuneiforme sumério na antiguidade ou pelo chinês nos nossos dias, a silábica utilizada pelo hindustani ou pelo árabe e os sistemas mistos como o Egípcio Antigo médio ou o Japonês moderno. Para além destes tipos existe aquele que serve a língua portuguesa e as demais línguas europeias modernas, o sistema alfabético, que se desenvolveu progressivamente desde o ideográfico até chegar ao sistema que nós temos hoje.
Estes distintos sistemas de escrita podem ser vistos como espectro que vai do menos ao mais fonético e vice -versa; num extremo temos os símbolos ideográficos ou caracteres e no outro extremo temos as letras do alfabeto que pretendem representar os sons individuais de uma determinada língua.
O símbolo ou signo linguístico é por natureza convencional seja qual for o sistema de escrita em jogo. Mesmo o sistema ideográfico está também determinado por este princípio da convencionalidade dos seus símbolos linguísticos, já que os caracteres ou hieróglifos não representam as coisas do mundo exactamente como elas são; não se tratam de desenhos. Mas mesmo se os caracteres fossem desenhos, ainda assim não existiria uma relação natural entre a ‘coisa do mundo’ e a forma de a retratar. Ao olhar para os hieróglifos egípcios uma pessoa poderia ser levada a pensar que aqueles ‘desenhos’ representam exactamente o que nós vemos, mas, de facto, não é assim e o sistema depende de um nível extraordinário de abstracção, o que permite que com apenas cerca de 700 símbolos, o Egípcio Antigo consiga dizer tudo o que quer dizer. Já os caracteres chineses, alguém que não saiba escrever chinês de todo, não consegue, de forma nenhuma, adivinhar o que os símbolos querem dizer tal é o nível de estilização que estes sofreram durante a sua longa história. Aliás, não faz muito tempo que os caracteres chineses sofreram uma nova etapa evolutiva com a simplificação levada a cabo no século passado. Essa simplificação reduz ainda mais o seu carácter “fotográfico” da ‘coisa’ descrita.
No caso dos sistemas mais fonéticos, a convencionalidade do signo linguístico não é em nada menor. Não existe nada na letra ‘d’ que a torne mais representativa do som que ela pretende representar do que, por exemplo, a letra ‘t’ ou a letra ‘b’, a não ser a convenção aceite implicitamente por todos os que aprenderam a escrever que ‘d’ representa esse som em particular. Se existisse uma relação natural entre a letra ‘d’ e o som que ela representa, então em todas as línguas onde esse som existisse ele teria de ser representado exactamente da mesma maneira, ou seja, a letra ‘d’, tal como nós a conhecemos, teria de ser usada no Árabe, no Hebraico, no Grego, no Birmanês, etc. A questão está na origem desta convenção, algo que se explica através do processo histórico. O facto de que não exista uma relação natural entre a letra ‘d’ e o som que ela representa e a letra ‘t’ e o som que esta última representa e que uma represente um e não o outro, e vice-versa, não só torna a relação entre o som e o signo que o representa uma relação convencional mas também arbitrária. Se a comunidade dos falantes que escrevem decidisse em uníssono que agora a letra ‘t’ passaria a representar o som até agora representado pela letra ‘d’, não existe nenhuma razão de tipo natural ou linguístico que impedisse essa resolução de se tornar vigente. Qualquer objecção seria de carácter histórico, tradicional, etc., ou seja, por questões sociais.
Num patamar mais alto, isto quer dizer que não existe nenhuma relação natural entre a língua que se fala e o sistema de escrita que se usa para denotar graficamente essa língua. A língua é completamente independente da escrita; pré-existe à escrita e não necessita dela para nada. A prova disso é que há milhões de pessoas à volta do mundo que são falantes nativos das suas respectivas línguas embora não as saibam escrever. De facto, há línguas no mundo que não têm sistemas de escrita; muitas línguas da antiguidade extinguiram-se sem nunca terem sido escritas. Um exemplo que nós conhecemos é a língua dos Medos, um povo que coabitava com os Persas a região que nós hoje chamamos de Irão. Nós sabemos que eles tinham uma língua própria, mas desapareceu sem deixar rasto porque quando escreviam, os Medos não escreviam na sua própria língua, mas na língua persa, a língua da classe dominante.
A escrita, ao contrário da ‘fala’, não é um acto natural, mas sim um acto humano e social e como tal convencional e dependente do acordo implícito da comunidade. As regras ortográficas, ou regras de como escrever a língua, são convenções arbitrárias que essa comunidade de falantes acorda em adoptar como algo representativo da língua que essa mesma comunidade fala.
Poucas comunidades começam a escrever do nada; normalmente a grafia de uma língua deriva de um processo histórico que, na maior parte das vezes, acompanha o evoluir da própria língua. Assim, o sistema de escrita e as suas convenções são na maior parte das vezes herdados e sujeitos a ajustes. Não há sistemas de escrita sem convenções ortográficas e normalmente as convenções vêm junto com o sistema que se herda ou se adopta.
No caso do português, e das demais línguas românicas, o sistema de escrita e as regras mais básicas da sua ortografia foram a princípio herdados do Latim. No entanto, o Português evoluiu e tornou-se numa língua independente e com características próprias e diferenciadoras das demais línguas que também herdaram do Latim o seu sistema de escrita. Esse processo evolutivo pelo qual todas as línguas passam necessariamente, levou a que o português desenvolvesse a sua própria ortografia e esse processo foi guiado por duas grandes linhas mestras, como veremos.
A evolução linguística, que nunca termina, implica um constante ajuste dos sistemas de escrita. Isto não acontece em todas as línguas, há línguas cujo fosso entre a escrita e a língua falada nas ruas é tal que se pode falar quase de um caso de ‘dicotomia linguística’, ou seja, de coexistência de duas línguas diferentes. Isso acontece, por exemplo, em muitas regiões do subcontinente indostano e também no Oriente Médio, onde o Árabe escrito é, muitas vezes, extraordinariamente distante do árabe falado no dia a dia pela população na rua. A escrita tem uma tendência para ser conservadora enquanto que a língua da rua é tudo menos conservadora. A evolução linguística acontece na rua, e não nas salas de aula ou nos salões das academias, o que conduz a que a escrita e a fala por vezes se desencontrem. Quando esse desencontro atinge níveis que começam a comprometer o acto comunicativo, é então necessário re-harmonizá-las e é aí que um acordo ortográfico encontra uma das suas razões de ser.
Uma das coisas que a evolução linguística causa é o dano das convenções ortográficas vigentes, que na maior parte dos casos conduz ao aumento da falta de ‘univocidade’ do signo linguístico, factor maior no desacordo entre a escrita e a fala, mas do carácter não-unívoco do signo linguístico, falaremos para a próxima, se Deus quiser.
[Uma nota final não relacionada com o tema dessa coluna. Na coluna de 27 de Dezembro, Saturnália (II) comecei por discutir o problema da dificuldade em estabelecer com exactidão a data da independência de Portugal. Na semana passada, o ‘Times’ da Índia publicou um pequeno artigo na sua secção de viagens sobre as ‘dez nações mais antigas do mundo’, e qual não foi o meu espanto ao encontrar entre o Egipto, a Etiópia, a Pérsia, entre outros, Portugal! A data da sua fundação, de acordo com o artigo, não era 1143, nem 1179, mas sim 1139, data em que depois da vitória de Ourique, D. Afonso Henriques começa a aparecer nos documentos intitulado ‘rei de Portugal’. O texto não dava o porquê da escolha desta data, dava apenas a data. Na verdade, o documento mais antigo que nós temos em que D. Afonso Henriques se intitula rei, não de Portugal, mas sim dos Portugueses, em latim, ‘rex portugaliensium’ data de 1139, mas alguns historiadores acreditam que o documento foi mal datado e que é de facto de 1140. Seja como for, é interessante ver como a história de Portugal é descrita por outros sobretudo num artigo, não de história, mas de turismo. O artigo descrevia Portugal nos seguintes termos: ‘Portugal was established in 1139 and is among the longest-standing European nations. It played an important role in global exploration.’ Nada de anticolonialismos rançosos!]