A 15 de Abril de 2019, por volta das sete menos um quarto da tarde, soa o segundo alarme de incêndio por causa de um fogo que havia deflagrado na estrutura que cobria o telhado da nave da Notre-Dame de Paris, que estava a ser limpo e restaurado. O primeiro alarme que levou à evacuação do edifício soou às seis e vinte, mas não foi tomado a sério pois o guarda que foi investigar o sucedido dirigiu-se à zona errada. Foram precisos cerca de quinze minutos para que se encontrasse o fogo, a essa altura as labaredas já se podiam ver desde fora do edifício. Os canais de televisão europeus pararam as suas emissões para mostrar em directo como as chamas ameaçavam engolir uma das mais famosas catedrais do mundo. Por volta das oito menos dez, a agulha neogótica forrada de chumbo, caiu sobre o telhado da catedral em frente do olhar estupefacto do mundo.
A catedral esteve mesmo em perigo de ruir totalmente. O fogo chegou à estrutura de madeira da torre norte que sustentava sinos pesadíssimos que, se caíssem, poderiam levar a própria torre a se desmoronar. Se a torre Norte desmoronasse, seguir-se-lhe-ia a torre Sul, e com ambas a fachada principal. A queda das duas torres e da fachada levaria à inevitável queda do tecto da nave central que traria consigo as paredes colaterais empurradas pelos contrafortes. Os contrafortes são estruturas exteriores às paredes laterais que fazem pressão para dentro de modo a que o peso do tecto abobadado não empurre as paredes para fora. A queda do tecto ogival que contrabalança a força dos contrafortes faria com que a pressão destes empurrasse as paredes para dentro e estas acabariam por cair arrastando também as naves colaterais. Assim, a catedral esteve a minutos da total destruição, não fosse o facto de os bombeiros terem sido capazes de apagar o fogo na torre sineira antes que o pior acontecesse. Este incêndio terrível não foi, no entanto, a única vez que a Notre-Dame esteve em perigo.
A Notre-Dame de Paris começou a ser construída em 1163, por ordem de Maurício de Sully, três anos após este ter substituído como bispo de Paris o escolástico Pedro Lombardo, o famosíssimo autor do livro das ‘Sentenças’, o grande manual medieval de teologia que só viria a ser substituído pela ‘Summa’ de São Tomás.
Na Páscoa de 1163, e na presença do Papa Alexandre III (1100-1181) que, de 1162 até 1165, viveu em Paris sob a protecção de Luís VII em virtude dos conflitos com o Sacro Romano Imperador, Francisco Barba-ruiva, que apoiava o antipapa Victor IV, é lançada a primeira pedra da catedral sobre os restos daquela que fora a igreja de Sant’ Étienne. No mesmo ano, durante o concílio de Tours, Alexandre III encontrar-se-á com Tomás Becket que lhe virá pedir a canonização de Sant’ Anselmo da Cantuária, o famoso proponente medieval do ‘argumento a priori’ para a existência de Deus.
A Notre-Dame levou quase duzentos anos a ser construída. As primeiras edificações da catedral reflectem já as inovações arquitectónicas introduzidas em São Dinis. A abadia de São Dinis, localizada na zona suburbana-Norte de Paris, que hoje mais se parece a um bairro do Paquistão ou do Afeganistão, é uma catedral basílica imponentíssima, apesar da perda de uma das suas torres que teve de ser desmantelada, e que funciona de panteão real. Aí se encontram enterrados todos os reis e rainhas de França desde Clovis I, rei dos francos, excepto os Napoleões, considerados usurpadores do trono francês.
As origens de São Dinis perdem-se no tempo, mas o edifício que hoje podemos ver, o começo da sua reconstrução data de 1137, quando o abade Suger (1081-1151) encomendou aos arquitectos Pero de Montrevil e Joan de Chelles a ampliação da estrutura original merovíngia. É durante a segunda fase dos trabalhos, entre 1140 e 1144, que pela primeira vez é introduzido o ‘arco de volta quebrada’, aquilo a que nós hoje chamamos ‘arco ogival’ ou simplesmente ‘ogiva’, o elemento mais essencial do estilo gótico.
Embora ainda na sua infância, o arco ogival é trazido para Notre-Dame o que fará desta igreja, se não a segunda, pelo menos uma das primeiras igrejas em estilo gótico. O aspecto ainda primitivo deste gótico faz-se notar sobretudo na estrutura pesada das arcadas da parte baixa da nave central. Os pilares que suportam as ogivas da primeira arcada bem poderiam ser de uma igreja românica. Os trabalhos de construção continuarão até 1345, quase duzentos anos em que a Notre-Dame não só viu evoluir como também participou como exemplo no processo evolutivo do estilo gótico. No final, a Notre-Dame de Paris viria a ser considerada uma das jóias do estilo gótico medieval.
O altar-mor foi consagrado em 1189, e em 1239, o rei Luís IX, ou São Luís, como também é conhecido, trouxe para a catedral a relíquia da ‘Coroa de Espinhos’, a mesma que, apesar dos grandes riscos que correram, foi salva pelos bombeiros durante o fogo de 2019.
Durante os séculos que se seguiram é sobretudo a decoração do interior que se vai implementar de acordo com os vários estilos em voga. No século dezanove, a catedral estava em muito mal estado, e existia mesmo a preocupação que pudesse vir a ruir. Entre 1844 e 1864, os arquitectos Jean-Baptiste Lassus e Eugène Viollet-le-Duc levaram a cabo não só trabalhos de revitalização da estrutura, mas acrescentaram também elementos da ‘moda’ neogótica da época.
Uma das adições do século dezanove foi a agulha que todos nós assistimos a se desfazer em chamas naquele fatídico fim de tarde. Essa agulha foi colocada em substituição da agulha original que foi construída entre 1220 e 1230 e cuja deterioração levou a que, por volta de 1792, o que ainda restava da agulha medieval fosse removido. Existem fotografias da Notre-Dame antes da reintrodução da agulha pelo arquitecto Eugène Viollet-le-Duc em 1859.
Na Idade Média, as agulhas altas das igrejas tinham uma função pragmática, a de ajudar à localização das povoações. Ao poderem ser vistas à distância, por cima das copas das árvores, graças à sua altura, ajudavam os viajantes a se orientarem. Funcionavam um pouco como o Grand-Lisboa em Macau; se uma pessoa se perde, basta procurar no horizonte aquela torre em forma de ananás dourado para saber como voltar para casa.
Outra adição feita no mesmo processo de restauro é a das ‘falsas’ gárgulas. Até às imagens da queda da agulha em chamas que se tornaram emblemáticas do incêndio de 2019, estas gárgulas eram provavelmente o elemento da Notre-Dame mais conhecido na cultura popular, tendo mesmo aparecido em animações da Disney e filmes de Hollywood que versam sobre o famoso ‘corcunda de Notre-Dame’. Este é uma personagem do romance de Victor Hugo (1802-1885) de 1831 intitulado ‘Notre-Dame de Paris’ onde o autor se queixa do mau estado de conservação em que se encontrava este templo medieval. O sucesso deste romance, que dedica partes do texto à descrição da catedral, teve um papel relevante na decisão de restaurar a catedral parisiense e de a limpar dos elementos não góticos que se foram acumulando com o passar dos séculos.
Gárgulas são meios de escoamento da água da chuva dos telhados e dos pátios superiores das catedrais e de outras construções medievais; são o equivalente às calhas dos nossos telhados. As gárgulas de Notre-Dame sempre existiram e eram decoradas de acordo com a estética do gótico medieval, com animais, caras de monges, anjos, etc. Na restauração do século dezanove, foram introduzidas certas figuras grotescas ou mesmo monstruosas que são, a maior parte das vezes, descritas como gárgulas, mas que em rigor não o são. Tratam-se de estátuas sentadas em esquinas dos telhados ou no cimo das torres. Estas estátuas não seguem o estilo medieval das gárgulas, pelo contrário obedecem aos cânones artísticos do ultra-romantismo do século dezanove, estética responsável por obras literárias como o ‘Drácula’ de Bram Stoker, ou o próprio ‘Notre-Dame de Paris’ de Victor Hugo. Este tipo de literatura começou mais cedo nas ilhas britânicas onde adoptou o nome de ‘gothic novel’, isto é ‘romance gótico’. Estas estátuas estão mais de acordo com o que podemos encontrar nesses romances e novelas do que algo oriundo da Idade Média. São o resultado de um revivalismo artístico de elementos medievais filtrados pela imaginação fantástica e supersticiosa típica do século XIX. Há, no entanto, quem considere que este acrescento é legítimo porque adiciona algo da época em que se fez a restauração. Um caso mais ou menos paralelo é o da restauração do pórtico lateral da catedral de Salamanca. Na altura em que o pórtico em estilo plateresco foi restaurado, para comemorar a chegada do Homem à lua, feito que ocorrera na mesma altura, o escultor decidiu incluir entre os motivos florais medievais a escultura de um astronauta, o famoso ‘astronauta da catedral’. Este, coitado, já precisa de restauro porque os turistas não se coíbem de o tocar com as mãos (mais sorte tem o cão que está a comer um gelado do outro lado do pórtico).
Aquando da Revolução Francesa, responsável, para além da morte de milhares de inocentes, pela destruição massiva de obras de arte, pensou-se destruir a catedral de Notre-Dame, símbolo inegável do antigo regime. No entanto, como a solidez e o tamanho da estrutura faziam disso uma empresa demasiado difícil de se levar a cabo no meio de toda aquela confusão, depois de derretido todo o metal que existia na catedral, depois da vandalização e destruição das pinturas murais e da estatuária, a catedral foi declarada oficialmente o ‘templo do ente supremo’, a “divindade” da maçonaria e dos revolucionários.
Um exemplo do vandalismo que a Notre-Dame sofreu então, foi o caso da mutilação das vinte e oito estátuas dos reis de Judá que encabeçavam a fachada principal. Como todos os símbolos de realeza tinham de ser destruídos, estas estátuas foram decapitadas. As cabeças danificadas por caírem da fachada abaixo ficaram amontoadas durante três anos numa rua nas imediações da catedral à espera de serem usadas como blocos de construção. Mas como na altura a moda era destruir e não construir, em 1796 um advogado parisiense católico, Jean-Baptiste Lakanal, conseguiu comprar as cabeças e enterrou-as para evitar que estas se perdessem para sempre. Com a sua morte, no entanto, a localização das cabeças perdeu-se. Em 1977, foram reencontradas por acaso numas obras e levadas para o museu de parisiense Cluny onde hoje estas vítimas inanimadas do desvario revolucionário se deixam contemplar. Mas o desejo selvagem de vingança que animava a Revolução Francesa não se ficou por decapitar somente estatuas de reis e rainhas.
Para comemorar a tomada do Palácio das Tulherias, residência oficial de Luís XVI e da família real, em Agosto de 1793, na mesma altura em que decidiram deitar fogo a Notre-Dame–o que nunca veio a acontecer–um membro da Convenção Nacional, o principal órgão da ‘Primeira República Francesa’, decidiu decretar a profanação dos túmulos dos reis e das rainhas de França na abadia de São Dinis. Nesse mesmo mês, três túmulos foram profanados, entre eles o de Pepino, o Breve, filho de Carlos Martel e pai de Carlos Magno, dois heróis nacionais franceses. Entre 12 de Outubro de 1793 e 18 de Janeiro de 1794, mais de cinquenta túmulos reais foram profanados e os corpos decapitados e atirados a uma vala comum. Estes corpos voltariam aos seus túmulos, primeiro por ordem Napoleão Bonaparte, em 1805 e depois, em 1817, por Luís XVIII. Identificar os corpos decapitados e restaurá-los aos seus lugares originais de repouso não foi tarefa fácil. A cabeça de Henrique IV (1553-1610), marido de Maria de Medici, pai de Luís XIII e avô de Luís XIV, o Rei-Sol, só foi encontrada e reenterrada junto ao seu corpo em 2008, depois de muitos testes de ADN.
Em 1871, já depois do restauro do século dezanove, a Notre-Dame esteve outra vez em perigo. Desta vez, os ‘communards’ tentaram deitar fogo à catedral mas, graças a Deus, não conseguiram. Os ‘communards’ foram um grupo de soldados insurgentes da guarda nacional francesa que, revoltosos, tentaram tomar o poder entre Março e Maio de 1871 em consequência da derrota da França na Guerra Franco-Prussiana de 1870-71, na qual a França ao capitular perdeu os territórios da Alsácia-Lorena para a Prússia de Bismarck. Estes revoltosos chamavam ao governo que tentaram impor ‘a comuna de Paris’, daí o nome de ‘communards’. Em pouco mais de dois meses, na sua sanha raivosa, semearam o terror por toda a cidade de Paris chegando mesmo a matar o seu arcebispo, dezenas de padres e membros das forças de segurança que lhes faziam frente. Embora não tenham conseguido incendiar a Notre-Dame como queriam, infelizmente foram mais bem-sucedidos na empresa de queimar o palácio real das Tulherias onde se perderam para sempre inúmeros tesouros artísticos. Friedrich Engels, o companheiro ideológico de Karl Marx, descreveu a ‘comuna de Paris’ como o primeiro exemplo de uma ‘ditadura do proletariado’.
O incêndio de 2019, foi sem dúvida o momento em que a Notre-Dame esteve mais perto da sua destruição. Uma vez extinto o incêndio e reforçada a estrutura, um novo perigo se levantava no horizonte, o das ideias peregrinas! Várias foram as propostas para modernizar a velha catedral, algumas, pelo menos no papel, eram interessantíssimas. No entanto, todas elas tinham uma coisa em comum, a de desvitalizar a Notre-Dame como local de culto religioso. Desde telhados de vidro a jardins suspensos, todos viram aqui a oportunidade de transformar a velha igreja medieval em mais uma atracção turística–o que ela já é–totalmente esvaziada da sua essência religiosa e do seu significado histórico, intenção em nada diferente das da Revolução Francesa ou das dos ‘communards’.
O que terá ajudado a salvar a Notre-Dame desta última ameaça, foram os milhares de euros que ainda o fogo não estava totalmente apagado começaram a ser doados e prometidos para sua ‘reconstrução’. Com esse dinheiro vinha a condição silente mas implícita de que a Notre-Dame era para continuar a ser ‘A’ Notre-Dame e não mais uma esplanada para turistas tirarem fotografias dos telhados de Paris.
Cinco anos mais tarde, depois de um esforço quase titânico de restauro respeitando o mais possível as técnicas antigas de construção, a catedral está finalmente pronta e reabrirá ao culto e também aos turistas no próximo Domingo, dia de Nossa Senhora da Conceição. Na cerimónia religiosa de (re)inauguração, estarão presentes Emmanuel Macron e Donald Trump. Seria esperar demasiado que a majestade imponente da Notre-Dame de Paris, qual Fénix renascida das suas cinzas, provocasse qualquer impacto no espírito destas duas criaturas movidas tão somente pela sua imensurável vaidade pessoal, e que, uma vez cingidos pela imensidão desta velha construção de pedra que se recusa à ruína, eles se apercebessem do seu verdadeiro tamanho.
Roberto Ceolin
MA (Conim.) MPhil, DPhil (Oxon.)
Docente Universitário de Línguas Antigas