Há cerca de doze mil anos, o Homem teve uma ideia radical ‘por que não inventar um sistema de irrigação?’. Esta pequena ideia que para nós no mundo da inteligência artificial, mísseis supersónicos e pessoas que começam a fazer turismo no espaço, parece insignificante, foi o grande invento que permitiu o nascimento da civilização. Até então o homem era nómada, andava de um lado para o outro à procura da comida que a Natureza ‘espontaneamente’ lhe proporcionava e de pastagens para os animais que o acompanhavam neste seu errar constante. O homem estava então à mercê da Natureza e dos seus ‘caprichos’, como sejam a mudança das estações e os fenómenos climáticos que faziam com que, de repente, a comida desaparecesse. Ser capaz de irrigar os seus campos, sempre que necessário, permitiu-lhe o desenvolvimento da agricultura e o assentamento permanente num determinado lugar.
O problema da dificuldade de encontrar alimentos que os povos nómadas enfrenta(va)m ficou cristalizado num mito bíblico, o mito do ‘maná do deserto’. O povo hebreu, depois de deixar a terra fértil do Egipto, vagueou por quarenta anos no deserto do Sinai e, como encontrar comida não era tarefa fácil, Deus providenciou-lhes o maná, um alimento que literalmente ‘caía do céu’. Ainda que os ‘factos’ deste mito bíblico ter-se-iam supostamente passado já depois da sedentarização dos povos do Oriente Médio, eles dão testemunho das antigas dificuldades que ficaram cristalizadas na memória colectiva dos povos que viviam em zonas desérticas, sobretudo da Península Arábica.
A criação de meios de irrigação permitiu ao homem tornar-se sedentário o que levou ao seu agrupamento e ao aparecimento de comunidades que viriam a dar as primeiras cidades. O conglomerado populacional de Jericó, considerada a primeira cidade do mundo, terá começado a surgir por volta de 9500 a.C. As cidades sumérias de Eridu, Uruk, e Ur, esta última de onde seria oriunda a personagem bíblica Abraão, ter-se-lhe-iam seguido com os primeiros assentamentos arqueológicos a serem datados de cerca de 7500 a.C. Isto aconteceu na zona do Crescente Fértil, entre os rios Tigre e Eufrates, na zona onde hoje ficam o Iraque, a Jordânia e a Síria. Também no Egipto conglomerados populacionais deram origem a cidades mas o Egipto, à diferença da Mesopotâmia, tornou-se um Estado centralizado desde muito cedo, ainda que a principio dividido em dois, Alto e Baixo Egipto. Mais tarde, em outras partes do mundo, este processo viria a ser repetido, mas foi no Crescente Fértil e no Egipto que tudo começou; foi aí que nasceu a civilização.
A partir do momento em que o homem deixa de lutar contra a Natureza para conseguir sobreviver, o assentamento num determinado lugar em grupos organizados, que vão mais além da família ou do clã, leva ao aparecimento do que nós hoje chamamos ‘sociedade’, ainda que numa forma incipiente. O passo seguinte foi o crescimento e desenvolvimento desses primeiros exemplos de sociedade e a sua inevitável hierarquização. A hierarquização da sociedade, ao contrário do que se ouve por aí, deriva espontaneamente da vida em comunidade; até os animais que vivem em grupo desenvolvem certas formas de hierarquia. Os vários membros de uma mesma comunidade são colocados em distintas posições na escala social dependendo do seu valor pessoal que por sua vez deriva das suas capacidades e das tarefas que são capazes de levar a cabo.
No mundo onde o homem era nómada e recolector, a força bruta era a arma do poder, o mais forte mandava. Em sociedade, pelo contrário, já não é o músculo que determina quem manda mas a aptidão que trará consigo a influência sobre os demais e o poder económico. A hierarquia na sociedade recolectora primitiva era determinada pela posição na árvore genealógica do clã mas em sociedade a hierarquia é determinada por factores outros que a consanguinidade; à frente da sociedade estão os homens ‘melhores’, os mais aptos (pelo menos a princípio).
Já não preocupado apenas com sobreviver, o Homem é confrontado com o desassossego que a sua natureza racional lhe inflige e começa assim a se dedicar ao não-imediatamente-necessário, ao não-pragmático. Assim nascem a literatura, a poesia, a música, a arquitectura, a escultura, a pintura e outras formas daquilo a que nós hoje chamamos ‘Arte’ ainda que o Homem não visse estas realidades como nós as entendemos hoje–‘ars gratia artis’–estas eram, no entanto, actividades das quais a sua sobrevivência material não dependia imediatamente. Ao mesmo tempo, começa também a (ter tempo para) indagar acerca da sua própria natureza e do seu destino, o significado da sua vida neste mundo e o sentido da morte. Assim, aparecem as primeiras considerações teológico-mitológicas que levarão ao desenvolvimento de práticas religiosas que necessariamente desembocarão na criação da religião organizada, em muitos casos da religião do Estado, ou neste caso, da ‘Cidade’, a qual todos os cidadãos estariam obrigados a seguir.
O génio criativo do homem e a sua tendência para o sobrenatural ou metafísico vêm de longe. Dão testemunho disso mesmo as pinturas rupestres que o Homem primitivo pinta nas paredes das suas cavernas. Em muitas destas pinturas foram encontradas as marcas de palmas de mãos humanas impressas em tinta sobre os animais como se de um ‘acto mágico’ para trazer sorte na caça se tratasse.
Para trás ficaram os dias em que as principais preocupações eram encontrar o que comer e não ser comido por animais selvagens. A vida sedentária e em comunidade leva o homem a se confrontar com um problema novo, o de ‘viver com outros homens’. Para viver em comunidade são necessárias regras adequadas ao nível de complexidade que a vida em sociedades hierarquizadas exige; assim nascem as leis.
A ideia que a escrita apareceu porque os pastores tinham de contar quantas cabras voltavam para o estábulo no fim do dia ou quantas medidas de cereais ainda existiam armazenadas nos silos é absurda. O aparecimento, ou melhor, a invenção da escrita deriva do nível de sofisticação que estas sociedades atingiram. Agora que o homem já não corre o perigo de ser o almoço de um qualquer animal da selva, o que acontece ao Homem depois da sua morte passa a ser uma preocupação colectiva que ditará como a comunidade se comporta em relação ao problema da morte. Assim surgem as várias formas de dar sepultura aos mortos com os seus respectivos rituais.
A escrita desenvolveu-se a partir da decoração de vasos e outros artefactos normalmente ligados à actividade religiosa no âmbito fúnebre. É, aliás, nesse contexto que os primeiros ‘hieróglifos’, na sua forma mais primitiva, foram encontrados na cidade de Ábidus, uma das cidades mais antigas do Egipto. Ainda no período pré-dinástico, entre 3500 e 3200 a.C., foram encontrados nos túmulos de Ábidus os primeiros testemunhos de proto-escrita, nomeadamente, pequenas ‘etiquetas’ de barro com símbolos já bastante semelhantes aos hieróglifos egípcios que nós conhecemos. Estes símbolos pretendiam dizer algo acerca do morto, provavelmente informação que seria necessária ‘do outro lado’. ‘Etiquetas’ semelhantes foram encontradas em Uruk, na Suméria, mais ou menos na mesma época. Apesar desta coincidência, hoje em dia, a ‘communis opinio’ é que a escrita Suméria e a Egípcia apareceram e se desenvolveram independentemente. [Nós chamamos estes pequenos pedaços de barro de ‘etiquetas’ porque elas tinham um orifício por onde um cordel teria passado permitindo assim que elas fossem unidas ao objecto a que se referiam.]
Assim, a escrita aparece ligada aos dois elementos que derivam e que determinam a complexidade da sociedade humana, a religião e a arte. Os vasos fúnebres encontrados nas tumbas egípcias primitivas eram decorados com motivos que, mais do que os embelezar, pretendiam passar informação sobre o estatuto social do defunto para que este fosse reconhecido e respeitado também no outro mundo. Isto é outra característica da sofisticação que o pensamento do homem adquire, começa a imaginar a vida para além daquilo que conhece pela experiência.
Hoje em dia, para muita gente, a religião não representa uma forma sofisticada de pensamento, muito pelo contrário. No entanto, o pensamento mítico-religioso é demonstrativo de um pensamento sofisticado, primeiro, porque deriva de perguntas a que o homem não consegue responder, mas ainda assim pergunta, e, segundo, porque as respostas que produz pressupõem um certo nível de abstracção da realidade material que o rodeia. Animais irracionais não conseguem pensar os deuses. ‘A questão teológica’, como lhe chama Kant, é, como o mesmo Kant explica, um ‘constructo da razão’, ora para se ‘construir algo por meio da razão’ primeiro é necessário ser-se racional. A religião e o pensamento metafísico, que hoje são tão menosprezados, assinalam um avanço importante na história do pensamento humano pois demarcam o momento em que o Homem deixa de olhar apenas para o mundo que conhece e começa a imaginar um mundo que não vê onde encontra explicações para as dúvidas que tem acerca do seu mundo e para as quais o mundo parece não ter resposta.
A escrita vai determinar em muito a evolução das formas de comunicação. O texto escrito passa a ter precedência sobre o texto oral, por exemplo, as leis passam a ter de ser escritas para serem válidas. A escrita obedecerá a regras que a comunicação oral desconhece, como no caso do texto poético. Isto não quer dizer que a poesia não existisse anteriormente à escrita. Na verdade, nós sabemos que a poesia é anterior ao texto escrito porque é graças a esta que muitos dos mitos, motivos e histórias que existiam antes da invenção da escrita se conservaram até ao momento em que puderam ser postos por escrito. Isto porque a poesia facilita a memorização de grandes extensões de texto. A Odisseia, a Ilíada ou o Rigveda, que são poemas extensíssimos, existiram durante séculos somente em forma oral antes de serem postos por escrito. Ainda hoje a rima é utilizada para ajudar à memorização.
Desde cedo que a escrita adopta formas que a tornam mais nobre do que o discurso oral. No caso egípcio, a própria forma monumental e decorativa que a escrita hieroglífica adopta demonstram o valor que se lhe atribuía. Outra mostra é o uso de técnicas próprias do texto poético para escrever leis, como é o caso do famosíssimo Código Hamurábi, o mais antigo código legal do mundo. Este código babilónico de cerca de 1750 a.C. foi escrito, pelo menos em parte, utilizando recursos poéticos que indicam o estatuto que o texto tinha. Um texto desta importância não podia ser escrito na mesma linguagem que se utiliza no dia a dia na rua.
O mais antigo poema ficcional do mundo é o poema egípcio ‘Estória do Marinheiro Náufrago’ escrito em hierático por volta de 2500 a.C., ou seja, há quatro mil e quinhentos anos atrás. Mais ou menos da mesma época é o famosíssimo ‘Poema de Gilgamesh’. Este poema épico acádio escrito no segundo milénio a.C. é o poema épico ou heróico mais antigo que conhecemos e que terá influenciado a composição da Ilíada e da Odisseia.
Se a escrita surge em consequência da sofisticação alcançada pela vida em sociedade e não por meras questões práticas como contar cabeças de gado, a verdade é que a passagem do sistema ideográfico, como o cuneiforme ou o hieroglífico-hierático, para um sistema fonético de escrita, como são os sistemas alfabéticos que nós usamos hoje, é motivado por questões práticas como seja a necessidade de aumentar e diversificar o número de pessoas que sabiam escrever e ampliar as áreas cobertas pela escrita, para incluir novas áreas de interesse como, por exemplo, o comércio.
O carácter extremamente complexo da escrita ideográfica concentrava a capacidade de escrever nas mãos de determinadas classes sociais, sobretudo da casta sacerdotal e dos funcionários do Estado. A escrita era então totalmente desconhecida do povo comum, mesmo daqueles que gozavam de alguma prosperidade económica.
Com o tempo, até mesmo para as classes que detinham o poder e sabiam escrever, a ideia de um sistema de escrita mais simplificado tornou-se apelativa. Nós sabemos isso porque, à medida que o tempo vai passando, a escrita ideográfica vai experimentando e desenvolvendo formas cada vez mais fonéticas. A certo ponto, as escritas ideográficas do Médio Oriente começaram a ser semelhantes ao que hoje se usa no Japão ou na Coreia, ou seja, um sistema mais ou menos misto composto por símbolos fonéticos e ideográficos, em que os ideogramas podiam ser substituídos por palavras escritas com símbolos fonéticos.
O processo de simplificação da escrita é difícil, senão impossível, de reconstruir mas terá sido um processo evolutivo e gradual, o que faz com que o aparecimento de uma escrita exclusivamente fonética não seja um facto ‘ab nihilo’. Assim sendo, numa determinada altura, uma vintena ou trintena de hieróglifos egípcios foram adoptados como letras de um sistema totalmente fonético. Estes hieróglifos eram já usados na escrita egípcia como símbolos fonéticos, a diferença aqui é que todos os outros símbolos são descartados como sendo supérfluos. Para escrever bastam apenas os símbolos que denotam estes vinte e poucos sons com os quais se podiam escrever todas as palavras. Assim nasce a escrita fonética.
Os sistemas fonéticos de escrita dividem-se em sistemas silábicos e sistemas alfabéticos. Na escrita silábica, como o próprio nome indica, as letras representam sílabas e não sons individuais. Os silabários podem incluir as vogais, os chamados silabários ‘abugida’, como a escrita etíope ou as escrituras da península indostana e indochina ou escrever apenas as consoantes, os chamados silabários ‘abjad’, como por exemplo o do árabe, do hebraico moderno, do siríaco ou do aramaico.
As escrituras alfabéticas como a grega ou a latina, das quais a maior parte dos sistemas alfabéticos derivam, resultam de um aperfeiçoamento do silabário ‘abjad’ do fenício. O Grego aproveitou as letras de sons que o grego não tinha para criar os símbolos para as vogais. Vejamos a vogal ‘a’ como exemplo; o ‘alif’ ou ‘alef’ das línguas semíticas, como por exemplo o fenício, do qual o grego importou o seu sistema de escrita, correspondia a um som faríngeo que o grego não tinha. Este som faríngeo era produzido na parte baixa da garganta e, ao ouvido dos gregos, soava algo semelhante ao seu som ‘a’. Assim o grego adoptou a letra ‘alef’ para o som ‘a’ e deu-lhe o nome grego de ‘alfa’. Deste modo nasceu o ‘a’ dos gregos e o nosso também. Esta letra descende de um hieróglifo que era a cabeça de um boi. As “pernas” do nosso A maiúsculo (a diferença entre maiúsculas e minúsculas é medieval; as maiúsculas representam as formas originais das letras latinas e gregas) são os restos dos chifres do boi do hieróglifo egípcio. Originalmente no alfabeto fenício o ‘alef’ ou ‘alfa’ era escrito deitado com as pernas para a esquerda, ou seja, com os chifres atrás da cabeça do boi. O Grego adapta letras de sons semitas que não tinha para criar letras para as vogais que o silabário fenício não tinha; assim nasce a escrita alfabética, a que nós usamos hoje.
Em egípcio antigo a palavra para casa era ‘per’ e o símbolo ou carácter era um rectângulo deitado com uma abertura por baixo. Era basicamente o desenho de uma casa egípcia. As casas egípcias não tinham telhado porque no Egipto não chove, só junto à costa e mesmo assim muito pouco. Em vez do telhado, as casas tinham um terraço que servia para secar fruta, carne, etc. [Na imagem que acompanha este artigo podemos ver o hieróglifo para a palavra ‘casa’; é o quarto a contar de cima na coluna à direita. Para que seja mais fácil identificá-lo, à sua volta está uma linha que o isola dos demais.]
Este símbolo foi importado pela escrita proto-sinaítica e depois levado para a região da Palestina onde a palavra para casa é ‘bait’ ou ‘bet’, ou seja, a palavra para casa começa pelo som ‘b’; assim, o símbolo egípcio de casa passou a representar o som ‘b’. Com o passar do tempo a forma dos símbolos evoluiu especialmente porque eles já não estavam associados a uma coisa específica, mas a um som. No seu processo evolutivo, este símbolo posto de pé com a abertura para a esquerda veio a dar a letra ‘b’ do Hebraico e do Aramaico; ainda de pé mas virado para a direita e com uma modificação da abertura, deu o ‘beta’ do Grego e o ‘bê’ do Latim, o nosso ‘bê’. No alfabeto nabateu da Península Arábica também representa o som ‘b’ mas deitado com a abertura para cima e, uma vez arredondada as arestas, deu o ‘bá’ do alfabeto árabe.
Quem diria que as nossas letrinhas são netas daqueles desenhos artísticos, elaboradíssimos e multicolores que nos maravilham quando visitamos as pirâmides de Gizé ou os túmulos dos faraós no Vale dos Reis e das Rainhas? Mas como vimos, uma linha contínua pode-se traçar entre aqueles pedacinhos de barro com desenhos que se encontraram no túmulo de Escorpião I, o primeiro rei do Alto-Egipto e as teclas digitais do nosso telemóvel.
Roberto Ceolin
MA (Conim.) MPhil, DPhil (Oxon.)
Docente Universitário de Línguas Antigas