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      InícioOpiniãoSaber Escrever: Quando as Palavras São Desenhos

      Saber Escrever: Quando as Palavras São Desenhos

      O acto de escrever é tão essencial ao homem que se faz quase impossível concebermos a vida sem sermos capazes de escrever mas a verdade é que, pelo menos, até à segunda metade do século passado a maioria das pessoas no planeta Terra não sabia nem ler nem escrever. Mesmo em Portugal, um país da Europa ocidental, ainda que a precisão das estatísticas possa ser discutível, em 1910, altura da implantação da república, mais de metade da população portuguesa era analfabeta.

      Nos países da Europa central e do Norte, os níveis de analfabetismo eram muito mais baixos do que no Sul. Isto deve-se, pelo menos em parte, à Reforma protestante para a qual o analfabetismo representava um problema. Visto que o princípio da ‘sola scriptura’, em que se alicerçava o movimento da Reforma, implicava que todos os seus aderentes, independentemente do seu estatuto social e até do sexo, tinham de ser capazes de ler a Bíblia, a alfabetização começou a ser vista como um dever religioso. Mais tarde, no entanto, o abandono do campo e a sequente migração para os centros urbanos causados pela Revolução Industrial aumentou consideravelmente os níveis do analfabetismo que a Reforma ajudara a combater dois séculos antes. Isto deu-se sobretudo na Inglaterra onde a pobreza nos bairros suburbanos, que alimentavam de mão de obra as fábricas da indústria pesada que impulsionava o império britânico, aumentou significativamente. O analfabetismo está directamente associado à estrutura socio-económica das sociedades e deriva sobretudo de situações de pobreza e de exclusão social.

      Hoje em dia, na Europa e na América do Norte, o analfabetismo é residual representando apenas 1,56% e 1,36% da população respectivamente. A África subsaariana continua a ser a região do mundo onde o analfabetismo é mais alto, cerca de 32,28% da população com mais de quinze anos de idade seguida pelo Sul da Ásia, com 25,81%, e pelo Médio-Oriente e Norte de África com 19,64%. A América Latina tem uma taxa de 5,4% enquanto que no Leste da Ásia e na região do Pacífico o analfabetismo desce para os 3,96%. Alguns destes números, sobretudo os da África subsaariana e do Sul da Ásia, variam consideravelmente dependo da fonte.

      Dentro da União Europeia, Portugal tem a segunda taxa mais alta de analfabetismo, perdendo a ‘pole-position’ nesta modalidade somente para Malta; até a Roménia e a Bulgária têm menos pessoas analfabetas que nós. De acordo com os dados do INE de Março de 2024, a taxa de analfabetismo em Portugal, incluindo as ilhas, é de 3,08%, sendo a distribuição por sexo 2,1% para os homens e 3,96% para as mulheres.

      Os números oficiais das taxas de (an)alfabetismo, especialmente os das zonas onde o analfabetismo é residual, podem não ser muito fiáveis graças aos movimentos migratórios mais recentes que podem alterar estas estatísticas. A maior parte destes fluxos migratórios vêm das zonas onde o analfabetismo é mais alto e aqueles que se aventuram à procura de melhores condições de vida são, normalmente, das classes mais baixas onde o analfabetismo é mais frequente. Acontece também que uma vez no seu destino migratório, muitas destas pessoas, confinadas em comunidades fechadas e quase impermeáveis ao escrutínio externo, escapam ao radar das estatísticas. Isto poderá levar a que mesmo os números oficiais da Alemanha ou da Escandinávia pintem um quadro mais abstracto que realista.

      Nos seus primórdios, como já tivemos a oportunidade de discutir aqui, o desenvolvimento da escrita deveu-se sobretudo ao desenvolvimento da religião, da teologia-mitologia, da arte e somente depois da administração pública. No Egipto, pelo menos, as primeiras tentativas de escrita estavam relacionadas com ritos fúnebres.

      Mas para se escrever, são necessárias algumas coisas, como sejam uma superfície onde se escrever, dura ou maleável, um instrumento que grave a escritura, numa tabuinha de barro, uma cunha, em pedra ou madeira, um cinzel, ou em papiro, a tinta. Mas o mais importante instrumento para a escrita é a própria ‘escrita’, para podermos escrever temos que ter uma ‘escritura’ ou um ‘sistema de escrita’.

      Há diferentes tipos de escrita no mundo. O menos comum hoje em dia é o sistema ideográfico ou logográfico. Este tipo de escrita foi o primeiro que apareceu no Crescente Fértil e no Egipto, os berços da civilização. Caracteriza-se esta escritura pelo facto de que os símbolos, também chamados caracteres, representam cada um uma palavra (em grego ‘lógos’, daí ‘logografia’ ou ‘escrita de palavras’) ou um conceito (em grego ‘idéa’, daí ‘ideografia’ ou ‘escrita de ideias ou conceitos’).

      Este tipo de escrita ainda hoje se usa na China e, parcialmente, no Japão e na Coreia. O grande inconveniente da escrita ideográfica é, em primeiro lugar, o grande número de caracteres que é necessário memorizar já que todas as palavras da língua têm de ter o seu próprio carácter. Em segundo lugar, este tipo de escritura torna mais difícil, mas não impossível como o sistema egípcio foi capaz de demonstrar, a expressão de conceitos abstractos sem referentes extralinguísticos explícitos, como sejam as categorias gramaticais.

      Apesar destas dificuldades, o sistema de escrita ideográfico do chinês foi capaz de resistir até hoje mais ou menos intacto. Isto porque a estrutura linguística das línguas e dialectos chineses mais facilmente se acomoda a um tipo ideográfico de escritura do que línguas cuja estrutura interna comporte grande variação morfológica. As línguas sino-tibetanas, ramo ao que a maior parte das línguas e dos dialectos chineses pertencem, subdividem-se em vários grupos de acordo com a forma como se comportam, mas uma das suas grandes características é que todas as palavras são monossilábicas e não sofrem variação morfológica.

      No chinês Mandarim, por exemplo, a expressão gramatical faz-se por meio de elementos independentes que em si mesmos são palavras. Para dar um exemplo concreto, o tempo pretérito nas palavras que designam acção, para nós os ‘verbos’, não se marca pela adição de um morfema que introduz informação de tipo gramatical que tem de ser processada ao mesmo tempo que a informação lexical, como acontece em português (cf. ‘amá-va-mos’ vs. ‘ama-mos’). A expressão de ‘passado’ é feita por meio das palavras了 ‘le’ ou 過 ‘guo’ no final da frase, ou as duas combinadas a seguir ao verbo. A ideia de passado pode ser reforçada por expressões de tipo adverbial como sejam 昨天 ‘zuótiān’ “ontem” ou 去年 ‘qùnián’ “no ano passado”, etc. As palavras了 ‘le’ ou 過 ‘guo’ são às vezes descritas nas gramáticas como partículas mas, do ponto de vista formal, elas não se diferenciam de elementos de carácter lexical, excepto pelo tipo de informação que convêm.

      O facto de que em chinês cada palavra seja um monossílabo e que estes monossílabos não variem na forma, faz com que um sistema de escrita de tipo ideográfico seja compatível com a estrutura interna da língua. Comparemos com o português, onde, pelo contrário, as palavras adoptam várias formas, como exemplo o adjectivo ‘bom, boa, bons boas’, ou o verbo ‘vou, vais, ides, vão’, foi, foram, iremos, etc., para mencionar apenas duas categorias. Seria muito mais difícil (mas não impossível) acomodar o português a um sistema ideográfico de escrita. É esta compatibilidade entre a estrutura linguística do chinês e o seu sistema ideográfico que explica que o sistema de caracteres chineses tenha sobrevivido até aos nossos dias quando todas as outras escritas ideográficas antigas acabaram por morrer. Mas a escritura chinesa esteve em perigo.

      Confrontado com a empresa de aumentar os níveis de alfabetização do povo chinês, a princípio, Mao Tse Tung ainda considerou a possibilidade substituir os caracteres chineses por uma escrita de tipo fonético baseado no alfabeto latino de forma a simplificar o sistema de escrita. A ideia não vingou porque os caracteres chineses serviam de modo uniforme as muitas línguas e dialectos que se falavam na China. Hoje em dia, graças ao sistema público de educação e à televisão, o conhecimento activo do Mandarim estende-se por quase todo o território chinês mas nem sempre foi assim. A adopção de um sistema fonético de escrita poderia comprometer a comunicação entre Pequim e o resto do extenso território da China onde o Mandarim não fosse língua maioritária. Por este motivo o sistema ideográfico tradicional chinês prevaleceu mas, dada a necessidade premente de implementar uma campanha massiva de alfabetização, decidiu-se então pela simplificação dos logogramas chineses. A simplificação dos caracteres chineses já tinha sido proposta por Lufei Kui (陸費逵, 1886-1941) em 1909 num artigo intitulado ‘A educação primária deve utilizar caracteres simples’ (普通教育應採俗體字普通教育應採俗人字). Assim, o único sistema totalmente ideográfico ainda em existência foi salvo, já que no caso do Japão e da Coreia, os caracteres chineses são combinados com sistemas fonéticos.

      Já no caso de línguas com uma grande componente gramatical como, por exemplo, o Egípcio antigo, outra língua que se serviu de um sistema ideográfico, a escrita teve de se adaptar e desenvolver para poder acomodar as necessidades estruturais da língua. O mecanismo que permitiu esse desenvolvimento tanto no antigo Egipto como na Suméria é designado por ‘rebus’, palavra latina no ablativo que quer dizer ‘com coisas’. Este mecanismo consiste na combinação fonética de símbolos ideográficos para escrever coisas outras que as designadas pelos símbolos “desenhados”. Como o Egípcio antigo não se encontra no cardápio das línguas mais conhecidas por aí, utilizemos aqui o português para tentar entender como é que o sistema hieroglífico do Egípcio funcionava.

      Imaginemos que, utilizando um sistema ideográfico como o do Egípcio antigo, quiséssemos escrever a palavra portuguesa ‘sol’, bastava para isso desenhar um pequeno sol. Do mesmo modo, se quiséssemos escrever o substantivo ‘dado’, faríamos o desenho de um pequeno cubo com três pontos num lado, dois no outro e seis no outro. Não seria difícil reconhecer e dar voz às palavras a que estes ‘desenhos’, que agora assumem a função de ideogramas ou caracteres, se referiam.

      Se utilizando o mesmo sistema quiséssemos escrever a palavra portuguesa ‘soldado’ poderíamos desenhar um pequeno soldado mas isso poderia resultar um pouco mais complicado. Como se diferenciaria o carácter de ‘soldado’ do carácter de ‘homem’? ou de ‘agricultor’? ou de ‘dentista’? A coisa começa a se complicar. Em vez de criarmos um novo carácter, poderíamos desenhar juntos um ‘sol’ e um ‘dado’ e os dois desenhos ou ideogramas juntos ler-se-iam ‘sol-dado’; nisto consiste o mecanismo ‘rebus’, a combinação, baseada no seu valor fónico, de ideogramas que já existem para escrever novas palavras. Ao utilizar este mecanismo já não estamos exclusivamente no domínio da ideografia, começamos já a entrar no da fonografia, ou ‘escrita de sons’.

      A palavra portuguesa ‘soldado’ pode significar duas coisas: o militar ou algo que foi soldado com solda. A palavra soldado (de solda) é um particípio/adjectivo e, como tal, tem masculino e feminino. Uma das formas que nós poderíamos marcar a distinção de género seria desenhar um pequeno homem ou uma pequena mulher em frente da combinação dos caracteres ‘sol’ e ‘dado’ para indicar o género da palavra. Este ‘homem’ e esta ‘mulher’ estariam ali apenas para dar informação de tipo gramatical e seriam lidos não ‘homem’ ou ‘mulher’ mas sim ‘-o’ de masculino ou ‘-a’ de feminino. Foi exactamente assim que o Egípcio antigo se desenvolveu, primeiro os ideogramas referir-se-iam a ideias completas–um hieróglifo, uma palavra–depois, através do mecanismo rebus, alguns hieróglifos passaram a funcionar como partes de palavras graças ao seu valor fonético.

      O sistema continuou a se desenvolver. Em português, a palavra ‘dado’ pode referir-se ao dado de jogar ou ao particípio do verbo dar. Assim, o cubo, o nosso hieróglifo para a palavra ‘dado’, teria já três usos diferentes, podia referir-se ao ‘dado’ de jogar, ao ‘dado’ do verbo dar e a ‘dado’ como som na palavra sol-dado. Mas como distinguir entre os três? No sistema egípcio, no primeiro caso, o cubo teria um pequeno sinal por baixo para indicar que se tratava de um ideograma puro, no segundo, este seria seguido de um determinativo para indicar que se tratava de uma forma verbal. Estes determinativos serviam para clarificar possíveis dúvidas e não tinham qualquer expressão oral. Já no terceiro caso, como parte sonora de uma outra palavra, estaria inserido numa combinação de hieróglifos que poderiam, por exemplo, estar escritos uns em cima dos outros.

      Mas o sistema egípcio foi ainda mais longe. Como a palavra ‘soldado’, muitas outras palavras portuguesas acabam em ‘-ado’, muitas delas particípios passados, como ‘amado’, ‘lavado’, ‘estipulado’, etc. A própria palavra soldado pode ser o particípio passado do verbo ‘soldar’. Assim, o hieróglifo de ‘dado’, o nosso pequeno cubo, poderia passar a ser o símbolo para o particípio passado. Se eu quisesse escrever ‘amado’, desenharia um coração seguido de um determinativo verbal e depois do nosso cubo. O determinativo verbal serviria aqui para que se soubesse que o coração se referia ao verbo ‘amar’ e não ao ‘coração’, órgão do corpo humano. O resultado não seria ‘ama-dado’ mas sim ‘am(a)-ado’ porque, entretanto o cubo passou a representar não só o som ‘dado’ em ‘soldado’, o militar, mas também o morfema de particípio passado em ‘soldado’ de soldar. Esta é outra das funções dos hieróglifos, a de morfema gramatical.

      Em português há diferentes formas de particípio, como seja, amado, comido, dito, impresso, entregue, etc. Como morfema gramatical, o nosso pequeno cubo ao ser lido actualizaria o som do respectivo particípio. Assim, se quiséssemos escrever ‘ouvido’, o particípio passado de ouvir, poderíamos desenhar uma orelha, seguida de um determinativo verbal e do nosso cubo. O resultado não seria ‘ouv-dado’, mas sim ‘ouvido’, não porque o som do nosso cubo é ‘-ido’ mas sim porque aqui o cubo representa o morfema de particípio passado seja qual for a sua forma fónica.

      Usando o português como modelo, vimos como o simples desenho de um cubo poderia representar o substantivo ‘dado’, a forma verbal homófona ‘dado’, o segundo elemento fónico do substantivo ‘soldado’ e o particípio passado homófono ‘soldado’ e daí passar a representar também uma categoria gramatical. Foi assim, grosso modo, que a escrita hieroglífica do Egípcio antigo se tornou um sistema ideográfico complexo que compreendia símbolos ideográficos, fonéticos, gramaticais e categóricos. Isso permitiu que os egípcios escrevessem textos complexos de natureza religioso-mitológica, “filosófica”, legal, histórica, administrativa e ainda textos da vida quotidiana com apenas cerca de 700 ideogramas. O sistema chinês, pelo contrário, que não se desenvolveu da mesma forma, tem um inventário total de cerca de 50 000 caracteres; para se ler um simples jornal diário são necessários entre dois e três mil caracteres. A maior parte das pessoas com escolaridade média tem de dominar entre cinco a oito mil caracteres. No final, o sistema egípcio embora muito mais complexo é também muitíssimo mais económico.

      A escrita cuneiforme da Suméria, a outra escrita ideográfica da antiguidade, com cerca de 600 símbolos, passou por uma evolução semelhante. No entanto, os símbolos cuneiformes tornaram-se muito mais abstractos do que os do Egípcio e o elemento fonético desenvolveu-se de forma diferente o que permitiu que a escrita cuneiforme fosse importada pelas línguas acádicas, como o babilónio e ao assírio e até pelo hitita, que é uma língua indo-europeia.

      Também a escrita fonética e o alfabeto que utilizamos hoje deriva da escrita hieroglífica do Egípcio antigo mas essa história fica para a próxima.

       

      Roberto Ceolin

      MA (Conim.) MPhil, DPhil (Oxon.)

      Docente Universitário de Línguas Antigas

       

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