O ‘famoso’, mas também já quase esquecido acordo ortográfico, causou muita comoção em Portugal. Uns contra, outros a favor; ninguém ficou indiferente, mas o mais curioso é que muitas das reacções ao acordo tinham um carácter quase emocional.
O caso português não é único. Em 1996, a Alemanha, a Áustria, o Liechtenstein e a Suíça assinaram em Viena um acordo para a simplificação do sistema ortográfico alemão. Esta reforma seguiu-se a uma discussão que se arrastava já desde 1980, ainda nos dias das duas Alemanhas, quando o ‘Grupo de Trabalho Internacional para a Ortografia’ foi criado. A reacção de professores de Alemão, escritores, académicos, meios de comunicação, instituições várias e também pessoas individuais foi tal que a questão acabou no tribunal constitucional alemão (‘Bundesverfassungsgericht’). Em 1998, o tribunal decretou que a reforma era legal mas que fora das instituições do Estado e das escolas públicas as pessoas podiam escrever como quisessem, incluindo na ortografia anterior à reforma.
Este tipo de reacção a tentativas de alterar o sistema ortográfico de certas línguas mostra bem como as pessoas têm com a escrita da sua língua uma relação que vai mais além da simples relação prática que nós mantemos com ‘instrumentos’ que nos ajudam a conduzir a nossa vida. A escrita, tal como a língua, é mais do que um mero utensílio de comunicação. Já aqui falámos da importância que a língua tem para a afirmação da identidade dos povos. Algo semelhante se passa com a escrita que, ao funcionar como o meio de preservação e veículo de transmissão daquilo que nós dizemos, é vista como a outra face da mesma moeda. Assim, funciona a escrita como uma extensão da língua e deste modo participa também daquele vínculo quase preternatural que as pessoas sentem em relação à sua língua materna e que a torna num elemento essencial da sua identidade étnica. A comoção causada na Alemanha pela reforma ortográfica prova isso mesmo.
No caso português, infelizmente, temos de concordar com o Pacheco Pereira quando este disse, na ‘Quadratura do Círculo’, que, embora a grande maioria dos portugueses estivesse contra a reforma, o ‘laissez-faire’ típico dos portugueses acabaria por permitir que a reforma acabasse por vingar. E assim foi. Já os alemães não se deixam levar de arrasto. Em 1997, os opositores ao acordo formaram a ‘Associação para a Grafia Alemã e Fomento da Língua: Iniciativa Contra a Reforma Ortográfica’ e o estado de Schleswig-Holstein, o estado mais a Norte da Alemanha e que historicamente era pertença ora da Dinamarca, ora da Prússia, chegou mesmo a organizar um referendo em que o não à reforma ganhou. No final, a agitação social que o acordo causou funcionou e, em 2004, formou-se o ‘Conselho da Ortografia Alemã’ para a revisão da reforma que finalmente entrou em vigor em 2006. Mas ainda hoje há jornais, como por exemplo o famoso ‘Die Zeit’, que, em consonância com a resolução de 1998 do tribunal constitucional, criaram e usam a sua própria ortografia.
Escrever é algo tão intrínseco à nossa existência no mundo e à nossa vida quotidiana que nós não nos apercebemos daquilo que ‘o acto de escrever’ representa e do que seria a nossa vida se a escrita não existisse. É claro que todos nós lemos e escrevemos todos os dias, mas fazemo-lo de forma quase inconsciente sem nunca pararmos para reflectir na importância que a escrita tem na nossa vida. Na verdade, a escrita, nós damo-la de barato, como algo que ‘sempre esteve lá’. Só em momentos como estes, ou quando, como a mim já me aconteceu, nos deparamos nos dias que correm com algum jovem adulto que nunca aprendeu a escrever, é que nós nos apercebemos de quão importante escrever realmente é. O nosso tempo, gastamo-lo a pensar noutras coisas, noutros desenvolvimentos importantes para civilização humana, o cinema, a rádio, a penicilina, a televisão, a internet, e, é claro, o mais recente de todos, a ‘inteligência artificial’. Este último traz o mundo pelos cabelos. Alguns dos que trabalharam no seu desenvolvimento, transformaram-se da noite para o dia nos arautos dos perigos que a inteligência artificial representa para a humanidade e dos quatro cantos da internet não deixam de publicar as ameaças que nos fazem tremer de medo e pensar que o ‘exterminador do futuro’ já está aqui para nos pulverizar. Até mais ver, estes prenúncios de desintegração do mundo ainda não se materializaram, pelo contrário, a coisa não parece capaz de meter a primeira e arrancar, pelo menos não ao nível das promessas que nos fizeram. Quando é que iremos nós finalmente poder discutir com a torradeira o movimento ondular das partículas ou aprender línguas exóticas da varinha-mágica enquanto passamos as batatas para o caldo-verde do jantar? Para já o ‘chatGPT’ e seus congéneres continuam a dar informação falsa ao mesmo tempo que tentam dizer graçolas quase sempre inoportunas. Somente os maus alunos e os criminosos das redes sociais parecem conseguir derivar quaisquer benefícios dessa arma, que segundo alguns, conduzirá a humanidade ao seu ‘terminus’.
Enquanto esse fim não chega, restam-nos a escrita e a leitura tradicionais. Com ou sem inteligência artificial, não houve na história do mundo desenvolvimento comparável à invenção da escrita. Esta está na base de todos os outros desenvolvimentos humanos, incluindo a dita cuja. Depois do domínio do fogo pelo ‘homo erectus’, há mais ou menos um milhão de anos, e da invenção da roda na Mesopotâmia há cerca de 5 500 anos, a escrita é a invenção mais importante na história do homem e como tal é o feito humano que divide a história da pré-história.
A escrita terá aparecido por volta de 3 300 a.C. em dois lugares do Médio Oriente. Antigamente, a opinião dominante era que a escrita tinha aparecido na Suméria e que daí se tinha estendido pelo resto do ‘Crescente Fértil’. Hoje em dia, as opiniões se dividem entre os académicos, uns defendem que a escrita apareceu primeiro na Suméria enquanto que outros acreditam que foi no Egipto. A verdade é que a disputa pelo pódio não nega o facto de que a escrita apareceu independentemente nestes dois sítios mais ou menos ao mesmo tempo. Em ambos os casos, a escrita deriva de ideogramas primitivos, ou seja, pequenos desenhos ou representações mais ou menos estilizadas de objectos. Com o tempo, estes foram perdendo o seu carácter pictórico-representativo e passaram a representar conceitos mais abstractos, como sejam, por exemplo, as categorias gramaticais. À medida que o princípio de associação fonética dos símbolos, a que nós chamamos de ‘rebus’, se foi aplicando, os ideogramas ou símbolos deixaram de representar ‘ideias completas’ passando a ser ‘peças’ que podiam ser combinadas para formar outras ideias ou mesmo frases complexas.
A escrita da Suméria, conhecida por ‘cuneiforme’, pelo facto de ser gravada por uma pequena cunha em tabuinhas de barro, espalhou-se então pelo Crescente Fértil desde a Anatólia dos hititas até a Babilónia onde servia a língua acádica dos assírios e dos babilónicos. A escrita egípcia, mais artística e complexa, conhecia duas versões, a ‘hieroglífica’ ou monumental, que se esculpia ou se pintava nas paredes dos templos e demais construções monumentais, e a ‘hierática’ ou cursiva, que se escrevia em papiro com tinta por meio de um ‘calamus’ feito de cana.
Quando o autor deste texto andava na escola, nós aprendíamos que a primeira escrita tinha sido a cuneiforme dos sumérios e que o primeiro alfabeto tinha sido o fenício. Hoje já não se vêem as coisas assim. Como já referimos, a escrita no Egipto pode ter aparecido antes da escrita suméria. De igual modo, hoje já não se acredita que o fenício tenha sido a primeira forma de escrita alfabética. O ‘proto-sinaítico’, escrita derivada do hierático egípcio, que terá aparecido por volta de 1 700 anos antes de Cristo na península do Sinai, é hoje considerada a escrita de tipo fonético mais antiga que nós conhecemos. Dela deriva o ‘proto-cananeu’ do qual viria a derivar o alfabeto que os fenícios depois espalhariam pela bacia do Mediterrâneo. Do proto-cananeu virá a derivar também o alfabeto aramaico e deste os alfabetos antigos da língua dos Uigures do Turquestão Oriental, dos mongóis e também dos Manchus.
Sem a escrita não teriam jamais existido os grandes, de facto, os maiores momentos civilizacionais da humanidade, a Filosofia Grega, o Direito Romano, a Escolástica medieval, que foi capaz de sintetizar o cristianismo com a razão, tarefa que o Neoplatonismo falhou, a Renascença, a Reforma, a Revolução Francesa, que tornou todos os homens iguais perante o Estado e a lei, o Iluminismo, já para não falar das ciências naturais, também elas dependentes da escrita.
A escrita aparece no Crescente Fértil e no Egipto como resultado do desenvolvimento cultural dessas primeiras civilizações. As primeiras cidades, como Ur, Uruk ou mesmo Jericó, começam a aparecer por volta de 10 000 a.C. à volta dos rios Tigre e Eufrates onde se desenvolvem sistemas de irrigação que permitem às populações se tornarem sedentárias. O mesmo se passou no Egipto onde as cheias periódicas do Nilo permitiram o desenvolvimento da agricultura e pecuária locais. A partir daí, estas civilizações começam a desenvolver as suas religiões, as suas teologias ou mitologias, as suas literaturas e poesias, ainda que em forma oral, os seus sistemas administrativos e legais, etc. Ao contrário do que às vezes se ouve ou se lê por aí, a escrita não deriva da necessidade de contar as cabeças de gado e as quantidades de cereais nos silos, mas sim das necessidades criadas pelo nível de sofisticação que estas civilizações da Mesopotâmia e do Egipto atingiram. Não é por acaso que na certidão de nascimento das grandes civilizações se encontrem extensos poemas épicos de carácter mitológico, como sejam o Gilgamesh, escrito em Acádio, a Ilíada e a Odisseia ou até mesmo o Rigveda, embora este último não seja épico.
No fundo, a escrita é a resposta às inquietudes do espírito humano que não encontra descanso senão na criação artística e na investigação do mundo que o rodeia. Diz o salmo oitavo: ‘o que é o homem para que o tenhais em consideração? (…) e, no entanto, vós o fizestes pouco menor do que um deus’. A capacidade de escrever aproxima-nos ainda mais do divino, pois através da escrita também nós, como Deus, podemos ‘criar’ e a ponte que a escrita constrói entre homens e deuses não acaba aí já que também os deuses estão dependentes da escrita para se darem a conhecer ao Homem.
Quase todas as grandes religiões da antiguidade, incluindo aquelas que ainda hoje existem, têm as suas escrituras sagradas. Se nos focarmos nas três grandes religiões monoteístas, o cristianismo, o judaísmo e o islamismo, verificamos que a palavra escrita é um elemento fundacional para as três, ainda que o valor que cada uma atribui à palavra escrita divirja consideravelmente. Das três, a que maior valor atribui às suas escrituras é o Islão que tem o conceito mais radical de revelação.
Os muçulmanos não vêem o Alcorão como os cristãos vêem a bíblia. Para o islamismo, o Alcorão é a palavra de Deus não-criada, eterna e divina, e como tal, está para o islamismo como Jesus Cristo, a palavra de Deus encarnada e presente no mundo, está para o cristianismo. No Islão, o Alcorão é uma extensão de Allá e por isso mesmo não permite interpretações humanas; a palavra de Deus é para ser tomada tal como foi revelada a Maomé pelo anjo Gabriel.
Também no judaísmo o papel das escrituras é central. Os dois grandes monumentos do judaísmo são a ‘Micrá’, também conhecida pelo acrónimo ‘Tenach’, que corresponde ao Antigo Testamento da bíblia cristã, e o Talmude. O nascimento do judaísmo rabínico é, aliás, marcado pela passagem à escrita da chamada ‘lei oral’ do judaísmo do segundo templo, pela mão do rabino Yehudah Hanasi (135-217), que veio a ser parte central do Talmude, texto basilar da lei judaica.
No caso do cristianismo, o valor atribuído às escrituras levou a divisões radicais no cristianismo durante a Reforma. Para os católicos, a bíblia é apenas uma das duas fontes de revelação que a Igreja reconhece. ‘Fontes de revelação’ são os meios pelos quais Deus se revela aos homens e, para os católicos, essas fontes são a bíblia e a ‘tradição’. A tradição inclui, entre outras coisas, textos fundamentais que se encontram fora do cânon da bíblia, como por exemplo os textos da patrística. Já os protestantes defendem o princípio da ‘sola scriptura’, ou seja, somente a bíblia é fonte de revelação. Mais do que isso, defendem também que a interpretação das escrituras deve ser deixada à consciência de cada um. Pelo contrário, para os católicos, cabe à Igreja a interpretação da bíblia e da tradição.
A bíblia é muitas vezes referida como ‘a palavra de Deus’, ainda que Deus, mesmo quando andou pelo mundo, não tenha escrito nada. Que se saiba, Jesus Cristo não deixou nada escrito. A única vez que se diz que Jesus escreveu alguma coisa é no famoso episódio da mulher adúltera no evangelho de São João, capítulo oitavo. Quando os escribas e os fariseus Lhe trazem uma mulher adúltera apanhada em flagrante delito, diz o texto que Jesus agachou-se e começou a escrever no chão. A determinada altura, Jesus levanta-se e profere a sua famosa frase ‘quem estiver livre de pecado, atire a primeira pedra’ e, agachando-se outra vez, volta a escrever no chão. O texto não faz menção alguma do que é que Ele estava a escrever. O autor deste texto ouviu uma vez, num sermão, que ‘o que escrevia Jesus no chão eram os pecados dos escribas e fariseus que lhe trouxeram a mulher a apedrejar’; ‘si non è vero, è ben trovato!’ Esta é a única menção que existe de Jesus a escrever mas vem com um ‘caveat’: o episódio da mulher adúltera não se encontra nos dois códices unciais mais antigos, a saber, o ‘Codex Sinaiticus’ e o ‘Codex Vaticanus’, nem nos papiros 66 e 75, dois do mais significativos testemunhos do evangelho de São João.
Será que a escrita, que desde há tanto tem (e)levado o Homem ao nível dos deuses, está para ser suplantada por qualquer coisa digital ou artificial? Terá Deus de actualizar a sua forma de se relacionar a suas criaturas? Ou será que, tal como os deuses, também a escrita é invencível e imortal? Quem viver verá!
Roberto Ceolin
MA (Conim.) MPhil, DPhil (Oxon.)
Docente Universitário de Línguas Antigas