Sara Figueiredo Costa
SANDRO WILLIAM JUNQUEIRA: «UMA HISTÓRIA MESMO BOA TEM DE SER MAL CONTADA»
Ao sexto romance, Sandro William Junqueira mergulha nas memórias de família e com elas ergue uma ficção que deixa expostas as muitas armadilhas que a memória representa.
Nascido na Rodésia, país que já não existe, Sandro William Junqueira é um escritor pouco dado a cultivar o marketing sem o qual, nos dias que correm, é difícil estar constantemente presente nas livrarias, nos destaques de imprensa, nos festivais. A literatura é a literatura, mas também é um mercado, um negócio que exige visibilidade, promoção, exposição. Avesso a entrevistas, Junqueira prefere escutar os leitores dos seus livros a responder a perguntas sobre como escreve. Nisto, já lá vão seis romances publicados, uns quantos livros para a infância e vários textos dramatúrgicos. Não fosse o autor um conversador nato – assim consigamos que deixe de dar atenção ao gravador – e pensaríamos que seria melhor deixá-lo escrever do que bombardeá-lo com perguntas…
Emídio e Ermelinda, acabado de publicar pela Caminho, parte da vida dos avós maternos do autor, mas não é uma autobiografia nem pretende trilhar os caminhos da chamada auto-ficção, tão em voga por estes dias. Este livro nasceu como peça de teatro, representada pelo próprio autor, mas transformou-se em romance, uma ficção, que assume a matéria pessoal como ponto de partida. Talvez a diferença seja essa: boa parte dos escritores trabalha com essa matéria-prima, disfarçando-a por entre linhas narrativas, mas Sandro William Junqueira decidiu assumir que é exactamente essa a argamassa do seu último livro, um romance que deixa à vista as costuras, essas cicatrizes das tentativas que vamos fazendo de nos percebermos, de deslindarmos o lugar e a história de onde vimos e o modo como acontecimentos passados nos definiram. É, por isso mesmo, um romance sobre a escrita, revelador da oficina do escritor como poucos, mas também um exercício sobre a identidade e as suas indefinições.
Para além de Ermelinda, a mulher que deu a volta a tudo para nunca perder de vista o marido, e de Emídio, o fura-vidas que foi para Angola, depois para Moçambique, que foi hipnotizador, ilusionista, falsário, ceramista de renome e tantas outras coisas, há outras personagens nesta saga familiar. Entre elas, está Wolfgang Beltracchi, um falsário que enganou meio mundo, críticos de arte à cabeça, com uma série de quadros nunca antes vistos de vários pintores de renome, com a particularidade de todos serem criação sua. Como contou Sandro William Junqueira nesta entrevista, foi a descoberta dessa figura histórica que abriu as portas para o processo de escrita que culminou neste romance, nascido como espectáculo de teatro e agora refeito numa prosa que tira partido da imensa plasticidade que o género romanesco foi conquistando ao longo dos séculos.
Na apresentação deste livro disseste que não gostavas de falar sobre os livros que escreves.
Sim, disse que tudo o que eu possa dizer sobre o livro vai estragar. O meu pensamento é tão diferente quando escrevo e quando falo… a maneira como penso melhor é a escrever. Tenho esta limitação, não sou uma pop-star da retórica e de verbalizar grandes pensamentos, grandes frases, a minha energia está toda canalizada para a escrita. Já muitos escritores falaram nisso, Nabokov dizia «sou um génio a pensar, muito bom a escrever e um desastre a falar». Eu sou melhor a escrever do que a falar. As palavras têm essa coisa, quando estás a escrever, é como se entrasses num outro estado, num outro sítio, e deixas de ser tu. Fico de tal modo embrenhado naquilo que às vezes me surpreendo quando releio as coisas que escrevo e percebo que, afinal, aquilo está bom.
Mas não costumas achar isso em relação ao que escreves?
Quando escrevo, não. Sou muito punitivo comigo mesmo, nunca estou satisfeito, e acho sempre que não presta. É isso, tenho uma grande dificuldade em falar sobre os livros, porque acredito que a minha forma de escrever está muito ligada ao instinto. As ideias, a criatividade, são coisas que não controlas, ou eu não controlo. O grande material vem de um sítio que não domino e gosto disso, de largar a mão do controlo e deixar a coisa acontecer. E parece que se estiver aqui a escalpelizar, falando, vou perder o maior tesouro que existe, que é esse lado de não domínio, por isso tenho dificuldade em falar. No caso deste livro, consigo dizer como surgiu a ideia, como parti para a escrita, até porque não partiu de mim, por isso tenho mais facilidade em fazer esse enquadramento do que relativamente aos meus primeiros romances, que eram ficção pura e dura. Agora, ir ao coração da coisa e dizer porquê, isso não sou capaz. Aquilo de que mais gosto é quando vou a uma sessão de algum clube de leitura falar com pessoas que estão a ler o livro. Isso é o que me dá mais prazer como autor, poder dialogar com os leitores.
Porque ouves leituras inesperadas daquilo que escreveste?
Sim, fico completamente surpreendido e isso é o que me deixa mais feliz, dá-me aquela sensação de gratificação, de perceber que afinal estou a fazer qualquer coisa. Aliás, acho que a única coisa que os meus livros têm feito bem é trazer pessoas boas para a minha vida, os amigos que tenho feito através dos livros têm sido um enriquecimento muito grande.
Este texto começa por ser um espectáculo, pensado para o palco antes de se transformar em romance. Como é que isso aconteceu?
Há três anos, o Observador pediu-me um texto e eu tinha tropeçado há pouco tempo na história do [Wolfgang] Beltracchi. Tinha ficado absolutamente fascinado com a história e li tudo o que encontrei sobre ele. Quando estava a escrever, lembrei-me do meu avô, e o texto que escrevi acabava por falar do Beltracchi, do meu avô e de um escritor espanhol que eu inventei, um romancista falhado que decidiu pôr mãos à obra e escrever uma colectânea de contos de autores já mortos, mas todos do cânone literário, e depois editar esses contos como se fossem textos nunca antes editados desses autores. É a fórmula do Beltrachi aplicada à literatura. Meses mais tarde, em conversa com o Giacomo Scalisi [encenador, director artístico do festival algarvio Lavrar o Mar] e a Madalena Vitorino [bailarina e coreógrafa], falei desse texto e estive muito tempo a falar do meu avô e a contar uma série de histórias, e o Giacomo perguntou-me se eu não queria escrever um texto sobre aquilo tudo. Fiquei um bocado desconfortável, o meu avô já tinha morrido há cinco anos, mas ainda assim… Acho que demorei uma semana a responder, mas a ideia do Giacomo era fazer um espectáculo com aquele material, só que nunca pensei que era eu que ia fazer o espectáculo. Lá escrevi o texto, demorei uns três meses a escrever uma primeira versão, e estava com esperança de que o Giacomo não quisesse avançar, mas ele adorou o texto e disse-me que tinha de ser eu a interpretá-lo em palco. Isso foi terrível, porque eu tenho uma ligação muito forte com o Giacomo e não sou capaz de lhe dizer que não.
Há um detalhe nessa passagem do texto dramatúrgico para o romance: o espectáculo chama-se Emídio e o romance chama-se Emídio e Ermelinda, e às tantas o narrador diz que anda a tentar perceber quem é o protagonista, se é que há algum. Como é que foi esse processo de perceber o papel do protagonista e, mais do que isso, a quem caberia esse papel?
Não foi muito difícil. O espectáculo chamava-se Emídio porque o ponto de partida era o meu avô, mas a partir do momento em que decidi entrevistar e gravar a minha avó, isso mudou. E, na verdade, o livro é para ela, mas só depois de o escrever tive consciência disso, e dedico-lhe o livro. O título do espectáculo foi decidido muito no início do processo de ensaios e ficou, mas não fazia sentido que se mantivesse assim.
O livro vai mexendo numa série de materiais, a voz da tua avó, as histórias contadas por elementos da família, em versões que não coincidem, as histórias que inventaste, é quase uma escavação arqueológica. Em algum momento tiveste a ilusão de reconstituir uma espécie de verdade?
Não, nem nunca tive esse objectivo, porque sei que a nossa memória funciona assim, com imprecisões, desvios, e queria que o livro tivesse essa liberdade, esse galope de andar de um lado para o outro. Aquela ideia de uma história “bem contada” incomoda-me, porque acho que uma história mesmo boa tem de ser mal contada, as coisas não são assim tão arrumadas. Sabia que tinha de ser uma coisa muito livre, mesmo começando com o nascimento do Emídio, mas logo aí há intervenção, porque ele não nasceu na II Guerra Mundial, há uma série de imprecisões e mentiras. Agora, esse processo da escavação, da memória, isso é que foi a grande descoberta para mim. Na verdade, sempre me senti um alienígena na minha família, porque sou o mais alto, tenho a pele mais escura, sou aquele que nas fotografias parece sempre desajustado, e sempre senti muita dificuldade com aquela coisa da pertença. Além disso, também havia a questão religiosa, porque as minhas duas avós eram profundamente religiosas e queriam impor a fé e a religião em mim. Senti-me sempre desajustado, sem saber bem se pertencia realmente ali.
Eras o excêntrico?
Sim, era o único que escrevia, fazia peças de teatro, e era sempre visto como qualquer coisa estranha. A escrita deste livro ajudou-me a aproximar-me e a descobrir uma ligação com o meu avô, com quem eu nem tive uma grande relação. Só quando comecei a publicar livros é que ele começou a olhar para mim de outra maneira, com mais atenção. Acho que esta aproximação me fez perceber aquilo que a minha avó às vezes dizia, que eu tinha qualquer coisa do meu avô.
Por causa da escrita?
Sim, e às vezes interrogo-me como é que sou escritor. Ninguém lê livros na minha família, os meus pais tinham livros em casa porque tinham um móvel decorado com livros do Círculo de Leitores. Quando tinha dez, onze anos, não havia internet, era filho único, e eu tinha de fazer alguma coisa, então lia. Se fosse hoje, acho que nunca me teria tornado um leitor, pelo que nunca teria sido escritor. No fundo, esta cena do fura-vidas que o meu avô tinha, de sair de um buraco e construir uma carreira como ceramista, há aqui qualquer coisa com que me relaciono. Aproximei-me dele e fiquei com aquela sensação de que talvez haja qualquer coisa no ADN que passa, de algum modo. A vida dele foi muito fora do previsto, naquela altura, e ele fez tudo, fez teatro, ilusionismo, cerâmica, negócios, enfim, acho que o meu avô era alguém um bocadinho fora do tempo, com um olhar muito particular sobre o mundo e com uma capacidade enorme de perceber as pessoas, e de as manipular, claro.
Este texto não se aproxima da figura do Emídio a partir do seu potencial literário, que é grande, mas antes como um processo para tentar encontrar algumas pontes entre a pessoa que escreve e essa figura num processo de te perceberes a ti próprio, de perceberes uma identidade.
Claramente, foi isso, mas só percebi durante o processo de escrita. O gatilho não foi esse, foi mesmo o desafio para escrever um texto sobre o meu avô. E aí estava mais próximo de escrever a história dele, a grande história romanesca do grande aldrabão… Depois percebi que não era isso, que estava a escrever para chegar ao meu avô. Os livros são incríveis nesse sentido, partes com um gatilho para uma determinada coisa e depois percebes que é outra coisa. Escrever obrigou-me a voltar atrás, a pensar em tudo o que tinha ouvido, nos momentos em que estivemos em família, a separação dos meus avós… Obrigou-me a reconstruir na minha cabeça um puzzle, ainda que com algumas peças em falta, a fazer esse exercício de voltar atrás e perceber a questão da memória. Quando gravei a minha avó durante dois anos, percebi que ela contava as mesmas histórias de maneira diferente. E isso era perfeito, porque me permitia usar aquilo tudo e abrir ainda mais o espectro de ficcionar. Ainda não lhe dei o livro, mas vou ter de explicar-lhe que isto é ficção, não é a verdade, não é o que aconteceu. E sei que isso não vai ser fácil.
Sendo única, a história do Emídio e da Ermelinda não deixa de poder ser lida à luz de uma certa história sobre o século XX em Portugal, ainda por cima vista do lado dos que não costumam figurar nos livros de História. Isso foi uma coisa pensada ou foi acontecendo?
Foi surgindo durante a escrita, não tive essa ideia prévia. Eu sou filho de retornados e o livro deu-me essa consciência de um modo ainda mais forte. Quando comecei a escavar a história dos meus bisavós, percebi que aquelas pessoas viviam em condições muito más e Portugal era aquilo, a maioria das pessoas vivia assim, sem saber ler nem escrever, sem ir à escola, uma pobreza franciscana. E as pessoas fugiam daqui para ir à procura de qualquer coisa melhor. Já sabia disto, os meus pais contavam-me algumas histórias, sobretudo as histórias de África e a fase depois do retorno, mas com a escrita fiquei com uma consciência mais forte de tudo isso e também daquilo que muitos portugueses viveram naquele período da ditadura.
Há pouco falaste do Wolfgang Beltracchi, que esteve na origem deste livro. O que te fascinou nessa figura histórica?
Sempre me fascinaram estas pessoas que conseguem enganar toda a gente e, na verdade, acho que isso é por causa do meu avô, porque cresci a ouvir as histórias do grande ilusionista, do grande mágico que enganou toda a gente. Portanto, comecei a pensar no nele e houve uma sinapse qualquer que me levou para o meu avô e me fez perceber que era dali que vinha o meu fascínio. Mesmo quando o meu avô estava vivo contavam-se inúmeras histórias sobre ele e, mesmo depois da separação dos meus avós, as histórias eram sempre sobre ele.
A história do Beltracchi de algum modo é uma boa metáfora para esta nossa relação complicada com a memória e o passado?
Sim, eu já conhecia várias histórias sobre grandes falsários, já conhecia o F For Fake, do Orwell, mas o Baltracchi tinha aquela coisa extraordinária, porque aquilo foi uma bomba atómica para mundo da arte e eu acho que ele quis mesmo ser descoberto. No livro não conto muitos detalhes, mas a forma como ele constrói a narrativa para aqueles quadros que ele pinta é inacreditável. Ele pintou quadros que nunca tinham sido vistos, que supostamente os grandes pintores pintaram, que consideravam os melhores. Era o melhor Marx Ernst de sempre, só que era do Beltracci! Fiquei completamente rendido, sobretudo à ousadia de ele se ter deixado descobrir. Se isso não tivesse acontecido, não tinha graça nenhuma. Agora, está preso, mas no regime de ir dormir à prisão e passar os dias em casa. Achei interessante as relações que há com a história do meu avô, a relação amorosa do Beltracchi com a mulher, ela ter entrado no jogo, sabendo das falsificações. O homem falsificou o selo de um antiquário, como se fosse dos anos 20, encenou fotografias, ia às feiras comprar telas antigas, pigmentos… é inacreditável! Como cheguei ao Emídio a partir do gatilho do Beltracchi, achei que a história dele tinha de fazer parte da história sobre o meu avô. E realmente é isso, a forma como a memória nos aparece e o que nós fabricamos com ela, memórias falsas… o Beltraccih é uma metáfora perfeita de tudo isso.
Já no fim do livro, lê-se «Se estive aqui é porque queria mesmo contar esta história. Contar uma história é uma tarefa infinita. Queria contá-la para descobrir a minha identidade. Para tentar perceber o que isso é.» Foste bem sucedido na tarefa?
Acho que me aproximei mais, mas não sei se algum dia alguém consegue chegar a isto que somos, a isto que eu sou…
Também é uma tarefa infinita?
Claro! E também depende de uma série de outras coisas e pessoas que existem à nossa volta. Mas acho que me aproximei e fiquei feliz por isso, por me ter aproximado dessa identidade, por ter percebido melhor de onde é que vem a minha família e eu próprio, por ter, no fundo, apaziguado a minha relação com o meu avô e ter-me aproximado mais da minha avó, percebendo que, apesar de todos os defeitos que tem, como todos nós temos, é uma mulher de uma coragem enorme. Ao mesmo tempo, de alguma forma, é incrível como é que uma mulher naquela altura conseguiu viver tanto tempo com aquele homem. E mesmo depois de terminar a relação, não terminou, o Emídio continuou e continua sempre a gravitar em torno dela. Resumindo, é uma carta de amor à minha avó e é um livro contra a morte, que tenta prolongar a vida da minha avó e resgatar a do meu avô.