A visita de Kim Jong Un à Rússia, o périplo por inúmeras instalações militares, a declaração de estima e apoio a Vladimir Putin e à sua invasão da Ucrânia parecem anunciar o degradar das condições de segurança na Asia Oriental e a inversão da atmosfera de desanuviamento indiciada pelo encontro dos líderes das duas coreias em Singapura em 2018.
Mais que uma visita cordial entre os dois líderes com idêntica visão da política internacional a visita revelou um interesse focado do líder comunista em melhorar a infraestrutura militar-industrial do país e adquirir tecnologia que é fundamental ao sistema de lançamento de misseis terra-ar e muito provavelmente à modernização do seu arsenal nuclear. Não houve declarações sobre o conteúdo preciso das negociações mas o ministro de defesa russo Sergei Shoigu não deixou de referir que as duas partes discutiram a “expansão da coordenação estratégica e táctica”.
Especialistas ocidentais assinalam que Kim Jong UnNg pode fornecer munições e sobresselentes à infraestrutura militar russa enfraquecida por um ano de arremetidas no território ucraniano, pelo número galopante de baixas, por mudanças sucessivas na hierarquia de comando operacional, pela crise de imagem nacional em razão do protagonismo do líder do Grupo Wagner. Naturalmente que essa transferência de tecnologia representa uma violação das resoluções das Nações Unidas que punem o regime norte-coreano mas nem o líder comunista nem Vladimir Putin estão preocupados com o direito internacional ou com a supervisão do Conselho de Segurança.
A coincidência de pontos de vista dos dois líderes não é de estranhar mas as consequências do encontro ultrapassam a segurança internacional para constituir um embaraço para a República Popular da China. Não é por acaso que a China anunciou a visita a Moscovo do conselheiro para a segurança do Presidente Xi Jinping, Wang Yi, nas próximas semanas. Pequim sempre confiou poder conter o colérico líder norte-coreano fazendo da dependência alimentar e energética de Pyongyang a Pequim um cerceador da projecção de força da Coreia do Norte.
Kim Jong Un mostrou mais desembaraço e sentido de oportunidade que os lideres chineses alguma vez anteciparam. O apoio público e declarado à invasão russa da Ucrânia constitui um balão de oxigénio para Vladimir Putin a braços com uma péssima imagem internacional. Não depender do exclusivo aliado asiático foi o objectivo essencial da jornada do líder norte-coreano pela Rússia que lembra a postura do fundador do regime comunista, o avô Kim Il-Sung. O que coloca desafios inesperados a Pequim.
O reforço do arsenal nuclear norte-coreano e o potencial aumento de eficácia no lançamento de misseis intercontinentais trará maiores preocupações dos vizinhos da China. Designadamente o Japão e a Coreia do Sul que não deixarão de recorrer à ajuda militar norte-americana para reforçar o seu arsenal militar e os sistemas de defesa antimíssil perante actos de provocação de Pyongyang. Com dificuldades económicas internas em resultado de um frágil desempenho da economia nos últimos anos, a estabilidade indispensável à gestão doméstica pode cambalear.
Do ponto de vista internacional, a China tem jogado no apoio político a Moscovo, numa relação próxima de Xi Jinping a Putin evitando o envolvimento directo no fornecimento de material militar a Moscovo que possa ser lido pela comunidade internacional como contrário à linha de distensão e cooperação internacional prosseguida pela China desde o fim dos anos 1980. Pequim tem evitado colocar-se contras várias resoluções condenatórias da invasão da Ucrânia tanto do Conselho de Segurança como da Assembleia Geral da ONU.
A China não quer ser vista como uma potência militarista e expansionista. Isso aprofundaria a aliança política e militar anti-chinesa que se indicia na nova cooperação militar-naval entre os Estados Unidos, o Japão, a Coreia do Sul, as Filipinas e a Austrália. A corrida ao armamento de Pyongyang terá sucedâneos, pelo princípio dos vasos comunicantes, nas prioridades de segurança dos vizinhos da China. Tendo uma visão centrípeta da sua posição geoestratégica a China persiste em ignorar que os Estados Unidos se localizam no outro lado do Pacífico e que qualquer alteração do status quo é lido por Washington como uma ameaça à sua segurança nacional. Os relatórios anuais de defesa norte-americanos são claros em identificar a subida do status militar da República Popular da China como uma ameaça.
Como escreveu Sun Tuz não é preciso ter os olhos abertos para ver o sol, nem os ouvidos atentos para ouvir o trovão. Para ser vitorioso o bom líder deve ver o que não está visível.
Arnaldo Gonçalves
Jurista e professor de Ciência Política e Relações Internacionais