O deputado Ron Lam considera que a chuva de críticas da sociedade face ao Governo em relação à construção da estátua de Kun Iam não se deve apenas a este projecto, mas sim uma insatisfação acumulada durante os últimos anos. Em entrevista ao PONTO FINAL, o deputado destacou que esse ressentimento é originado no estilo deste Governo, que está “demasiado autoconfiante” e tornou-se “arrogante”. Sublinhou ainda que, apesar da nova lei da segurança nacional, a sociedade continua a poder, e a dever, fiscalizar os trabalhos do Governo. E este deve ouvir, humildemente, as opiniões públicas e ser mais transparente.
Entrado na Assembleia Legislativa em 2021, Ron Lam reconhece que o Hemiciclo está a prestar o devido apoio aos trabalhos dos deputados, mas o problema está na atitude manifestada pelo Executivo quanto à implementação das políticas. O deputado criticou a falta de transparência da governação e disciplina financeira das autoridades, cuja questão foi particularmente exposta no caso da construção da estátua de Kun Iam em Hac Sá. “Se o Governo está disposto a aceitar a fiscalização do público? Ou tem uma atitude demasiado autoconfiante? Estamos num progresso de informação ou atraso?”, questionou Ron Lam, considerando que este Governo tem vindo a ser cada vez mais arrogante, quer perante os deputados, quer o público. Ao PONTO FINAL, o deputado eleito por sufrágio directo confessou sentir-se, por vezes, um pouco “sozinho” na Assembleia Legislativa, por ser uma das vozes mais críticas, e afirmou ainda que a exclusão dos candidatos na última eleição legislativa fez diminuir a vontade de votação dos cidadãos. Para a revisão das leis eleitorais, Ron Lam disse achar desnecessárias as disposições de proibir o recurso processual e incitamento público, frisando ainda que a comunicação social em Macau sofre da autolimitação.
Como se vê o recuo do Governo em relação à construção da estátua de Kun Iam em Hac Sá? O Governo está realmente a ouvir a população?
Desta vez ouviu a população. Fico muito contente por o Governo ter ouvido as opiniões do público para suspender as obras da estátua de Kun Iam na Barragem de Hac Sá. Acho que a decisão reduziu a polémica desnecessária na sociedade, sendo um passo importante. Para recordar o incidente, o nosso objectivo era que o Governo tinha de explicar plenamente o assunto ao público, deve aceitar a fiscalização dos cidadãos. No entanto, sobre a controvérsia desta vez, o Governo não divulgou informações claras, e também “empacota” a obra da estátua de Kun Iam com o projecto do campo de aventura juvenil de Hac Sá. O orçamento subiu de 230 milhões para 1,6 mil milhões de patacas. O Governo também admitiu que o orçamento aumentou, mas pergunto como é possível fazer um orçamento assim. Mais recentemente, o orçamento alterou novamente para 1,4 mil milhões de patacas. Em qualquer lugar do mundo, seja da governação com alta pressão, seja do governo democrático, é difícil avançar e implementar um projecto que obtém oposição extrema da opinião pública dominante. Como já disse, o recuo do Governo não é uma opção, mas o que tem de fazer. O resultado está na minha expectativa. O Governo iniciou as obras e não disse nada ao público, o projecto é praticamente não viável. Recolhemos mais de nove mil assinaturas para a petição, claro que o número de pessoas que se opõem ao projecto seria mais do que nove mil. Muitos disseram que não era “conveniente” para assinar. Digo que mais de 90% dos cidadãos se opõem o projecto, o que não é um exagero. Por outro lado, o Comissariado de Auditoria e o Comissariado contra a Corrupção também viram o que se passou. Então devem tomar a iniciativa para investigar qual é a história completa, e quem é responsável. Para um projecto tão grande, com grande orçamento, não é possível que ninguém do Governo saiba disso. Acho que deve haver uma explicação clara e um relatório detalhado para o público. As autoridades têm de ser activas para investigar o caso, para resolver a preocupação dos cidadãos.
O que pensa sobre a atitude demonstrada pelo Governo?
Tenho de admitir que, na fase inicial da pandemia, o Governo conseguiu estabilizar a sociedade. Apreciei as medidas no início do tempo de prevenção da pandemia. Mas, com a passagem de três anos, todos os problemas surgiram, e parece que o assunto da estátua de Kun Iam incendiou ainda mais. Além da acumulação do ressentimento da comunidade, o Governo acumula arrogância e, após três anos, a situação é ainda mais óbvia. É bom que um governo tenha autoconfiança. Em 2020, as autoridades de Macau até distribuíram máscaras, que cidade no mundo conseguiu fazer isso? Não tenho problemas em elogiar o Governo, como também não tenho para o criticar. No terceiro ou quarto Governo, parecia que faltava autoconfiança, até nem estavam confiantes para avançar com pequenas coisas. Contudo, agora, a autoconfiança tornou-se gradualmente em arrogância. A autoconfiança que falta na fiscalização tornou-se em arrogância. A estátua de Kun Iam veio expor todo o problema. A arrogância tem vestígios, como o encerramento “permanente” do cruzamento na Areia Preta durante 14 horas. A decisão do Governo de fechar, sem consulta prévia, o cruzamento é muito questionável. Sendo um desempenho de arrogância, a atitude dos dirigentes mostra ignorância. Porque é que o director é arrogante? Porque o secretário é… Assim, a oposição da sociedade torna-se muito grande. O ressentimento da sociedade aumentou. O Governo disse que os diversos projectos do bem-estar da população não têm recursos reduzidos, mas na verdade estão mais restritivos. O Governo está cada vez mais arrogante, e a insatisfação da comunidade aumenta. Se o recuo desta vez do Governo fosse mais lento, o ressentimento seria ainda maior, bem como o conflito na sociedade e as críticas ao Governo.
Acha que as pessoas de Macau ainda têm vontade de dar opiniões?
Tenho pensado nisso nos últimos dias. Os residentes também se preocupam com a sociedade, só que não conseguem apanhar tudo que acontece no dia a dia. Há pessoas que ainda não sabem o que passou com a estátua de Kun Iam. Há pessoas a duvidar da petição e das nossas solicitações ao Governo. A petição e o resultado do caso de Kun Iam, por outro lado, surpreendeu-me. A comunidade, e os cidadãos de Macau, têm definitivamente a capacidade e sabedoria para expressar a sua opinião de uma forma pacífica e racional, também conseguem levar o Governo a suspender projectos irracionais. Todos estão dispostos a falar sobre a sua opinião.
Alguma reflexão com o projecto de Kun Iam?
A insatisfação dos cidadãos tem vindo a acumular durante vários anos, esse ressentimento é originado no estilo deste Governo. Parece-me que este Governo acha desnecessário falar com o público sobre o que quer fazer. O líder do Governo tinha dito aos jornalistas que “não era preciso falar tudo convosco”. Mesmo que nessa altura esteja a falar com os jornalistas, mas quem é que os jornalistas representam? Os cidadãos. O que implica que muitas políticas não precisam de ser comunicadas com a sociedade. As nossas solicitações eram muito claras. Muitas pessoas agradeceram-me por lançar a petição, mas estavam desesperadas por considerarem que o projecto não seria suspenso, “porque este Governo não ouve opiniões”. E após a suspensão, todos acham que é uma vitória, mas não acho. O que disse na altura da entrega da petição é que dizer à sociedade que ainda temos espaços para fiscalizar o Governo, apesar de vivermos muitos ventos e chuvas durante os últimos anos, como a pandemia, a desqualificação, também os assuntos de Hong Kong, bem como a alteração da lei de segurança nacional. Muitos, de repente, questionam se não temos espaço para fiscalizar o Governo? Tenho de dizer bem alto à sociedade, através deste incidente, que ainda temos. Claro que respeitamos a soberania do Governo Central e o princípio de “Um País, Dois Sistemas”. Sei bem que há muitas opiniões diferentes em relação à lei de segurança nacional, mas também entendemos a razão por trás disso. O Governo Central tem a sua preocupação, tem de uniformizar o quadro legislativa da segurança nacional entre Hong Kong, Macau e o interior da China. A lei de segurança nacional não deve, e não vai afectar, o direito dos cidadãos sobre a fiscalização de acordo com a lei da governação do Governo. Muitas pessoas pensam que a revisão da lei tem impacto, até quando fiz a petição perguntaram se tenho receio de violar a lei de segurança nacional. O direito de fiscalização ao governo não foi afectado. Todavia, o Governo tem de ser humilde e ouvir as opiniões dos cidadãos, dos deputados também. O recuo do Governo não é uma vitória, mas um marco importante para reestabelecer a confiança dos cidadãos de fiscalizar o Governo.
E sobre o avanço futuro do projecto do campo juvenil de Hac Sá?
Na minha opinião, o Campo de Aventura tem instalações grandes, até Wargame, que na prática são elementos não jogo, sendo trabalhos das concessionárias. Não estou a dizer que o projecto deve ser adjudicado às operadoras de jogo, mas o Governo deve continuar com 230 milhões de patacas de orçamento para fazer o projecto, e o resto das instalações deve ser responsabilidade das operadoras. Acho que é impossível o Governo operar e fazer a manutenção disso com eficiência, uma vez que exige um grande trabalho de gestão e atrair continuamente utilizadores.
Na altura da entrega da petição, falou sobre a fiscalização da Assembleia Legislativa ao Governo. Qual é a sua opinião sobre o funcionamento da Assembleia Legislativa?
A Assembleia Legislativa tem prestado apoio aos deputados, com um sistema bem composto, e os colegas e os assessores fazem o seu melhor para exercer a função e apoiar os deputados. Sinto-me bem na Assembleia Legislativa. Antigamente era assistente da antiga deputada Kwan Tsui Hang, na Federação das Associações dos Operários. Acho que o problema de agora não está no sistema, não está na limitação prevista no regulamento, mas está no nível de que o Governo presta importância à Assembleia Legislativa. Novamente, o Governo está muito autoconfiante face à sociedade, também em relação à Assembleia Legislativa, o que é um problema. Ainda me lembro que numa sessão de perguntas e respostas do Chefe do Executivo perguntei sobre a transparência das informações. As autoridades falam sempre sobre governação com integridade. Mas, daquela vez, o Chefe do Executivo disse sempre que divulga tudo que tem.
A questão que fala está relacionada com a fiscalização financeira?
Perguntei porque é que apenas os deputados têm o relatório do PIDDA. A sociedade também precisa de ver o relatório. No caso da estátua de Kun Iam, só os deputados sabem que o orçamento era de 230 milhões de patacas. Há muitos anos, os jornalistas tinham acesso ao PIDDA, que não é um documento confidencial. Todos os projectos do Governo têm orçamento. Não há razão para não divulgar isso. Perguntei isso a Ho Iat Seng, e respondeu apenas que não tinha sido divulgado. Uma frase só. Se o Governo está disposto a aceitar a fiscalização do público? Ou tem uma atitude demasiado autoconfiante? Estamos num progresso de informação ou atraso? A sociedade está a progredir, os deputados estão a aprender, para aceder às informações. Com o desenvolvimento social, devemos ter novas medidas de fiscalização ao Governo. Uma vez perguntei sobre o relatório de investigação sobre a suspensão do Metro Ligeiro durante 18 meses, e acabei por receber apenas um comunicado de imprensa. A atitude do Governo mudou, mas o sistema não afectou a fiscalização. Se calhar, devido à desqualificação, o Governo sente-se mais autoconfiante, que na verdade é arrogância. Onde está a transparência da governação? Onde está a disciplina financeira? Acredito que os problemas ocultos, as mentiras, vão ser expostos ao público um dia. A fiscalização ao Governo é um dever, acredito que o Governo Central também quer que a força de fiscalização tenha um equilíbrio. Só assim a sociedade terá uma boa governação. Só assim a RAEM terá um desenvolvimento adequado e atenderá às necessidades da sociedade.
É considerado uma das vozes mais críticas no Hemiciclo. O que acha disso?
Tenho de salientar que a Assembleia Legislativa, na sua natureza, deve ser diversificada. O problema não é que falo demasiado, mas as outras pessoas falam muito pouco. Um deputado só tem 30 minutos para falar numa reunião, por dia, o tempo não é muito. Só estou a fazer o trabalho normal. Em comparação com o passado, não sou, absolutamente, aquele que fala particularmente muito. Apoio a abertura das reuniões das comissões permanentes, mas perdi na votação. A 3.ª Comissão Permanente é fechada, respeito isso. Portanto, o que discutimos na comissão, o público não sabe, os jornalistas não sabem. A conferência de imprensa à margem de reunião também não dá todas as informações. Tenho assim de levantar as questões de novo no plenário para o Governo responder, para esclarecer a sua posição. Isso tem de ser dito publicamente, e no futuro o público saberá para acompanhar o que o Governo tem prometido. O público merece explicações de tudo. Apesar de tudo, tenho de confessar e admitir que o meu voto não vai ser decisivo na Assembleia Legislativa. Mas claro que nem é possível ser decisivo com um só voto. No entanto, isso não significa que não devo e não posso falar da minha opinião apenas porque o meu voto é minoritário. Estou na Assembleia Legislativa, estou a representar a sociedade e trago opiniões para aqui, mesmo que não consiga mudar o resultado, tenho de fazer o meu melhor para opinar.
Quanto à revisão das leis eleitorais, tem receio de ser desqualificado após as críticas ao Governo?
Não me preocupo, mas sei que muitas pessoas se preocupam nisso. Há pessoas a dizer que têm receio de não me verem na próxima legislatura, mas acho que só estou a exercer a minha função como deputado. Se não é possível fiscalizar o Governo conforme a lei e com fundamentos e razões, então nem precisamos da Assembleia Legislativa. Faço tudo de forma racional para fiscalizar o Governo, acho que não vai haver problema.
Na sua opinião, Macau realmente precisa agora destas leis?
Para algumas disposições, como não se poder recorrer à decisão de exclusão e como o incitamento público de votar em branco, acho que não são necessários. Eu percebo que o Governo Central quer uniformizar o padrão como em Hong Kong, com o princípio ‘Macau governada por patriotas’, mas na última eleição legislativa também já fizeram isso. Desta vez é só para colocar isso na legislação. Na minha opinião, não se deve proibir o recurso judicial, isso não é razoável. “Um País Dois Sistemas” já prevê esse direito básico de recurso. Na verdade, proibir o recurso não vai tornar essa lei mais eficaz, mas provoca mais controvérsia desnecessária, e mais oposição desnecessária, deixando o público ainda mais desconfiado com a lei. É um direito tão básico, mas porque é que não ousa ter essa disposição? Podemos seguir o mecanismo jurídico vigente, no passado, para a permissão de manifestações, podíamos igualmente recorrer ao Tribunal de Última Instância. Também acho que é inútil a estipulação sobre o incitamento público. O Código Penal já prevê disposições semelhantes sobre o incitamento, nem é preciso mencionar a lei de defesa da segurança do Estado. O objectivo de ter esse artigo é para a lei ser mais eficaz, ou só para mostrar [ao Governo Central] que tem feito o trabalho? E, no final, se as pessoas fazem coisas controversas à margem da lei, vai tornar a lei ainda mais desnecessária.
Foi jornalista no passado. Como se vê o estado actual da liberdade de imprensa em Macau?
Sobre a comunicação social em Macau, será que existe uma linha de limitação muito clara? Na verdade, não há. Mas há um tipo de auto-limitação. Hoje em dia, não há comunicação social com muita liberdade de fazer escolha, por exemplo, de falar com qualquer pessoa. Não dizem expressamente que não podem fazer o quê, não dão a ordem, mas incomodam até que [os jornalistas] deixem de fazer algo, ou fazem com que [os jornalistas] pensem que não podem, ou não seja bom, para fazer algo. Os jornalistas também me dizem que às vezes escrevem algo que o Governo da RAEM não gosta e recebem telefonemas do Governo, o que não faziam no passado. O ambiente da imprensa, como o ambiente social e o da Assembleia Legislativa, será que foi alterado? Não propriamente, mas sim a mentalidade. Mas acho que isso não tem, praticamente, nada a ver com a lei da segurança nacional, que trata de assuntos de nível nacional, a linha não é tão apertada como todos pensam. Na Assembleia Legislativa também crítico assim o Governo, o mais importante é termos razões para fazer isso.
E o que acha da desqualificação da última eleição?
A desqualificação, na verdade, fez com que as pessoas não quisessem votar, o que prejudicou ainda mais as eleições. Após a exclusão naquela altura, ponderei seriamente se deveria continuar a candidatar-me, questionava se haveria ainda espaço de discussão? Falei com a equipa e decidimos ficar na corrida. Não me tornei mais agressivo, nem conservador devido à desqualificação, persisto no meu princípio de trabalho. Se me perguntar se me sinto sozinho na Assembleia Legislativa estaria a mentir se dissesse que não. Sinto-me um pouco. Continuo a ser eu, Ron Lam, nem agressivo, nem conservador. Às vezes também hesito, mas lembro-me sempre que não posso mudar a minha forma de trabalhar. Os eleitores queriam votar em Ron Lam, então continuo a fazer o que eu, Ron Lam, devo fazer.