Jonathan Kaufman, antigo chefe de redacção de Pequim do Wall Street Journal e vencedor de dois Pulitzer, está hoje em Macau para falar sobre o livro “Kings of Shanghai. The Rival Jewish Dynasties That Helped Create Modern China”, que lançou em 2020. Em entrevista ao PONTO FINAL, Kaufman descreve Macau como uma cidade que deixou de ser sonolenta para ser bem desperta e destaca o cariz cosmopolita de Hong Kong e Xangai, focando-se nas comunidades judaicas das duas cidades – nomeadamente nas famílias Kadoorie e Sassoon. Os Kadoorie chegaram a ter laços com Macau e com comerciantes portugueses no território, conta o autor. Jonathan Kaufman estará hoje na Livraria Portuguesa para uma palestra que começa às 18h30.
Jonathan Kaufman é um autor e jornalista norte-americano, vencedor de dois Pulitzer. Hoje, pelas 18h30, estará na Livraria Portuguesa para falar sobre o mais recente livro, editado em 2020, intitulado “Kings of Shanghai. The Rival Jewish Dynasties That Helped Create Modern China”, que fala sobre a influência de duas famílias judias – Kadoorie e Sassoon – tanto em Xangai como em Hong Kong. Em entrevista ao PONTO FINAL, Kaufman diz que “em Xangai e em Hong Kong, há consciência da história cosmopolita que as duas cidades têm”. Aliás, o autor diz mesmo que “a ideia de que estas cidades têm um perfil internacional não é algo novo”. Esse perfil internacional foi conquistado também através do trabalho da comunidade judaica, considera, explicando que os Kadoorie também deixaram marca em Macau ao aproveitarem os comerciantes portugueses do território para expandirem os seus negócios. Jonathan Kaufman também foi chefe de redacção de Pequim do Wall Street Journal, no início dos anos 2000, que considera ter sido “a era dourada da China”. Agora, o autor norte-americano olha com tristeza para as restrições no país e diz que “o mundo não tem um entendimento melhor sobre a China porque a China está a restringir cada vez mais o acesso ao país”. Sublinhando a admiração que tem pelo país, o jornalista lamenta a tensão entre a China e os EUA.
É a primeira vez que vem a Macau?
Já aqui estive algumas vezes, em 1979, antes de os casinos aparecerem. Estive aqui depois de me graduar e quando trabalhei na Bloomberg vim cá para algumas entrevistas sobre os negócios de Macau.
Na altura, qual a impressão com que ficou de Macau?
Macau sempre foi um lugar interessante. Está enraizado na história, tem muito charme e dá uma sensação europeia. Mas, com os casinos, mudou muito, transformando-se numa cidade muito dinâmica e um destino muito turístico. Macau passou de cidade sonolenta a cidade bem desperta.
Vai participar, hoje, numa sessão na Livraria Portuguesa. O que podemos esperar?
Vou falar sobre o meu livro “Kings of Shanghai”, que é sobre duas famílias judias que vieram para a China nos anos 1840, na sequência da Guerra do Ópio, e acabaram por dominar os negócios, a política e a economia da China durante 150 anos. Uma das famílias, os Kadoories, ainda são muito conhecidos. Parte da história é que eles eram judeus e considerados forasteiros e, por isso, os Kadoories acabaram por criar alianças nos negócios com outros imigrantes, incluindo portugueses. Fala sobre as raízes de Hong Kong e de Xangai, enquanto cidades internacionais e cosmopolitas, mesmo durante os séculos XIX e XX. A ideia de que estas cidades têm um perfil internacional não é algo novo. Também fez sempre parte de Macau e os Kadoories, enquanto família judia, faziam parte disso, fazendo alianças com os portugueses.
Qual era a sua influência em Macau?
Alguns portugueses imigrantes que eram homens de negócios vieram para Macau e para Hong Kong. Apesar de os Kadoories não terem investido directamente em Macau, trabalharam com imigrantes portugueses na construção de casas e apartamentos em Hong Kong. Viraram-se para a capacidade intelectual e na área dos negócios dos portugueses de Macau. Não creio que tenham aqui construído alguma coisa directamente, mas trabalharam com os portugueses – nomeadamente homens de negócios – para ajudar a tornar Hong Kong mais próspera e Macau também beneficiou disso.
Como é que teve contacto com a história destas duas famílias judias?
Quando comecei a visitar a China, no final da década de 1970 e no início dos 1980, a China ainda estava muito sob a influência do Partido Comunista. Mao tinha morrido em 1976, toda a gente usava os casacos azuis ao estilo de Mao. Mas quando andava em Xangai via muitos sinais de uma presença judaica significativa. Por exemplo, o The Peace Hotel, no The Bund, foi construído por um ‘playboy’ milionário judeu, nos anos 1920. Os Kadoories viveram em Xangai e tinham uma mansão enorme, chamada Marble Hall. Também havia judeus europeus, de Viena e Berlim, que foram para Xangai à procura de segurança durante a Segunda Guerra Mundial. Enquanto jornalista, eu reparava nestas coisas, enquanto cobria outras histórias, mas depois decidi desenterrar a história e descobri o que trouxe os judeus para Xangai e depois percebi que, depois de Xangai cair para os comunistas, estas famílias judias mudaram-se para Hong Kong. Em particular, os Kadoories tornaram-se muito poderosos e ricos.
O livro “Kings of Shanghai. The Rival Jewish Dynasties That Helped Create Modern China” passa por várias eras históricas, como a Guerra do Ópio, a Segunda Guerra Mundial, a fundação do Partido Comunista da China, por exemplo. Como é que fez a investigação?
A investigação foi feita de três formas. A mais importante foi ter falado com membros destas duas famílias e vi os seus arquivos – os diários, cartas, fotografias. Com isso consegui perceber o que estas famílias alcançaram. Também passei muito tempo em Xangai e Hong Kong a analisar documentos, para perceber o lado chinês. Pude entrevistar alguns membros da família e até alguns chineses contemporâneos que ainda estão vivos hoje, para perceber como era Xangai e Hong Kong na altura e qual o papel destas famílias.
O seu objecto de investigação tem sido a história dos judeus e os judeus pelo mundo. As suas outras obras têm a ver com os judeus na Europa de Leste [A Hole in the Heart of the World: Being Jewish in Eastern Europe] e com os judeus na América [Broken Alliance: The Turbulent Times Between Blacks and Jews in America]. Consegue encontrar algum ponto em comum entre as comunidades judaicas, quer seja na China, na Europa ou na América?
O ponto em comum que eu encontro tem a ver com o facto de serem todos judeus e praticarem a sua religião. Muitas vezes os judeus deixam de ir às sinagogas e não cumprem todos os rituais, mas continuam a ter os valores que os tornam muito curiosos, interessados, não têm medo de ir para outros países e explorar outras possibilidades. De muitas formas, os judeus desempenharam esse papel de serem empreendedores, intelectuais, homens de negócios. Estão sempre a tentar encontrar forma de serem bem-sucedidos, mas também à procura de novas ideias e inovações. Onde quer que seja, estão sempre entre as pessoas mais criativas e isso muitas vezes faz com que sejam pouco populares. O antissemitismo advém muitas vezes da inveja. Em Hong Kong e em Xangai, os judeus foram tão bem-sucedidos que os britânicos não gostaram. Em Xangai e Hong Kong, muitas vezes não era permitido aos judeus entrarem em determinados clubes e essa foi uma das razões pelas quais os judeus encontraram amizade e oportunidades de cooperação com outras comunidades de imigrantes, como os indianos ou os portugueses.
Esse antissemitismo sentido pelos judeus em Hong Kong e Xangai foi apenas da parte dos britânicos ou também dos chineses?
Dos britânicos. Os chineses olhavam para as famílias judias apenas como ocidentais. Achavam que eram como os britânicos, talvez um pouco diferentes, mas não faziam distinção. Nos dias que correm, a liderança chinesa está muito mais consciente dos judeus, de Israel, e da forma como os judeus são diferentes. Se olharmos para a história, no século XIX e início do século XX, os judeus eram apenas vistos como parte do Ocidente. Mas uma coisa interessante era que Elly Kadoorie [patriarca da família Kadoorie] tinha uma relação próxima com Sun Yat-Sen, fundador da China moderna, que foi uma das primeiras pessoas a apoiar a criação de um Estado judeu, que depois se tornou Israel. Há essa ligação entre os judeus, China e Israel, que remonta ao início do século XX.
Foi chefe de redacção de Pequim do Wall Street Journal. O que recorda da experiência? O que destaca?
Eu fui chefe de redacção de Pequim do Wall Street Journal durante três anos, no início dos anos 2000. De muitas formas, acho que esse período foi a era dourada da China. Havia uma grande actividade económica e havia muito entusiasmo com o crescimento da China. Enquanto jornalistas, podíamos viajar por todo o país para escrever notícias. De certa forma, isso, hoje em dia, desapareceu. Tive muita sorte por ter estado na China naquela altura e trabalhar para um jornal norte-americano, podendo explicar a China ao mundo. Sentíamos que a China estava a abrir-se cada vez mais. Isso mudou radicalmente nos últimos anos.
Quais são as maiores mudanças nesse aspecto?
Há algumas mudanças. Obviamente há muito mais preocupação em relação a protestos, mais preocupação em relação às críticas ao Governo, por isso há muito mais vigilância na China. Há também uma China mais assertiva, mais nacionalista. Tanto a China como os Estados Unidos estão a ficar cada vez mais desconfiados um do outro, o que, na minha opinião, é mau para o mundo, nomeadamente para a economia mundial. A China tem agora desafios económicos. A China obrigou a que vários jornalistas americanos saíssem do país, o que é triste, porque o mundo não tem um entendimento melhor sobre a China porque a China está a restringir cada vez mais o acesso ao país.
Ao longo dos séculos, a China tem intrigado o Ocidente. Também o intrigou a si?
Sim, sempre. Eu comecei a ir à China quando tinha 20 e poucos anos, vivi lá com a minha família durante três anos. Os meus filhos têm um grande fascínio pela China, aprenderam mandarim, têm amigos que vivem na China. Tenho uma grande afeição pelos chineses e admiro muito o que a China fez nos últimos 50 anos desde a reforma e abertura. Essa é uma das razões pelas quais fico triste por ver agora a tensão entre a China e os EUA. Uma coisa positiva é que o meu livro vai ser traduzido e vai ser publicado na China. Espero que isso dê oportunidade para se falar mais sobre estas famílias e também sobre as várias histórias que fizeram da China um lugar muito cosmopolita e com muitos tipos de pessoas que forjaram a sua história, não apenas chineses, mas judeus, indianos e outros.
Acha que as pessoas na China conhecem bem esse tipo de história ou é algo que a maioria das pessoas não sabe?
Muitas pessoas na China não conhecem a história, mas, tanto em Xangai como em Hong Kong, as pessoas são muito interessadas por História. Da última vez que estive em Xangai, antes da pandemia, estava a passar junto a um grande hotel construído por um milionário judeu, e havia um grupo de turistas com o guia a falar em chinês sobre a sua história e sobre o facto de ter sido construído por uma família judia. Em Xangai e em Hong Kong, há consciência da história cosmopolita que as duas cidades têm.
Quais os planos para o futuro? Está a trabalhar em algum livro novo?
Estou a pensar num novo livro, mas será sobre os Estados Unidos. Como fui correspondente no estrangeiro ao longo de tantos anos, voltei para os EUA e às vezes sinto-me como um correspondente no estrangeiro no meu próprio país. O meu próximo livro tentará compreender o que se passou nos EUA ao longo dos últimos 30 anos e tentar observar as coisas boas e as coisas más que moldaram os EUA e criaram o mundo em que vivemos hoje. Vou redescobrir o meu país, para variar.
De que forma é que irá abordar essa temática?
Eu gosto sempre de escrever os meus livros sobre pessoas normais e como é que as mudanças afectam essas pessoas. No livro sobre Hong Kong e Xangai escrevo sobre aquelas famílias. Para o meu novo livro sobre os EUA acho que vou olhar mais para homens de negócios, jornalistas, activistas e trabalhadores normais, tentando contar a história dessas mudanças pelos seus olhos. A forma como pessoas comuns viram as suas vidas mudar ao longo dos últimos 30 anos.