A 24 de Fevereiro, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Popular da China (RPC) publicou um documento sobre a posição da China face às resoluções políticas da crise ucraniana. De um ponto de vista objectivo, este documento é o primeiro apresentado abertamente por um país do mundo à procura de soluções políticas para os conflitos ucraniano-russos; no entanto, existem alguns desafios e obstáculos políticos sérios que devem ser enfrentados primeiro para que ambas as partes possam chegar à mesa das negociações.
O documento esboça doze pontos sobre a posição da RPC.
Primeiro, a China apela a todas as partes para que respeitem a soberania de todos os Estados, incluindo a sua independência e integridade territorial. Todos os países devem manter as suas relações internacionais, observar a equidade e justiça internacionais, e seguir o direito internacional sem adoptar dois pesos e duas medidas.
Segundo, a protecção da segurança nacional não pode minar a segurança nacional de outro Estado como um custo, enquanto que a segurança regional não pode ser reforçada e alargada através de blocos militares. Os interesses de segurança de todos os Estados devem ser respeitados e resolvidos adequadamente. Todos os Estados devem insistir em pontos de vista de segurança comuns, abrangentes, cooperativos e sustentáveis. Devem visar a paz a longo prazo, construir um quadro de segurança equilibrado, eficaz e sustentável na Europa, e opor-se a qualquer movimento para colocar a segurança de um Estado sobre os alicerces da insegurança de outros Estados – um movimento que leva a confrontos entre blocos sem proteger a paz e a segurança do continente europeu.
Terceiro, os conflitos e as guerras não têm um lado vitorioso. Todos os lados devem ser racionais e comedidos, não pôr o petróleo a arder, não exacerbar as contradições e evitar tornar a crise ucraniana incontrolável. Todas as partes devem apoiar a Rússia e a Ucrânia a retomar o diálogo directo e a promover a moderação na situação actual, levando eventualmente a um cessar-fogo abrangente.
Em quarto lugar, iniciar conversações de paz é a única solução para resolver a crise ucraniana. Todas as medidas benéficas para a resolução pacífica da crise devem ser encorajadas e apoiadas. O mundo internacional deve insistir no diálogo e na promoção de conversações, criando assim uma condição favorável para as conversações de paz. Aqui, a China está disposta a desempenhar um papel construtivo.
Em quinto lugar, todas as medidas benéficas para a resolução da crise humanitária devem ser encorajadas e apoiadas. As acções de apoio ao humanitarismo devem ser neutras, justas e evitar a politização. Devemos tomar medidas para proteger a segurança dos cidadãos comuns e devemos criar corredores humanitários para que sejam evacuados. A ajuda humanitária deve ser reforçada com rapidez, segurança e sem obstáculos. O papel das Nações Unidas na facilitação da coordenação na assistência humanitária deve ser apoiado.
Em sexto lugar, as partes em conflito têm de respeitar estritamente o direito internacional e humanitário e evitar atacar civis e instalações civis. Devem proteger as mulheres, crianças e vítimas e respeitar os direitos básicos dos prisioneiros de guerra. A China apoia a Rússia e a Ucrânia no intercâmbio de prisioneiros de guerra e na criação de melhores e favoráveis condições para a paz.
Sétimo, a China opõe-se a que as partes em conflito ataquem as centrais nucleares e as instalações nucleares pacíficas. Apela a todas as partes para que respeitem a lei internacional sobre segurança nuclear e evitem acidentes nucleares provocados pelo homem. É apoiada a acção da agência internacional de energia atómica para promover a protecção da segurança das instalações nucleares pacíficas.
Em oitavo lugar, as armas nucleares não devem ser utilizadas, de modo a que a guerra nuclear seja uma realidade. Opomo-nos à ameaça de utilização de qualquer arma nuclear e devemos impedir a proliferação de armas nucleares, a fim de evitar qualquer crise nuclear. Opomo-nos a que qualquer Estado pesquise e desenvolva armas bioquímicas.
Nono, todas as partes devem implementar o acordo de transporte de alimentos assinado pela Rússia, Turquia e Ucrânia e pelas Nações Unidas. Apoiamos a importante função das Nações Unidas e propomos soluções viáveis na defesa da cooperação internacional em matéria de segurança alimentar, com vista a resolver a crise alimentar mundial.
Décima, as sanções unilaterais não podem resolver os problemas, mas criam novos problemas. Opomo-nos a sanções unilaterais sem a aprovação prévia do Conselho de Segurança Nacional das Nações Unidas. Os Estados em causa devem pôr fim às sanções unilaterais e às jurisdições há muito armadas de forma excessiva e arbitrária em relação a outros Estados. Esta medida pode reduzir a temperatura da crise ucraniana e criar boas condições para o desenvolvimento económico e de subsistência dos Estados em desenvolvimento.
Em décimo primeiro lugar, todos os Estados devem proteger a actual economia mundial moderna e opor-se à sua politização, armamento e evitar tratá-la como um instrumento. Todos os Estados devem reduzir os impactos da crise na energia, finanças, comércio e transportes internacionais, para que a recuperação económica global não seja prejudicada.
Em décimo segundo lugar, a sociedade internacional deveria adoptar medidas para reconstruir as zonas devastadas pela guerra após o conflito. A China está disposta a desempenhar um papel construtivo neste aspecto.
A julgar pelos doze pontos acima referidos, a China expôs a sua posição e apresentou-se como uma “grande potência” com diplomacia apropriada para lidar com a guerra russo-ucraniana.
Contudo, há vários desafios e problemas que levam à realização da visão chinesa de paz.
Em primeiro lugar, a Rússia insiste que não deve haver condições prévias em quaisquer conversações de paz – uma posição contrária à mais recente resolução aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, que apela à Rússia para que retire as suas forças da Ucrânia. A resolução foi redigida pela Ucrânia em consulta com os seus aliados ocidentais, e foi aprovada por 141 Estados a 7 com 32 abstenções. Os sete Estados contra a resolução foram a Bielorrússia, Nicarágua, Rússia, Síria, Coreia do Norte, Eritreia e Mali. O actual impasse entre a posição russa e a resolução da ONU apoiada pelos aliados ocidentais da Ucrânia significa que, como o documento de paz chinês mencionou, o mundo está politicamente dividido entre blocos militares, bloco ocidental contra o bloco russo, embora a China permaneça relativamente neutra.
Em segundo lugar, alguns críticos do plano de paz chinês disseram que a RPC foi inclinada para o lado russo e não para o lado ucraniano. No entanto, estes críticos parecem ignorar o conteúdo dos 12 pontos apresentados pela China, especialmente os dois primeiros pontos sobre a protecção da soberania e da segurança nacional que não podem ser feitos à custa de outro Estado – dois pontos que apontaram não só para a Ucrânia e a Rússia mas também para outros Estados que apoiam a Ucrânia e a Rússia.
Terceiro, enquanto a Rússia se agarra às áreas de Donbas, o que significa que a sua ocupação de Donbas criou um facto consumado que teria de ser aceite pela Ucrânia e pelos seus aliados ocidentais no caso de quaisquer conversações de paz – uma posição que é actualmente rejeitada tanto pela Ucrânia como pelos seus apoiantes ocidentais. No entanto, pedir à Rússia que se retire das regiões de Donbas seria difícil e praticamente impossível, pois a estratégia russa é ocupar os territórios e iniciar qualquer conversa de paz com a supremacia militar.
Em quarto lugar, o plano de paz chinês parece um acordo de cessar-fogo, incluindo assistência humanitária, o abandono de ataques nucleares e armas, e a protecção de civis, incluindo mulheres e crianças. No entanto, é controverso se o cessar-fogo teria condições prévias – um cenário que não tem sido mencionado muito claramente no plano de paz da RPC.
O plano de paz chinês, tal como acima exposto, tem alguns elementos que podem ser implementados como condições conducentes às conversações de paz, nomeadamente os pontos 5 a 10. Se as partes em conflito observarem alguns dos pontos de 5 a 10, nomeadamente alguns tipos de declarações abertas de ambos os lados para abandonar as armas nucleares, para permitir a ajuda humanitária, para abrir um corredor seguro para os civis, então estes movimentos criariam provavelmente as condições para o cessar-fogo, se não necessariamente as conversações de paz.
Em quinto lugar, enquanto os EUA e alguns dos seus aliados não confiarem nos esforços da China e considerarem a RPC como sendo pró-Rússia, o plano de paz chinês continua a ser pouco atractivo para eles. Observações recentes feitas pelo Secretário de Estado norte-americano Anthony Blinken revelaram as preocupações dos EUA sobre as possíveis peças sobresselentes estratégicas chinesas e equipamento de telecomunicações que foram exportados para a Rússia, pois o equipamento poderia criar as possibilidades de ser utilizado na guerra russo-ucraniana. A profunda desconfiança em relação à China continua a ser um factor crucial a obstruir as perspectivas de uma conversa de paz entre a Rússia e a Ucrânia.
O décimo ponto do plano de paz chinês – sem sanções unilaterais – parece apontar para os EUA, demonstrando as tensas relações sino-americanas. Nestas circunstâncias, continua a ser difícil para a China agir como intermediário para intermediar um acordo entre a Rússia e a Ucrânia, pelo menos a curto prazo.
Em sexto lugar, as diferenças ideológicas continuam a ser um obstáculo a qualquer conversa de paz. O plano de paz chinês apela a todos os Estados para que abandonem a mentalidade da Guerra Fria, mas a formação de um bloco militar de apoio à Ucrânia é uma espécie de Guerra Fria que vê a Rússia como um Estado expansionista que tem de ser controlado. De facto, a Rússia tinha e tem ambições territoriais sobre os territórios ucranianos orientais. Mesmo aqueles que o plano de paz chinês apela a todos os Estados para que abandonem a politização, a realidade é que a invasão russa da Ucrânia foi, sem dúvida, um movimento de politização em primeiro lugar.
Em conclusão, o plano de paz chinês parece mais um acordo de cessar-fogo do que um projecto muito claro, que estabelece os detalhes de como as partes beligerantes seriam capazes de chegar à mesa de negociações em primeiro lugar. Exigindo conversações sem condições prévias, a posição russa é clara: a sua ocupação das áreas de Donbas seria, espera-se, “permanente”. Exigindo conversações de paz com a condição prévia da retirada russa, a resolução da Assembleia Geral da ONU aponta para o cerne do problema nas conversações de paz. O plano de paz chinês afastou-se da discussão das condições prévias para as conversações de paz, embora os pontos 5 a 10 sejam indiscutivelmente acções que levariam a condições favoráveis a um cessar-fogo e a conversações de paz. Ainda assim, o plano representa um passo crucial dado pela RPC para apelar a todas as partes para a calma, conversações de paz, despolitização e para evitar a escalada de conflitos. A maioria dos elementos do plano de paz chinês pode ser incluída em qualquer acordo de cessar-fogo no futuro; no entanto, criar as condições prévias das partes em conflito para irem para a mesa das negociações é o passo mais crucial que ainda falta. Como tal, as perspectivas pacíficas da guerra russo-ucraniana permanecem remotas, a menos que a liderança de ambos os lados modere a sua posição ideológica e altere os seus pontos de vista políticos.
Sonny Lo
Autor e professor de Ciência Política
Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Macau News Agency/MNA