Começou há um ano a invasão russa da Ucrânia, descrita por Vladimir Putin como uma “operação militar especial”. Na manhã de 24 de Fevereiro de 2022, tropas russas entravam em território ucraniano, em direcção a Kherson, Kharkiv e Kiev, e ouviam-se explosões na capital da Ucrânia. Um ano depois, o conflito continua num impasse.
Doze meses depois, a invasão causou dezenas de milhares de mortos em ambos os lados e provocou a maior crise de refugiados da Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Mais de oito milhões de ucranianos foram deslocados dentro do seu país e mais de oito milhões fugiram do país até Fevereiro deste ano. O PONTO FINAL ouviu cinco especialistas em assuntos internacionais e em comum têm o facto de acharem que a guerra não terminará tão cedo.
EDMUND SHENG DIZ QUE É INEVITÁVEL QUE A GUERRA CONTINUE
É inevitável que a guerra se prolongue no tempo porque a sua resolução depende de factores internos e externos. A ideia foi transmitida pelo professor universitário Edmund Li Sheng.
“Esta é uma situação que não gostaríamos de testemunhar, mas, após analisar factores internos e externos, é inevitável que o conflito continue por muito tempo”, indicou o antigo responsável pelo Centro de Estudos Russos da Universidade de Macau.
Na opinião do especialista em assuntos russos, “este conflito só terminará quando os problemas internos e externos ficarem sanados de forma harmoniosa”, utilizando como força motriz as negociações entre os dois lados para se chegar a um acordo de paz. No entanto, a nível internacional, a intromissão de outas nações no conflito estão a “alimentar a chama” da guerra.
Edmund Sheng considera que as consequências negativas da guerra vão muito além dos aspectos diplomáticos, de segurança e económicos. Também as questões de subsistência da população de cada país são afectados em diferentes graus, indicou, acrescentando que também há que observar as questões da energia, alimentação, ambiente e protecção cultural, por exemplo.
Sobre o papel desempenhado pela China ao longo do conflito, Edmund Sheng descreveu a intervenção de Pequim como “marginal e contida”. A China tem reiterado os argumentos da Rússia para a justificar a guerra, no que toca às “provocações” do Ocidente e à expansão da NATO, mas para Sheng a posição chinesa tem tido por base o princípio de “não intervenção e não interferência nos assuntos internos de outros países soberanos independentes”. “Na resolução do tratamento e das consequências do conflito, a China aderiu às suas próprias normas diplomáticas”, apontou.
SALES MARQUES ASSINALA CONSEQUÊNCIAS NEGATIVAS DA GUERRA A NÍVEL GLOBAL
“As consequências directas e indirectas da guerra da Ucrânia são muitas”, começou por dizer José Luís Sales Marques, notando que “a maior tragédia é para os países beligerantes, em particular a Ucrânia, cuja população sofre os horrores da guerra e a destruição dos seus campos e cidades, fábricas e infraestruturas, constantemente bombardeados ou ocupados pelas forças invasoras”. Por outro lado, “os russos também sofrem e em proporções não menos gravosas, embora a dimensão desse sofrimento seja pouco conhecida, porquanto escamoteada, por todas as partes”, apontou o presidente do Instituto de Estudos Europeus de Macau.
Um dos efeitos colaterais da guerra tem sido a inflação induzida pelo aumento do preço dos combustíveis, devido à dependência energética de vários países e regiões do gás natural e petróleo russos. Destaque também para o aumento do preço dos cereais devido à escassez de produção por parte da Ucrânia. Por outro lado, o aumento abrupto do número de refugiados ucranianos está a colocar pressão nos recursos dos países que os recebem, indicou Sales Marques.
“Mas, as consequências mais gravosas para a Europa e para o resto do mundo é o surgimento de uma guerra fratricida dentro de portas, a uma escala nunca vista desde 1945; o acentuar da desconfiança e o reacender do bipolarismo e maniquísmo na política internacional e as imensas armadilhas securitárias, que estão a ser espalhadas um pouco por toda a parte”, afirmou.
José Luís Sales Marques também considera que a posição da China tem sido de “neutralidade”, esforçando-se para “encontrar os caminhos da paz”. “Todavia, a narrativa e propaganda a favor da guerra encontra-se bem viva e presente entre os beligerantes e seus aliados, pelo que a paz não será brevemente alcançada”, concluiu.
GUERRA NA UCRÂNIA FOI O 11 DE SETEMBRO DA EUROPA, DIZ ARNALDO GONÇALVES
“A guerra na Ucrânia foi o 11 de Setembro da Europa. Despertou-nos para uma ameaça que os políticos europeus e a própria NATO subestimaram. Ameaça política, energética, militar, mas também ideológica e sociológica”. A frase é de Arnaldo Gonçalves, antigo professor de Ciência Política e Relações Internacionais do Instituto Politécnico de Macau.
Na opinião do politólogo e autor de oito livros sobre política e relações internacionais, “os europeus fixaram-se na utopia de um mundo pacífico, desnuclearizado em que os exércitos eram inúteis” e “a invasão russa da Ucrânia veio mostrar que a Rússia é um poder expansionista e agressor que, se o deixarem livre depois de anexar a Ucrânia, avançará para a Roménia, Moldávia e estados do Báltico, pondo em causa a própria segurança da Europa”.
Para Arnaldo Gonçalves, o prolongar desta guerra ao longo de um ano é explicado pela “resistência do povo ucraniano e a agilidade do próprio exército regular ucraniano”, factores que, na opinião do politólogo, foram subestimados por Moscovo. Além disso, “Putin foi surpreendido pela liderança e capacidade de comunicação de Zelensky, um político exterior ao quadro partidário ucraniano, que se soube antecipar às manobras de Putin e fazer uma excelente contrapropaganda à comunicação atabalhoada de Putin”.
Também Arnaldo Gonçalves acredita que o conflito vai prolongar-se no tempo, salientando que “o apoio financeiro, humanitário e militar dos Estados Unidos, da NATO e da União Europeia à Ucrânia pode ajudá-la a resistir às próximas investidas de Moscovo”.
SONNY LO FALA NO INÍCIO DE UMA NOVA GUERRA FRIA
Sonny Lo, professor de Ciência Política sediado em Hong Kong, também não vislumbra um fim para a guerra. Se, numa fase inicial, os dois lados se juntaram para negociações, Rússia e Ucrânia parecem estar agora mais afastados. “A situação é tal que a parte oriental do território ucraniano está ocupado pela Rússia e, como tal, são necessários mediadores, mas ambos os lados são liderados por nacionalistas – extremistas do lado ucraniano e expansionistas do lado russo”, comentou o académico.
Por isso, “a guerra arrastar-se-á, a menos que ambos os lados suavizem a sua posição com a intervenção de Estados relativamente neutros, como a França e a China”, sugeriu. Se isso não acontecer, “as possibilidades de se chegar a um acordo são escassas”. Para Sonny Lo, “a guerra assinala, talvez, o início de uma nova Guerra Fria no mundo, com a Rússia e a China de um lado e os EUA e os seus aliados ocidentais do outro lado”.
O politólogo afirmou que esta guerra é o reflexo da “natureza egoísta” dos governantes e políticos que “vêem as guerras e os conflitos como ferramentas para a sua popularidade e legitimidade interna”. “Os Estados e os seus líderes continuam a ser auto-expansivos e auto-agressivos, sem se preocuparem com as consequências reais das guerras, as mortes, a dor e o sofrimento dos seus próprios povos”, concluiu Sonny Lo.
CHINA ESTÁ SENSÍVEL ÀS PREOCUPAÇÕES DA RÚSSIA, NOTA JIANWEI WANG
Ao mesmo tempo que se diz neutra, a China tem usado o conflito na Ucrânia para dirigir críticas ao Ocidente, nomeadamente aos EUA e à NATO, reiterando algumas das justificações da Rússia face à guerra. Jianwei Wang repete os argumentos de Pequim e garante que o país quer “salvaguardar a soberania nacional de ambas as partes, incluindo da Ucrânia”.
O professor emérito do Departamento de Administração Governamental e Pública da Universidade de Macau (UM), especialista nas relações entre a China e os EUA, alertou que “a expansão da NATO continua” e que, como referiu o Ministério dos Negócios Estrangeiros da China, isso “pressiona” e “encurrala” a Rússia, que “teve de responder”. “A Rússia está isolada na Europa e preocupa-se que a Ucrânia se torne membro da NATO, isso seria um pesadelo para a estratégia da Rússia”, sublinhou.
“A China sente empatia face à posição da Rússia em relação ao Ocidente, mas nunca apoiou formalmente a operação militar da Rússia”, assegurou o analista, lembrando que Pequim apresentou um plano de paz que deverá ser tornado público em breve. “Espero que isso signifique que a China vai desempenhar um papel mais activo como mediador do conflito”, concluiu Jianwei Wang.
Konstantin Bessmertny: “Espero que haja paz na Ucrânia e que surja uma nova Rússia democrática”
Konstantin Bessmertny, artista russo-ucraniano sediado em Macau há 30 anos, lamentou que a guerra ainda não tenha acabado: “Esperava que algo acabasse por acontecer este ano para pôr fim a esta guerra e eventualmente pôr fim ao regime corrupto construído ao longo de duas décadas – com a ajuda de ‘parceiros internacionais’ e ‘idiotas úteis’. Ao PONTO FINAL, o artista diz que o regime russo liderado por Vladimir Putin foi erigido através de “20 anos de lavagem cerebral – Hitler teve nove – , 100 anos de selecção degenerativa, duas guerras devastadoras, execuções, campos de trabalho e de concentração e síndrome de Estocolmo, que detém uma grande parte da população num estado ‘zombie'”. Ainda assim, Bessmertny diz acreditar que “a maioria não apoia o regime, especialmente a guerra”. Para o futuro, o russo-ucraniano deixou uma esperança: “Espero que haja paz na Ucrânia e que surja uma nova Rússia democrática e sem um Governo pós-soviético-imperial-clepto-gerontocrático”.