Olhas para o palco vazio como se olhasses para um campo de oliveiras; e há um grito que atravessa esse fim de tarde, uma brisa que corta, qualquer coisa límpida a arder. No silêncio do palco vazio, o teu olhar segura o horizonte. A tua atenção ergue vozes das tábuas do palco, ervas levantam-se da terra, vozes de muitas pessoas que estiveram vivas. Antes da noite, os corpos das ovelhas tosquiadas começarão a cercar as oliveiras e a rasgar ervas com os dentes. No palco vazio, vozes de muitas pessoas que estiveram vivas durante um momento. Depois, chegará a noite sobre o campo de oliveiras e sobre o cheiro das ervas mutiladas. Tu não tens medo. Desde que subimos os degraus de pedra e entrámos no teatro, o teu sorriso transformou-se na claridade das crianças e da terra.
Sinto a minha mão a separar-se da tua. Sinto a forma da tua mão a desfazer-se no momento em que abro a minha mão vazia. Vejo os teus olhos e o teu sorriso quando te afastas. És uma criança. O teu corpo está à distância de vê-lo inteiro, menina. Aceito os passos que dás, afastas-te de mim. Sozinho, atravesso uma fila de cadeiras vazias e saio da sala. Esperarei na sala de cartazes antigos onde as outras pessoas chegarão para esperarem também. Enquanto estamos sozinhos, eu na sala de bancos compridos de madeira encostados à parede, tu no camarim, estamos juntos na sinceridade absoluta, na verdade, encontramo-nos nos rituais com que preparas o teu milagre e nos meus pequenos rituais: aperto as mãos fechadas dentro dos bolsos, leio o teu nome escrito num cartaz antigo. Seguro o bilhete. Leio todas as palavras, interpreto todos os números e reconstruo no meu olhar os pedaços de carimbo que não ficaram impressos no pequeno rectângulo de papel. Chegam as primeiras pessoas. Chegam mais pessoas. Chegam mais pessoas.
Estou sentado na cadeira onde te vi pela primeira vez. À minha volta, as pessoas sussurram porque o pano cobre o palco à nossa frente. Eu sei que estás do outro lado do pano. Eu sei exactamente onde estás. Através do pano, consigo ver-te. Apagaram-se as luzes. Acendeu-se a escuridão. Uma luz muito fraca ilumina-te o rosto, o teu vestido branco. À minha volta, as pessoas continuam o silêncio. Sob a luz que pouco te ilumina, eu sei que sentes todo este silêncio dentro de ti. De repente, um gesto. Esse gesto é essencial, caminhou durante todo o tamanho do tempo, durante eras, durante vidas inteiras e gerações até chegar agora a ti. À minha volta, as pessoas não te vêem. Sei que só eu te vejo. Entram outros actores no palco. Esse mundo ilumina-se completamente. Olho apenas para ti. És a dona desse mundo que amanhece. Sei cada uma das palavras que serão ditas, imagino cada um dos movimentos e, no entanto, cada palavra e cada movimento são inesperados no seu presente porque, durante esse tempo, existem, têm um corpo subtil, como uma pétala, como uma pena, como um incêndio, como um incêndio. É assim que me levas contigo. Olho para o teu rosto: os teus olhos grandes e castanhos, a tua pele da cor da terra, os teus lábios pequenos. Levas-me contigo. Só eu te vejo. Olho para o teu rosto. Os outros actores movimentam-se pelo palco e não te sentem, mas eu não vejo e não ouço os outros actores. Olho para o teu rosto. Só eu te vejo.
Antes, no carro, acendeste um cigarro. Passámos pela estrada que fazemos todos os dias. Enquanto conduzia, vi-te refletida de encontro ao céu. Olhavas para as árvores como se encontrasses os teus pensamentos no interior dos seus troncos. Tu sabes que apenas bato palmas para ti. Quando vens agradecer, o teu olhar procura-me entre o público. Hoje à tarde, ficámos juntos e, depois do muro, os corpos das ovelhas tosquiadas começaram a cercar as oliveiras e a rasgar ervas com os dentes. O vento, como um grito a atravessar esse fim de tarde, uma brisa que corta, qualquer coisa límpida a arder. Depois, chegou a noite sobre o campo de oliveiras e sobre o cheiro das ervas mutiladas. Entrámos no carro, a chave, o motor. Quase não olhei para a estrada. Olhei sempre para o teu rosto. Sei de cor o caminho para o teatro. Conheço o caminho para o teatro como tu conheces todas as palavras que dizes em palco.