Numa das cidades mais seguras do mundo é difícil imaginar que já se tenha sido outra coisa completamente diferente, mas, em Macau, terra de ciclos e contraciclos, estes exercícios tendem a tornar-se mais simples assim que o tempo vai passando e com ele as certezas e os receios vão alternando sucessivamente.
Devido às constantes transformações, não é por isso preciso recuar muito para encontrar um polo oposto ao presente despreocupado com as questões de segurança (excepto as de carácter “nacional”) – basta andar para trás até à década de 1990 (se bem que as autoridades dessa época diriam que o perigo afectava apenas quem andava metido no submundo das seitas, e, como os sicários tinham boa pontaria – garantiam –, a população em geral nada tinha a temer e podia levar a vida sem problemas).
Na segunda metade do século XIX, todavia, a realidade era outra. O crime parecia estar em toda a parte. Nada nem ninguém escapava.
Em Outubro de 1873, a “Gazeta de Macau e Timor” dava conta de um “roubo audacioso”. Era dizer o mínimo. O local do crime tinha sido, nada mais, nada menos, que o quarto do governador, onde uma caixa cheia de objectos de prata tinha sido arrombada e todo o seu conteúdo desaparecera. Suspeitou-se dos funcionários do palácio, que foram, um a um, interrogados, e “todos protestaram pela sua inocência, negando toda e qualquer cumplicidade com o ladrão”.
Alguém se lembrou, todavia, de “um cule de cadeira de sua ex.ª que havia sido despedido por fazer mau serviço, alguns dias antes”. Eventualmente, num exemplo da estreita cooperação judiciária que havia entre Macau e o continente, o homem foi encontrado na sua aldeia natal, próximo do território português, para onde foi levado já preso depois de ter passado pelo mandarim da Casa Branca. “Sem nenhuma dificuldade”, conta o jornal, “confessou que fora o autor do roubo de prata do palácio”. Caso resolvido.
Mas se a onda de criminalidade não poupava nem os aposentos do governador, também era verdade que aparentava haver um alvo predilecto dos amigos do alheio: os chineses mais ricos.
Naquele tempo, Macau estava já repleta deles. A abertura dos portos chineses ao comércio estrangeiro atraíra um número crescente de mercadores de todas as paragens que estavam obrigados a permanecer no território português, à espera da abertura da época de feira em Cantão. Em Macau, eram mais os portugueses que partiam do que os que ficavam ou chegavam. Os chineses compunham já a larga maioria. Dominavam todas as actividades, sobretudo comerciais, incluindo as mais lucrativas, como o tráfico de cules. Multiplicavam-se os homens de colossais fortunas.
Um deles era Vong-choi, que a “Gazeta de Macau e Timor” descreve como um “abastado negociante china”. Quão abastado? O jornal dá um exemplo. Para aliviar os “chinas que têm cadeirinhas de aluguer” do “bastante penoso” encargo de pagarem o imposto que tinha sido lançado recentemente pela câmara municipal, Vong “foi à câmara declarar que se prontificava a pagar as licenças exigidas, e se responsabilizava pelo seu pagamento todos os anos”. Mas estes não eram actos inéditos. Havia conhecimento de que, pelo menos, um outro chinês endinheirado se tinha comprometido igualmente com o pagamento de todas as licenças aos vendedores ambulantes. Tal larga e abnegada filantropia despertava admiração, mas também cobiça.
No dia 23 de Novembro de 1872, a mesma “Gazeta” dá notícia de que foram presos “alguns chinas que pretendiam agarrar Vong-choi e levá-lo numa embarcação a Hion-san, a fim talvez de pô-lo a resgate para lhe extorquirem alguns milhares de patacas. Foi também presa uma grande embarcação que se achava fundeada fora do porto pronta a receber o preso. A embarcação estava guarnecida com três peças armadas em rodízios, e espingardas e chuços, e tinha a bordo quarenta e seis tripulantes, que todos se acham presos”.
O caso dominou as atenções na cidade e a “Gazeta” dedicou-lhe ampla cobertura. Tratava-se, designava o jornal, do “mistério da Rua da Felicidade”.
Para a publicação, levantava-se uma questão primordial: “Quem foram os verdadeiros autores e promotores desta trama?”
As hipóteses, mais do que meros exercícios de criminologia básica, apontavam para o clima de desconfiança que havia entre comunidades e o mal-estar causado pela crescente vigilância dos mandarins sobre Macau. Questionava a “Gazeta”: “Foram os mandarins que quiseram prender o Vong-choi por ser interessado na emigração chinesa? Foram os anciões duma aldeia vizinha que deste modo quiseram vingar-se do Vong-choi? Ou foi só uma empresa particular que não tinha outro fim senão extorquir dinheiro? Tais são as diversas versões que se dão sobre a origem deste crime, mas nada se sabe ao certo. É um mistério como tantos outros que se têm dado em Macau, e que nunca se chegou a decifrar, porque a astúcia dos chinas consegue fazer desaparecer todos os vestígios da verdade”.
Este “mistério da Rua da Felicidade” (o plano era raptar Vong na “rua chamada do Fan-tan, que nesta cidade corresponde ao Chiado de Lisboa”) suscitou, ainda, um debate sobre a reforma penal.
A “Gazeta” deplorava o “momento de enfraquecimento do senso moral” que levara Portugal a abolir a pena de morte. Em Macau, comparando com os castigos dos tribunais chineses, os piratas eram “duplamente audazes nos crimes que cometem onde se lhes afigura que, mesmo quando mal sucedidos, encontrarão uma impunidade relativa”.
O jornal clamava pela “repressão severa e implacável” e rejubilaria, por isso, quando os criminosos conheceram o “indispensável” castigo: “Às 8 horas da manhã, no largo do Mata-Pau, achavam-se formadas em quadrado, uma força da corveta Palmela, uma dita da polícia do mar, e uma dita do corpo de infantaria do batalhão de linha (…). Imenso povo pelas ruas laterais, janelas e telhados, mostravam ansiedade e percorriam com a vista a rua principal do bazar. À última badalada das 8 horas, chegou uma força do corpo de polícia (a qual completou o quadrado), conduzindo uns sessenta chinas, dos quais vinham assistir ao castigo que se ia infligir quarenta e tantos, e dezassete vinham recebê-lo”. E “ali, no centro do quadrado formado, receberam o número de varadas que a sentença lhes marcava (…)”. Só o chefe dos salteadores sofreu 300, “sem um ai, sem se bolir e como se as não sentisse”.
Hugo Pinto
Jornalista