Ao estudar a imprensa baiana, Pablo Magalhães tropeçou na história do conterrâneo Paulino da Silva Barbosa, figura essencial no aparecimento de A Abelha da China, e de outros homens que circularam entre o Brasil e o Extremos Oriente – uma história que continua por escrever.
O ensaio “Edição e sedição em Macau: Paulino da Silva Barbosa e o jornal A Abelha da China (1822‐1823)” é o contributo de Pablo Magalhães, professor associado da Universidade Federal do Oeste da Bahia, para o livro “A Abelha da China nos seus 200 anos: Casos, Personagens e Confrontos na Experiência Liberal de Macau”, agora editado pelo Centro Científico e Cultural de Macau. Em entrevista ao PONTO FINAL, o investigador fala do homem que foi figura central no aparecimento do primeiro jornal em língua portuguesa de Macau e das suas ramificações políticas. Magalhães destaca o forte papel da maçonaria neste movimento de intelectuais e jornalistas com ligações a várias tipografias, que circularam entre diferentes territórios do então império português durante os anos 1820. Assinala o aparecimento de A Abelha da China como um momento que rompe com uma longa tradição de censura.
– Como é que acaba a estudar esta personagem, Paulino da Silva Barbosa, e o que é que nos pode dizer deste baiano que foi figura central na criação de A Abelha da China?
Pablo Magalhães – Eu na verdade trabalhava sobre a imprensa na Bahia e o estabelecimento da primeira tipografia em 1811. Foi interessante notar que a partir dessa tipografia se criou uma rede de intelectuais, jornalistas, que mais ou menos clandestinamente já tinham ideias constitucionalistas antes de 1820, já se percebe uma aproximação desse grupo aqui da Bahia a Hipólito da Costa, em Londres. O Paulino da Silva Barbosa é um desses homens, a partir de um cruzamento de dados ele vai aparecer em Macau. Mas antes de achar o Paulino, achei um outro sujeito que actuou na tipografia da Bahia: Bento José Gonçalves Serva, que foi operador da tipografia na Bahia, pelo menos em 1811 e 1815. Depois disso ele desaparece. Quando o reencontrei foi exactamente nas páginas de A Abelha da China, aí ele aparece em Macau. Esta rede se estende pela Bahia, Rio de Janeiro, o que é hoje Rio Grande do Sul, Maranhão, e inclusive essa tipografia vendia livros para Angola, Moçambique e Goa. Aí eu fui achar o Bento José Gonçalves Serva em Macau e fui ver a rede de personagens em torno dele e aí vou achar Paulino da Silva Barbosa. Esse personagem é interessante por conta das origens: ele nasce em Salvador numa cidade com grande agitação política. No final da adolescência, pelos 17 anos, ele assistiu ao enforcamento de quatro dissidentes políticos na Bahia, em 1799, homens de cor que radicalizaram o discurso político e acabaram pagando com a vida. Ele viu isso em novo e, apesar de fazer toda a carreira militar, ele cresce nessa agitação política. Quando sai da Bahia, ele vai para Angola primeiro e de seguida vai para Portugal, ele está circulando o império. Paulino estuda Matemática em Portugal e em seguida vai para Macau. Quando surgem as transformações políticas constitucionais, ele vai acabar capitaneando isso de certa forma, e o jornal é fruto disso. Apesar de que já havia pedidos para uma tipografia portuguesa em Macau desde 1819. É interessante como estes personagens estão todos localizados em lugares estratégicos, eles sempre comercializam livros ou estão envolvidos com algo ligado à parte tipográfica. Isto ainda é muito pouco conhecido, mesmo aqui na Bahia, apesar de eles terem estabelecido a tipografia, eles são pouco conhecidos.
– Como é que se explica esse desconhecimento?
P.M. – Eu suponho que por haver um deles, Manoel José da Silva Serva, que está em Lisboa, e está envolvido no movimento de Gomes Freire. Imagino que a condição desse sujeito, de uma certa clandestinidade, exigia que eles fossem muito discretos nas práticas políticas, então a gente sabe que esta questão da publicação, de um discurso muito discreto, mas esses sujeitos já tinham ideais constitucionais ali, até pela presença da maçonaria na Bahia. Nós temos presença da maçonaria desde o começo do século XIX, mas por volta de 1810-15 já está bem consolidada. É interessante que essa tipografia está muito próxima desses sujeitos que estão nesse espaço de certa forma maçónico onde as ideias circulam, com muita descrição mas ao mesmo tempo é o que há de mais moderno no pensamento político da época, muito influenciado inclusivamente pelo pensamento inglês, pelo constitucionalismo – você encontra até republicanos. É difícil medir o projecto político de Paulino mas é inegável que ele cresceu nesse universo e no próprio curso de Matemática em Lisboa você já tem a presença de sujeitos com ideais políticos bem de vanguarda.
– Já em Macau, qual foi o papel concreto de Paulino da Silva Barbosa no arranque de A Abelha da China?
P.M. – Ele chega a Macau em 1814-15. É ele o credor da tipografia do governo. Ele está como vereador mas assina como um chefe político, ele se coloca como antagonista do ouvir Arriaga. Eu penso que o equipamento já estava lá, deve ter chegado em Macau vindo do Rio de Janeiro ou de Lisboa, e quando tem essa mudança de orientação política foi o momento oportuno de criar a tipografia do Governo, que não é um fenómeno só de Macau. Depois de 1820, se você observar todo o império português, ele está criando esse parque tipográfico – na ilha da Madeira mas também em Goa.
– Há referências no próprio jornal ao Paulino da Silva Barbosa.
P.M. – Sim, o jornal funciona quase como uma espécie de diário oficial popular, deu conta inclusive do espancamento de Paulino da Silva Barbosa, ele chegou a ser perseguido, agredido mais de uma vez, e sempre é notícia no jornal de forma bastante extensa. Paulino aparece sempre como protagonista.
– Mais adiante, Paulino da Silva Barbosa acaba mesmo por ser preso, ao contrário de alguns dos seus companheiros, que decidiram fugir e exilar-se.
P.M. – A prisão dele dá-se com a chegada da fragata Salamandra que representava os interesses do absolutismo. Ele fica um tempo em Macau, mesmo com os partidários deles saindo para outras cidades como Cantão. Ele vai preso e é transportado de Macau para Goa e de Goa para Lisboa. Isso foi muito noticiado pela imprensa portuguesa. Depois disso a gente entra numa fase nebulosa. Imagino que essa documentação esteja no Rio de Janeiro mas ainda não consegui encontrar. As coisas estavam bastante tensas entre Portugal e o Brasil e imagino que ele tenha voltado ao Brasil em 1825 ou 1826, mas ele não volta para a Bahia, ao que parece ele segue directo para o Rio de Janeiro. É interessante o círculo de amizades dele no Rio de Janeiro: todos são maçons. Inclusive há uma informação no necrológio dele em que se listam os amigos e Bocage aparece como amigo dele. Essa rede de pessoas, Macau me parece também que há uma presença da maçonaria. Quando eles descrevem o Laboratório Constitucional que existia, o próprio jornal diz que esse laboratório tinha símbolos e a descrição lembra muito a simbologia maçon. Mas eu não tenho muita certeza da situação da maçonaria em Macau, por isso não fica muito claro.
– O facto de a academia continuar a produzir pensamento sobre A Abelha da China é sinal da sua actualidade? O que é que podemos aprender voltando a esses textos?
P.M. – Quando a gente se volta para a Abelha da China, há coisas que ainda permanecem por estudar. Ela rompe com toda uma história de censura, está numa vanguarda política da época. Ela pode não ser republicana, mas ela tem na constituição a base que legitima o periódico. A ideia de liberdade de imprensa já está presente aqui, coisa que não estava no Brasil. O Brasil em 1822, na Bahia tinha até 20 jornais e apenas um seguia muito essa lógica mais radical. É interessante que noutros lugares havia outros jornais com nome abelha – na Bahia teve Abelha, em Mina Gerais também, provavelmente porque na verdade a abelha também era um símbolo da maçonaria, a colmeia era um símbolo da maçonaria.
– Outra curiosidade de A Abelha da China é que, quase desde o primeiro número, há um convite à participação dos leitores. Isso também acaba por ser algo novo?
P.M. – Sem dúvida, não era muito comum esse tipo de diálogo com o leitor. Naquele momento, 1822-23, isso também acontece na Bahia, de certa forma os periódicos abrem à participação do leitor, através da publicação de cartas, etc., normalmente sob anonimato para preservar até a integridade física, porque era um momento de tensão política lá e aqui, mas era bastante salutar.
– Participa com o ensaio “A Abelha da China nos seus 200 anos: Casos, Personagens e Confrontos na Experiência Liberal de Macau” no livro editado pelo CCCM para celebrar o bicentenário do periódico. Que significado teve para si este convite?
P.M – Para mim foi uma honra, esse convite. Foi o reconhecimento de um trabalho, a gente já vinha fazendo esse levantamento da imprensa local aqui na Bahia, mas em algum momento, há uns dez anos, comecei a colecionar também esses impressos portugueses ultramarinos e Macau também entrou nesse radar, até em Xangai se publicou imprensa portuguesa. Ter a oportunidade de falar sobre a Abelha da China é o reconhecimento de um trabalho que a gente vem fazendo há alguns anos. Aqui, quando publiquei o primeiro artigo sobre a Abelha da China, pouco se reflectiu, para as pessoas não fez muito sentido porque é que um baiano estava em Macau na tipografia do governo. Aqui no Brasil é como se a história atlântica fosse toda a história, se esquecem do Índico e de como estava tudo ligado. Acho que isso foi muito culpa dos historiadores do século XIX. Quando quiseram criar uma história do Brasil nação, eles apagam essa dimensão de que o brasil era parte de um império maior. Até hoje, acho que os meus colegas ainda se equivocam. O Brasil estava muito ligado à Índia e mesmo até a Macau. Chega um momento em que o Paulino da Silva Barbosa e o partido dele chegam a cogitar tornar Macau uma espécie de província do Brasil. Pode ser um bluff político do momento, mas aparece n’A Abelha da China e é curiosíssimo. Não se sabia exactamente o que ia ser o Brasil até 1823, a Bahia poderia ficar de fora também, e aí aparece essa ideia. É interessante perceber essa dimensão global
– Para si, hoje a imprensa em língua portuguesa continua a fazer sentido em Macau?
P.M. – Penso que sim. Para além de qualquer traço de colonialismo, você estabelece aí uma ligação cultural, então faz sentido que esses jornais permaneçam, que circulem revistas e livros, vejo isso com bons olhos.
– Nunca esteve em Macau. Seria um passo importante para as suas pesquisas?
P.M. – Nunca fui a Macau, gostava muito. Conhecer Macau poderia abrir novos caminhos para a pesquisa, não só para o Paulino, mas para outros personagens que transitaram entre o Brasil e o Extremo Oriente. Com certeza não foi só ele, tem uma rede muito interessante de pessoas que estão fazendo esse trânsito e que permanecem desconhecidas. Isso pode abrir novas perspectivas e aproximar os pesquisadores de ambos os extremos.