Em Macau só pode obter uma concessão quem tiver idoneidade. É a lei que o diz. Quem não passar esse crivo, não poderá obter provimento no concurso. A idoneidade envolve a reputação, a propensão para a assunção de riscos excessivos, a situação económica e financeira, a existência de fundadas suspeitas sobre a licitude da proveniência dos fundos ou a verdadeira identidade do seu titular, a acusação ou condenação pela prática de crimes, a existência de transacções inadequadas com grupos criminosos, entre outros eventuais critérios. Este texto é sobre o último da lista.
O regulamento administrativo sobre o concurso do jogo estabelece, por isso, que as concorrentes estão sujeitas a um processo de verificação da idoneidade por parte do Governo, que abrange ainda accionistas com 5% ou mais do capital social, administradores e principais empregados com funções relevantes no casino. Este processo envolve, como vimos, verificar “se existem transacções inadequadas com grupos criminosos”. Tal, diz o regulamento, faz-se “através da análise dos dados fornecidos mediante o preenchimento” de dois formulários pelas concorrentes.
A letra da lei gera vários problemas resultantes da sua irreflectida redacção. Em primeiro lugar, a verificação de existência de transacções com grupos criminosos é, aparentemente, para ser feita unicamente com base em informação prestada pelas próprias concorrentes em dois formulários específicos. Sendo improvável que uma concorrente se voluntarie para reportar à Comissão do Concurso “transacções inadequadas com grupos criminosos”, a norma, se interpretada como está redigida, é um nado-morto.
Em segundo lugar, parece que se as transacções com grupos criminosos não forem “inadequadas”, tal já não será problemático para o governo da RAEM. O regulamento aparenta, pois, permitir que as concorrentes, seus representantes ou sócios mantenham transacções com grupos criminosos, desde que tais transacções não sejam inadequadas, independentemente da escala, duração e natureza dessas transacções. Quase 20 anos de transacções diárias com grupos criminosos seriam irrelevantes para o Governo se não fossem “inadequadas”?
Em terceiro lugar, o conceito de “inadequado” não é definido, nem sequer por remissão para outra legislação. Não se tratando de um conceito já estabelecido no sistema jurídico da RAEM, as dúvidas sobre o que constitua uma transacção admissível aumentam. Inadequado é sinónimo de transacção criminosa? De transacção ilegal (mas não criminosa)? Ou transacções que sejam tidas como meramente adversas ao sector do jogo? E adversas em que sentido? O regulamento não nos dá resposta. Como também não elucida o que sejam “grupos criminosos”.
Em quarto lugar, o regulamento usa o presente do indicativo, o que poderia fazer supor que transacções inadequadas com grupos criminosos só relevariam se ocorressem no período do concurso e não anteriormente, designadamente durante os mais de 20 anos de operação do jogo na RAEM ou noutras jurisdições.
Estas obscuridades e indefinições são preocupantes, dado que o regulamento estabelece que a concessão “apenas pode ser atribuída a uma concorrente que seja considerada idónea para a obter”. Exigência que implica, não somente a idoneidade da concorrente, como de accionistas, administradores e principais empregados.
Quando uma norma é obsoleta, como é o caso, deve procurar-se interpretá-la de um modo que lhe atribua sentido, dentro do seu espírito e tendo em conta a sua redacção. Um tribunal independente interpretaria esta norma como desqualificando concorrentes que tenham estado envolvidas, por si ou através de accionistas, administradores e empregados, em transacções significativas ou duradouras com grupos criminosos.
Como o advogado Sérgio de Almeida Correia notou no seu blog, Visto de Macau, sob o título “Dúvidas”, “seria bom que se esclarecesse se quem andou durante todos estes anos a ser patrocinado, subsidiado, a fazer contratos, associando-se em negócios e completando órgãos sociais de terceiros, e envolvido em múltiplos outros negócios com gente que está detida e acusada de associação criminosa e mais uma data de crimes, gozará de idoneidade para se apresentar a concurso, ver-lhe atribuída uma concessão, integrar órgãos sociais, ser administrador-delegado ou desempenhar funções de relevo.” Na mouche. E termina perguntando, “Ou será que não pensaram nisso?”.
Tendo em conta o estado da governação da RAEM, a pergunta é, de facto, pertinente. Será que não pensaram no que estavam a escrever? O Governo está disposto a desqualificar no concurso, por falta de idoneidade, as actuais seis operadoras? Se pensaram no que escreveram, a resposta só poderá ser afirmativa.
As relações das operadoras com promotores de jogo ao longo do período da concessão está inscrita na DICJ. Ademais, a lei e o TUI responsabilizam as operadoras por actos praticados pelos promotores de jogo. As detenções e processos-crime sobre alegados factos de enorme gravidade envolvendo as duas maiores promotoras de jogo de Macau – que tiveram relações duradouras e financeiramente relevantes com as (sub)concessionárias – atiraria a candidatura de todas ou quase todas as actuais operadoras para o caixote de lixo.
E atiraria para lá também a DICJ, se esta tivesse sujeita a juízos de idoneidade…
O problema é acentuado por em Macau o estado de direito ter entrado em derrapagem desgovernada. As características de uma comunidade governada pelo estado de direito (“rule of law”) incluem, entre outras, a claridade das leis, a não contradição, a possibilidade de cumprimento, a obediência à lei por cidadãos e governantes, e a congruência entre lei escrita e lei aplicada pelas autoridades. Quem o diz são autores reconhecidos como Lon Fuller, John Rawls e Joseph Raz. Está bem de ver que a aludida norma padece de falta de claridade, de contradição e de difícil implementação.
Acresce que a história recente da RAEM faz-nos concluir que não podemos confiar como desejaríamos na congruência entre lei escrita e lei aplicada, quer por autoridades administrativas, quer mesmo por tribunais. A falta desta congruência resulta em incumprimento da lei, arbitrariedade e desigualdade na sua aplicação: aos “amigos”, tudo; aos outros, o rigor da lei…
A arbitrariedade de muitas medidas de governação e aplicação da lei na RAEM – quer relativas à pandemia, à desqualificação dos candidatos a deputados, à proibição de manifestações por causas de que o governo não gosta ou por não residentes, para citar algumas de entre as várias criticadas pelo Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas – colocam Macau perigosamente na margem do conceito de estado de direito. Por isso, a resposta à pergunta “será que não pensaram nisso?” poderá simplesmente ser que “não precisaram de pensar”.
Quando as autoridades não se sentem obrigadas a cumprir a lei, não importa muito o modo como ela foi redigida. Alguém acredita que esta norma vá ser cumprida pela Comissão do Concurso e que as relações críticas das actuais operadoras ao longo do período da concessão vão ser objecto de escrutínio imparcial pela Comissão do Concurso e desqualificadas todas as que tiverem tido envolvimento, activo ou passivo, em actividades ou com grupos criminosos? Ou que os Tribunais obrigariam a Comissão do Concurso a fazê-lo se colocados nessa posição? Obviamente que não.
Os governantes não pensaram muito no que escreveram, pois pouco importava: com lei ou sem lei, todos sabemos que serão tomadas as decisões que tiverem de ser tomadas. E essas, para o Governo, serão sempre certas, legais e transparentes. Quanto mais errante e obscura a lei, mais fácil é torcê-la e incumpri-la, particularmente para quem está sentado na poltrona do poder.
Jorge Menezes
Advogado